30 setembro 2018

Pensas na morte?


Imagem da Guerra Colonial. Militares portugueses em 1973–74, algures nas matas de Angola onde combateram até à exaustão (Foto de Vítor Fernandes encontrada no Facebook)


Moçambique — Agosto de 1967 – Outubro de 1969

— Nobre, pensas na morte?

— Penso. E tu não pensas?

— Eu? Eu só não quero morrer.

Ontem, ainda brincava na rua, nas ruas da minha infância. A minha fronteira era o canto da minha rua. Lembro-me das brincadeiras, lembro-me dos gritos da minha mãe, chamando-me, quando a noite se aproximava.

Hoje, estamos na guerra, numa guerra de verdade, somos os soldados da Pátria, os salvadores de ideais, os seguidores de todos aqueles que deram novos mundos ao mundo. Não me lixem. Valsamos de um lado para o outro, a orquestra é a mesma, o maestro o mesmo. Sabes dançar? Sonhávamos, as distâncias não existiam, a fronteira do sonho era já ali. Crescemos, embebedamos as nossas angústias, abreviamos as noites, enganamos os fantasmas e a incerteza do amanhã. Conhecemos outros, outros da nossa idade que não foram amigos de infância, juntaram-nos, instruíram-nos, armaram-nos, ensinaram-nos a matar. Tenho saudades do mar, outros têm saudades da planície, outros do toque do sino da aldeia, da lareira, do canto do galo ou do pão da avó.

Não se morre na nossa idade, talvez a morte seja uma pausa na vida, depois voltamos, dizem. Temos vinte anos. Leio todas as cartas, todas as juras de um amor eterno. Não me esqueces? Não temos tempo para o esquecimento, consumimos o tempo, como se fosse um cigarro que nos queima os dedos. A morte? Apagamola no cinzeiro do esquecimento, restam as cinzas da dúvida. Esquecemos as vozes, os rostos. O tempo, o tempo entre um dia e outro dia, igual aos outros. Voltamos a casa, a minha é uma casa pintada de branco e com riscas azuis nas janelas, cortinados feitos de linho, bordados. Esperem por mim, isto não é mais do que um sonho, um pesadelo. Nascemos todos num lugar qualquer.

Que importam os dias, os meses, vivemos como se não houvesse amanhã. Não tenho palavras para dizer o que sinto, o que sentimos, vivemos, para cá do arame farpado, no lado dos bons, os maus são os outros, os que procuram a liberdade. Trocava esta paisagem de palmeiras, cajueiros e todas as buganvílias africanas por um cheiro a maresia, pelo som do motor de um barco a entrar na barra do rio Arade. Atravessamos oceanos, sobretudo os da nossa imaginação, como marinheiros de um barco fantasma, vencemos marés, tempestades de sentimentos. Queria que te lembrasses dos dias em que fomos felizes, dos dias em que não existia o medo da distância, da ausência, vamos e voltamos, num jogo de ping-pong, imaginado. Outra noite, ainda limpa de pesadelos. Hoje é domingo, um domingo de um mês qualquer, sem data, vazio, todos os dias são dias de guerra, de armas e de sentimentos. Matamos e morremos.

— Nunca pensei vir para África. Quando esta guerra começou, eu era um miúdo. Aprendi na escola os nomes das províncias ultramarinas. As capitais, os rios, as montanhas, os lagos e as linhas ferroviárias. Tudo isto ficava muito longe, no outro lado do mundo.

O Lopes falava em voz alta, sentado num cepo de árvore, enquanto descascávamos uma saca de batatas, já meio apodrecidas, as quais serviriam para acompanhar o peixe congelado, acabado de chegar na avioneta, vinda de Palma. Juntávamos as peles das batatas e oferecíamos ao velho maconde. Era assim que alimentava as galinhas, de vez em quando vendianos uma.

— Lembro-me do primeiro gajo, lá da minha terra, que foi mobilizado para Angola. Aquilo não foi uma despedida, foi um funeral antecipado. Nunca mais voltei à estação do comboio, desde aquele dia. Ninguém ficou em casa. Sabia que um dia chegaria a minha vez. Com o tempo, habituamo-nos a ver a malta partir. As partidas e as mortes anunciadas passaram a fazer parte das nossas vidas. Estou eu a descascar batatas e a falar destas merdas.

Estamos em pleno Cabo Delgado, o verde fere-nos os olhos, um vale que nos leva até junto da fronteira da Tanzânia, onde corre o rio Rovuma. Como irei descrever esta paisagem, esta orgia de cores, de árvores seculares. Nas noites sem luar e sem nuvens, o céu é um labirinto de estrelas, que correm de um lado para o outro. O Felgueiras tem razão, as estrelas não estão no mesmo sítio.

— Eu fui pastor durante três anos, antes de ser chamado para a tropa. Conheço bem o céu da minha terra, este não é igual.

Rimos.

As explicações ficariam para depois. Agora era o tempo de descascar batatas. Seis marmanjos à volta de um saco de batatas de má qualidade, como toda a comida do exército. Existem comprimidos para sonhar?

— Na última carta que recebi da minha mãe, contou-me que já foi a Fátima, ela, o meu pai e a minha irmã. Foram numa excursão organizada pelo sacristão da paróquia.

Agarrou mais uma batata.

— Não sei se vale a pena ir a Fátima. Antes de eu embarcar para Moçambique, a minha mãe foi ver uma bruxa, pagou vinte e cinco escudos, e esta disse-lhe que eu voltaria inteiro, sem qualquer ferimento. O que eu faria com aquele dinheiro, vinte e cinco paus são vinte e cinco paus.

Acabamos de descascar as batatas e foram entregues na cozinha. Mais uma batalha da batata estava… ganha. Tínhamos o resto do domingo para nós.

O Pereira, o algarvio da Fuzeta, um dos mais pequenos da nossa Companhia, continuava calado, deitado na cama, ninguém dava por ele, era como se a cama continuasse vazia. Nunca o vimos zangado, desorientado, revoltado por estar ali, para ele o que contava era estar vivo e contar os dias que passavam. Tinha com ele um terço, na algibeira da camisa do camuflado, o qual foi benzido durante a última missa a que assistiu, antes de zarpar para terras africanas. À noite pendurava-o num dos ferros da cama. Fuma que nem um “cavalo”. O pequeno rádio, pousado no travesseiro. Nunca percebemos quais eram as suas músicas preferidas, ouvia tudo e de tudo, até música tanzaniana.

— Nobre, podes cantar o Embuçado?

Ele não me tratava por marroquino, ele próprio também o era.

"Noutro tempo a fidalguia,
Que deu brado nas toiradas,
Andava p'la Mouraria
E em muito palácio se ouvia
Cantos e guitarradas."

( Nangade — Cabo Delgado — Moçambique.)

(Os nomes são fictícios; nenhum dos citados esteve na guerra e muito menos em Moçambique.)



José Nobre. Texto publicado pelo seu autor no Facebook

Comentários: 2

Anonymous Zé Kahango escreveu...

Saudações angolanas!

30 setembro, 2018 09:50  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Seja bem reaparecido, Zé Kahango! Há quanto tempo não recebo notícias suas. Espero que esteja tudo bem consigo. É muito bom saber que voltou a publicar novo material no seu magnífico blog Angola Profunda, cuja reativação notei há poucos dias. É um blog imperdível, na minha opinião. Acompanhá-lo-ei sempre que puder e com todo o entusiasmo, pode crer. Por minha parte, espero poder continuar a contar com a sua presença neste meu espaço, que está e sempre estará completamente aberto para si. Um forte abraço de boas-vindas.

01 outubro, 2018 01:45  

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