27 fevereiro 2014

Lenda de Namarói

Namarrói, Zambézia, Moçambique (Foto: Thomas Lee Jr.)

(Inspirado no relato da mulher do régulo de Namarói, Zambézia, recolhido pelo padre Elia Ciscato)

Vou contar a versão do mundo, razão de brotarmos homens e mulheres. Aproveitei a doença para receber esta sabedoria: o que vou contar me foi passado em sonho pelos antepassados. Não fosse isso nunca eu poderia falar. Sou mulher, preciso autorização para ter palavra. Estou contando coisas que nunca soube. Por minha boca falam, no calor da febre, os que nos fazem existir e nos dão e retiram nossos nomes. Agora, o senhor me traduza, sem demoras. Não tarda que eu perca a voz que agora me vai chegando.

No princípio, todos éramos mulheres. Os homens não haviam. E assim foi até aparecer um grupo de mulheres que não sabia como parir. Elas engravidavam mas não devolviam ao mundo a semente que consigo traziam. Aconteceu então o seguinte: as restantes mulheres pegaram nessas inférteis e as engoliram, todas inteiras. Ficaram três dias cheias dessa carga, redondas de uma nova gravidez. Passado esse tempo as mulheres que haviam engolido as outras deram à luz. Esses seres que estavam dentro dos ventres ressurgiram mas sendo outros, nunca antes vistos. Tinham nascido os primeiros homens. Estas criaturas olhavam as progenitoras e se envergonhavam. E se acharam diferentes, adquirindo comportamentos e querendo disputas. Eles decidiram transitar de lugar.

Passaram o regato, emigraram para o outro lado do monte Namuli. Assim que se assentaram nessa outra terra viram que o fiozinho de água engrossava. O regato passava a riacho, o riacho passava a rio. Na margem onde se transferiram os homens comiam apenas coisas cruas. E assim ficaram durante tempos. Uma certa noite eles viram, do outro lado, o acender das fogueiras. As mulheres sabiam colher a chama, semeavam o fogo como quem conhece as artes da semente e da colheita. E os homens disseram:

— As mulheres têm uma parte vermelha: é dela que sai o fogo.

Então, o muene que chefiava os homens mandou que fossem buscar o fogo e lho entregassem intacto. E dois atravessaram o rio para cumprir a ordem. Mas eles desconseguiram: as chamas se entornavam, esvaídas. O fogo não tinha competência de atravessar o rio.

— O fogo cansa-se, muene.

Assim disseram ao muene. Desiludido, o chefe atribuiu-se a si mesmo a missão. Atravessou a corrente em noite de chuva cheia. O rio estava em maré plena, tempestanoso. O muene perdeu o corpo, deixou escapar a alma. Acordou na outra margem, mais molhado que peixe. Sentiu que o puxavam, lhe davam ar e luz. Viu então uma mulher que lhe acudia, acendendo um foguinho para que secassem suas roupas. O homem lhe falou, confesssando desejos, invejas e intenções. A mulher disse:

— O fogo é um rio. Deve-se colher pela fonte.

— Essa fonte: nós não sabemos o seu lugar.

Era de noite, a mulher chamou o muene e fez com que se deitasse sobre a terra. E ela se cobriu nele, corpo em lençol de outro corpo. Nenhum homem nunca havia dormido com aquelas da outra margem. A mulher, no fim, lhe beijou os olhos e neles ficou um sabor de gota. Era uma lágrima de sangue, ferida da terra. A lágrima chorava, clamando que se costurassem as duas margens em que sua carne se havia aberto. A mão dele se ensonou sobre o suave abismo dela.

Anichado no colo da mulher, o homem desfiou o seguinte sonho: que ele era o último homem. E que daquele cruzar de corpos que experimentara aquela noite ele se ferira, seu corpo se abrira, veia escancarada. Ele vê o sangue se espalhar no rio e desmaia. Quando recupera vê que a inteira água do rio se convertera em sangue. Segue o curso do rio e repara como o vermelho se vai espessando, líquido em coágulo, coágulo em massa. Uma figura humana se vai formando. Aos poucos, nasce uma mulher. E, no imediato, o rio volta a escorrer, água límpida e pura. Esse foi o sonho. Do qual o muene se esqueceu mesmo antes de acordar.

O chefe madrugou e regressou à sua margem. Na passagem viu que o rio se acalmara, águas em jamais visto sossego. O homem chegou aos outros, sôfrego como se tivesse desaprendido de respirar. Os outros lhe olharam, admirados. Trazia ele um fogo dentro de si? O muene ainda procurava o fôlego:

— Ouçam: lá do outro lado…

E tombou, sem mais. Os outros foram, mandados pelo bicho de quererem saber. Passavam depois de o sol se esconder. De cada vez que um regressava o rio se estreitava, mais a jeito de riacho. Afinal, havia uma margem desconhecida da noite, o outro lado da vida. E um por um, todos realizaram a visita, para além do rio. No final, o curso de água voltou a ser o que tinha sido: um fiozito, timiúdo. O mundo já quase não dispunha de dois lados. Os homens, aos poucos, decidiam ficar no território das mulheres. Na outra, antiga margem, nenhum homem restou.

E os tempos circularam. Um dia uma mulher deu à luz. Os homens se espantaram: eles desconheciam o ato do parto. A grávida foi atrás da casa, juntaram-se as outras mulheres e cortaram a criança onde ela se confundia com a mãe. Decepado o cordão, o um se fez dois, o sangue separando os corpos como o rio antes cindira a terra.

Os homens viram isto e murmuraram: se elas cortam, nós também podemos. Afiaram as facas e levaram os rapazes para o mato. Assim nasceu a circuncisão. Cortavam os filhos para que eles entrassem no mundo e se esquecessem da margem de lá, de onde haviam migrado os homens iniciais. E os homens se sentiram consolados: podiam, ao meno, dar um segundo parto. E assim se iludiram ter poderes iguais aos das mulheres: geravam tanto como elas. Engano deles: só as mulheres cortavam o laço de uma vida em outra vida. Nós deixamos assim, nem procurando neles outro convencimento. Porque, afinal, ainda hoje eles continuam atravessando a correnteza do rio para buscar em nós a fonte do fogo.
Mia Couto, escritor moçambicano

20 fevereiro 2014

Pedro de Escobar ou Pedro do Porto

Como não existe nenhum retrato de Pedro de Escobar, escolhi o portal de uma igreja sua contemporânea para ilustração deste artigo a ele dedicado. O magnífico portal que aqui se vê, o qual combina elementos manuelinos e renascentistas, encontra-se na fachada principal da Igreja de São Quintino, nos arredores de Sobral de Monte Agraço. O interior da igreja, que foi mandada construir pelo rei D. Manuel I, é também digno de ser visitado. Se encontrar a igreja fechada, experimente perguntar pela chave numa fiada de casas existente na vizinhança imediata (Foto: Câmara Municipal de Sobral de Monte Agraço)


Pedro de Escobar, também chamado Pedro do Porto (não confundir com o navegador Pêro Escobar, descobridor das ilhas de São Tomé e Príncipe), foi um dos maiores compositores portugueses da época do Renascimento. Muito pouco se sabe sobre a sua biografia. Nasceu por volta de 1465, na cidade do Porto, e faleceu em Évora, posteriormente ao ano de 1535. Foi cantor na capela real de Isabel de Castela, mestre de capela na catedral de Sevilha e mestre de capela, também, do cardeal-infante D. Afonso de Portugal, filho do rei D. Manuel I. Morreu pobre e, diz-se, alcoólico.



Apresentadas sucessivamente, duas versões completamente diferentes de uma mesma obra de Pedro de Escobar, chamada Virgen bendita sin par. A primeira versão é do grupo The Early Music Consort of London, dirigido por David Munrow. A segunda versão é do agrupamento Hespèrion XXI, dirigido por Jordi Savall


Clamabat autem mulier Cananea, de Pedro de Escobar, pelo agrupamento vocal Ars Nova, de Copenhaga, dirigido por Bo Holten

15 fevereiro 2014

Citação

Santa Maria da Feira, 13 de setembro de 2003 (Foto: Spencer Tunick)

«Mas o que são os vaidosos senão os que temem a sua nudez? Os que evitam o retrato da alma para não lhes descobrir tormento e debilidade?»
Agustina Bessa-Luís

13 fevereiro 2014

Dia Mundial da Rádio

(Foto de autor desconhecido)

Sendo Dia Mundial da Rádio, hoje é dia de luto. Luto por um meio de comunicação que se encontra moribundo. Não é novidade para ninguém que, nos tempos que correm, a rádio só é ouvida no carro. Salvo uma pequena minoria, já ninguém escuta rádio sem ser no carro. Por exemplo, o que as pessoas ligam, assim que chegam a casa, é o televisor ou mesmo o computador, nunca o rádio.

São muitas as razões para o declínio acentuado da rádio que se verifica atualmente. A internet é com certeza a mais importante. No já distante ano de 1980, cantava-se Video killed the radio star. Mas não foi pelo vídeo e também não foi pela televisão que a radio star foi morta. Ela está sendo morta pela internet. Mas... estará mesmo?

Não será a própria internet uma certa forma de rádio (e de televisão e de vídeo e de outras coisas mais, todas ao mesmo tempo)? Até no que diz respeito ao meio de transmissão usado, quantas vezes a internet chega aos nossos computadores e aos nossos dispositivos móveis através das ondas eletromagnéticas, sob a forma de Wi-Fi, GSM, satélite, LTE, etc.? Quer dizer então que a rádio não está agonizante e que a notícia da sua morte é um exagero?

A rádio na sua forma tradicional, pelo menos, vai definhando a olhos vistos, com as suas ditatoriais play-lists e com o seu cortejo de animadores convencidos de que são engraçadinhos, debitando graçolas imbecis a um ritmo alucinante e tratando os ouvintes como se fossem deficiente mentais profundos. Diante deste vil panorama, diríamos que as rádios tradicionais estão a fazer todos os possíveis e impossíveis por matar, de uma vez por todas, a radio star. E, ao mesmo tempo que a radio star vai morrendo, estão elas mesmas a correr aceleradamente para o suicídio. Nunca mais (oh, nunca mais!) voltaremos a ouvir programas de rádio bem feitos e inteligentes como era, por exemplo, As Noites Longas do FM Estéreo.

Quanto aos vídeos que se seguem, eles também já fazem parte de um passado que não volta mais. A RDP Internacional deixou de transmitir em ondas curtas há muitos meses. Presentemente, nenhuma rádio portuguesa transmite em ondas curtas, e quase se pode dizer o mesmo em relação às ondas médias também. Só um pequeno punhado de estações estrangeiras, como a Voz da América, a Rádio Internacional da China ou a Rádio França Internacional, é que ainda transmite em português através das ondas curtas. O que se ouve nos vídeos seguintes já faz, portanto, parte da História.


A RDP Internacional ouvida no Brasil em ondas curtas


A RDP Internacional ouvida no Japão em ondas curtas


A RDP Internacional ouvida na Roménia em ondas curtas


A RDP Internacional ouvida no Reino Unido em ondas curtas, em modo digital DRM

09 fevereiro 2014

Uma orquestra feita de lixo


Reportagem sobre uma orquestra composta por jovens que vivem no meio da imundície, em Cateura, o aterro sanitário da cidade de Assunção, capital do Paraguai. Os instrumentos que estes jovens tocam são feitos de lixo encontrado no aterro


Outra reportagem sobre a mesma orquestra de instrumentos reciclados

05 fevereiro 2014

As Três Graças

As Três Graças, relevo em gesso de um artista grego anónimo, Museu do Louvre, Paris

As Três Graças são uma das mais famosas composições plásticas da Grécia antiga, a qual tem vindo a ser reproduzida e recriada por múltiplos artistas ao longo dos séculos, desde a antiguidade clássica até aos nossos dias, sobretudo durante o Império Romano, a época do Renascimento (séculos XV e XVI) e a do Neoclassicismo (séculos XVIII e XIX). Na arte contemporânea, voltamos a encontrar As Três Graças em diversas obras de vários artistas, por vezes num contexto iconoclasta e de subversão do conceito original.

As Três Graças são três deusas que, na mitologia grega, serviam Afrodite, a deusa do amor. Filhas de Zeus e da deusa Eurínome, são elas Aglaia, Eufrosina e Tália. Simbolizam, habitualmente, a beleza, o encanto e a abundância. Séneca (circa 4 A.C.-65 D.C.), escreveu que elas representam as três facetas da generosidade: dar, receber e retribuir. Os filósofos de Florença no séc. XV viram nelas a castidade, a beleza e o amor ou, então, as três fases do amor: beleza, desejo e satisfação.

As Três Graças costumam ser representadas como três jovens nuas, de pé e com as mãos pousadas nos ombros umas das outras. A do meio encontra-se habitualmente virada de costas em relação às outras duas.

Não se sabe quem foi que criou a composição As Três Graças nem em que local é que o fez. Supõe-se que foi alguém que viveu nos finais do período helenístico, ou seja, no século II A.C., mas não há certeza nenhuma.

As Três Graças. Uma das dezasseis cópias romanas conhecidas de relevo grego do período helenístico. Mármore. The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque

As Três Graças. Fresco de Pompeia, cidade destruída em 79 D.C. por uma erupção vulcânica

Moeda romana com a efígie de Crispina, que foi casada com o imperador Cómodo, no verso e As Três Graças no reverso. 177-183 D.C.

As Três Graças. Escultura dos banhos romanos de Cirene, na Líbia, tal como estava nos anos de 1950 a 1965

As Três Graças. A mesma escultura da fotografia anterior, tal como está na atualidade: seriamente danificada

As Três Graças. Óleo sobre tela, de Rafael (1483-1520). Museu Condé, Chantilly, França

As Três Graças. Desenho de Rafael (1483-1520). Coleção da rainha de Inglaterra

As Três Graças. Fresco de Correggio (1489-1534). Mosteiro de São Paulo, Parma, Itália

As Três Graças. Óleo sobre tela de Hans Baldung (1484-1545). Museu do Prado, Madrid, Espanha

As Três Graças. Óleo sobre madeira de Lucas Cranach, o Velho (1472-1553). Nelson-Atkins Museum of Art, Kansas City, Estados Unidos da América

As Três Graças. Óleo sobre tela de Lucas Cranach, o Velho (1472-1553). Museu do Louvre, Paris, França

As Três Graças. Gravura de Carracci (1557-1602). Städel, Frankfurt am Main, Alemanha

As Três Graças. Óleo sobre tela de Pieter Paul Rubens (1577-1640). Museu do Prado, Madrid, Espanha

As Três Graças. Carle van Loo (1705-1765). Castelo de Chenonceau, França

As Três Graças. Escultura em mármore de Antonio Canova (1757-1822). Hermitage, Sampetersburgo, Rússia

As Três Graças e Cupido. Escultura em mármore de Bertel Thorvaldsen (1770-1844). Museu Thorvaldsen, Copenhaga, Dinamarca

As Três Graças. Escultura em mármore de James Pradier (1790-1852). Museu do Louvre, Paris, França

As Três Graças. Óleo de Emile Vermon (1872-1920)

As Três Graças. Óleo sobre tela de Pablo Picasso (1881-1973)

As Três Graças. Desenho de Pablo Picasso (1881-1973)

As Três Graças. Gravura a água forte de Pablo Picasso (1881-1973)

As Três Graças coroadas de flores. Litografia de Pablo Picasso (1881-1973)