29 setembro 2014

O passarinho e o burro

Um garoto mostrava um rouxinol cativo...
Um pobre rouxinol, mais morto do que vivo,
A arquejar-lhe nas mãos, preso por um cordel!

Vendo o garoto a rir (porque a Infancia é cruel
Para as aves do céu), um filósofo austero
Mas bondoso, exclamou: «Criança, és como Nero!

A Tirania beija a bôca da Inocência
E faz dela a Maldade, a Fúria — a Inconsciência!
Essa ave, que prendeste, era a imagem alada
Da Liberdade a voar na abóbada azulada!
Era livre e cantava… O peito que respira
Livremente, criança, é um peito e uma lira!

Vejo um cordel infame e uma mão criminosa…
Essa ave que nasceu para cantar, gloriosa,
Nos álamos, à tarde, à beira dos riachos,
Quando o poente extingue os seus rubros fogachos,
Coitada! — vae morrer às mãos d'um assassino…
Nero era assim, tal como tu, em pequenino!

Deixa voar essa ave ao seu destino! Vês
Aquela árvore ao longe? É para ali talvez,
Que ela — livre afinal — ha-de voar, cantando…»

E o filósofo viu o pequeno chorando!
De repente, soltando o cordel que o prendia,
O rapazito mais alegre do que o dia
Soltou no espaço livre o rouxinol…

No entanto,
Tinha-se feito, em volta, um grande grupo… E ao espanto
Sucedeu-se depois um tocante sussurro…

Ora estavam no grupo um saloio e um burro.
Tinha ouvido o saloio o discurso eloquente
Do sábio, e comovido, exclamou: «Francamente!
A Tirania é um crime… Este homem tem razão!
Este burro, que é meu, acaso é livre? Não!
O seu destino qual será? Mistério immenso,
Insondável Mistério em que nem mesmo penso!
Ser escravo? — jamais! Este albardão que o oprime,
Da parte dele é oprobrio? É pois da minha, um crime!
Liberta-lo, é dever… Filósofo divino!
O dever é soltar o burro ao seu destino…»

E, tirando o albardão ao pobre do jumento,
Disse-lhe: « — És livre, — vae! — como o vento!…» 
O burro, ao vêr-se livre, ergueu logo a cabeça…
— «Ao meu destino — sim!…»

Depois, trotando á pressa,
Com pasmo do saloio e aos coices de alegria:
— «O meu destino é este…» E entrou na Academia!

João Saraiva (1866-1948)


Ilustração: Maurício de Sousa

24 setembro 2014

Fractais "Fabergé"

Um fractal de Tom Beddard

Os fractais são formas geométricas que se assemelham a si próprias, qualquer que seja a dimensão e a escala em que as vemos. A parte de um fractal é igual ao fractal todo, a parte da parte também é igual ao fractal todo, a parte da parte da parte também é igual ao todo e por aí fora, infinitamente.

O aparecimento e desenvolvimento da geometria fractal devem-se largamente a um matemático francês de ascendência judaico-polaca chamado Benoît Mandelbrot (1924-2010), embora já houvesse uma pálida noção sobre a sua existência no séc. XIX. A própria palavra "fractal" (do latim fractus = quebrado) foi criada por Mandelbrot.

A Natureza e muitos outros fenómenos que nos rodeiam possuem propriedades que só não são completamente fractais porque não se repetem infinitamente, isto é, não atingem uma escala infinitamente grande ou infinitamente pequena. Chega-se a uma escala em que a autorrepetição se detém. É o caso das nuvens do céu, dos cristais de gelo, da linha da costa marítima, dos ramos das árvores e até das variações das cotações da Bolsa!

O estudo dos fractais não teria passado de uma fase extremamente incipiente, se não existissem computadores. São estas prodigiosas máquinas, que nos rodeiam por todos os lados mais do que imaginamos (muitos de nós trazem no próprio bolso computadores poderosíssimos sob a forma de smartphones, por exemplo), que permitem estudar e desenvolver a geometria fractal, graças à sua enorme capacidade e rapidez de cálculo e à extrema facilidade com que lidam com algoritmos iterativos e recursivos.

Foi, portanto, recorrendo a algoritmos iterativos e recursivos que o físico inglês Tom Beddard tem conseguido gerar formas fractais em computador, que são tão elaboradas e ricas em pormenores que ele lhes chama "fractais Fabergé". Ora Peter Carl Fabergé (1846-1920) foi um célebre joalheiro russo de ascendência francesa e dinamarquesa, que criou para os imperadores da Rússia cinquenta ovos feitos de ouro, prata, platina, cobre, níquel, paládio e pedras preciosas, que são considerados obras-primas da joalharia.

Vejamos, pois, alguns dos tais fractais "Fabergé" de Tom Beddard, que evoluem e se transformam graças à utilização de fórmulas iterativas, em que o resultado de uma iteração serve de entrada para a iteração seguinte. Admiremos as espantosas figuras que a Matemática consegue gerar, graças ao cérebro humano e aos computadores.




17 setembro 2014

As grutas artificiais da Quinta do Anjo

Vista, a partir do interior, da entrada de uma das grutas artificiais da Quinta do Anjo (Foto: Ricardo Soares)


Na localidade da Quinta do Anjo, que pertence ao concelho de Palmela e fica entre Palmela e Azeitão, existem quatro pequenas grutas que são artificiais. Se perguntarmos a um habitante local quem foi que fez essas grutas, uma resposta que muito provavelmente ele nos dará é a de que elas foram feitas pelos mouros. Para o nosso povo, tudo o que é muito antigo é dos mouros. Mas, na realidade, estas grutas são "um bocadinho" mais antigas do que a presença dos mouros na região. Elas foram feitas há cerca de 5500 anos!


Entrada para uma outra gruta artificial da Quinta do Anjo (Foto: Archeoten.)


Estas grutas artificiais da Quinta do Anjo, a que os arqueólogos chamam hipogeus, são antigas sepulturas, feitas na época de transição da Idade da Pedra Polida (Neolítico) para a Idade do Cobre (Calcolítico), ou seja, na época do chamado Eneolítico. Elas foram utilizadas como sepulturas ao longo de cerca de 1000 anos. São constituídas por uma câmara funerária subterrânea, de forma circular e teto abobadado, havendo no alto deste uma pequena abertura para o exterior, chamada claraboia. O acesso à câmara funerária faz-se por uma antecâmara de forma oval. A esta, por sua vez, acede-se por um caminho retilíneo descendente a partir do exterior, também escavado na rocha.


Planta e perfil de uma das grutas da Quinta do Anjo (Desenho publicado no folheto Arqueologia da Arrábida, do Parque Natural da Arrábida, em 1979, e reproduzido da página Arqueologia da Arrábida)


Uma boa reportagem fotográfica sobre estas grutas artificiais, da autoria de Ricardo Soares, pode ser vista na página http://fotoarchaeology.blogspot.pt/2009/04/hipogeus-da-quinta-do-anjo.html.

O acesso às grutas faz-se a partir da EN 379, que liga Azeitão a Palmela, virando-se para sul no cruzamento com semáforos existente no centro da Quinta do Anjo, isto é, no cruzamento onde está a Junta de Freguesia local. Quem vier de Azeitão vira à direita, quem vier de Palmela vira à esquerda (evidentemente) e quem vier dos lados da Moita ou da Autoeuropa segue em frente.


Junto às grutas da Quinta do Anjo existe, ou existiu, um painel de azulejos explicativo. Este painel é sistematicamente vandalizado e sucessivamente reposto, uma e outra vez. Não sei em que estado este painel se encontra neste momento (Foto: CorreiaPM)

10 setembro 2014

Duas canções de José Carlos Schwarz (1949-1977), da Guiné-Bissau


Ke ki Minino na Tchora (Porque é que o Menino Chora)


Mindjeres di Pano Preto (Mulheres de Pano Preto)

05 setembro 2014

Um instrumento musical fantasmagórico

Um teremim


É possível tocar um instrumento musical sem lhe pôr as mãos em cima? É, se esse instrumento for um teremim.

O teremim, do inglês theremin, é um dos mais antigos instrumentos musicais eletrónicos. Foi inventado em 1920 por um físico russo chamado Lev Sergeevich Termen (1896-1993) (mais conhecido no Ocidente como Léon Theremin), de quem tomou o nome, quando este físico estudava sensores de proximidade.

Este curioso instrumento, que se toca sem que haja qualquer contacto físico entre ele e o intérprete, nunca alcançou uma grande popularidade. Manteve vivo, porém, o interesse de vários entusiastas ao longo de décadas e foi usado nomeadamente no cinema, para acompanhar cenas de filmes de suspense ou de ficção científica.



O físico russo Lev Sergeevich Termen apresenta e toca o instrumento que inventou



Grégoire Blanc toca o início do 2º andamento (Allegretto) da Sinfonia nº 7 de Ludwig van Beethoven, num arranjo para 6 teremins


Esquema do circuito eletrónico de um teremim constituído por componentes modernos. Neste circuito podem distinguir-se cinco partes, não contando com a fonte de alimentação, no canto inferior direito. São elas:

1 — Um oscilador em ponte de Wien, à esquerda, composto pelo OTA (amplificador operacional de transcondutância) U1, o amplificador operacional U2, o transistor bipolar PNP Q1 e componentes passivos associados, que gera uma frequência constante e permite a regulação do volume do som, em função do acoplamento capacitivo com uma das mãos do intérprete;

2 — Um segundo oscilador em ponte de Wien, à direita, composto pelo OTA U4, o amplificador operacional U5, o transistor bipolar PNP Q3 e componentes passivos associados, que gera uma frequência variável em função do acoplamento capacitivo com a outra mão do intéprete;

3 — Um multiplicador constituído pelo transistor JFET (transistor de efeito de campo de junção) Q2; ao dreno deste transistor está ligado o oscilador que controla o volume e à porta está ligado o oscilador que controla a frequência;

4 — O amplificador operacional U3A e componentes passivos associados constituem um filtro passa-baixo Sallen-Key, que elimina a frequência mais aguda do sinal proveniente do multiplicador anterior, deixando passar apenas a frequência audível;

5 — O amplificador operacional U3B e componentes passivos associados fazem a amplificação do sinal recebido do andar anterior e entregam-no ao altifalante ou o que quer que se deseje ligar ao teremim, através da tomada J2, no canto superior direito do esquema.

Uma explicação mais detalhada, em inglês, do funcionamento deste circuito está na página http://www.theremin.us/203/203.html, de Arthur Harrison