02 outubro 2018

Um Cristo feminino?



No primeiro instante em que virmos esta pequena escultura de marfim, julgaremos estar em presença de uma imagem de Cristo crucificado. Só a seguir notaremos que esta figura tem formas femininas e até um colar no pescoço! «O que é isto?! Um Cristo feminino?!», espantar-nos-emos, «Que figura é esta, afinal?» Isto é um pequeno pingente de marfim, feito para ser trazido ao peito como uma medalha, datado do séc. XVIII e proveniente do reino do Congo, ao que tudo indica no que é hoje Angola. Pertence a uma coleção privada.

Na transição do séc. XVII para o séc. XVIII, a captura e tráfico de escravos atingiam proporções pavorosas em África e o reino do Congo encontrava-se mergulhado numa guerra civil, onde se digladiavam três pretendentes ao trono. Foi no meio deste apocalíptico cenário que nasceu uma mulher que viria a desempenhar um papel muito importante na história do referido reino: Kimpa Vita.

Kimpa Vita (de seu nome de batismo Beatriz) foi uma profetiza que arrastou inúmeros seguidores no reino do Congo. Dizendo-se possuída por Santo António, Kimpa Vita pregou, por exemplo, que Jesus Cristo, Maria e outros santos católicos, como S. Francisco, tinham sido realmente bacongos. Fundou aquele que terá sido o primeiro movimento messiânico congolês, dois séculos antes do surgimento de outros movimentos messiânicos, como o Kimbanguismo e o Tocoísmo (fundados, respetivamente, por Simon Kimbangu e Simão Toco), os quais ainda existem, são muito respeitados e têm muitos milhares de crentes. O movimento criado por Kimpa Vita foi denominado Antonianismo, dada a importância que ela atribuiu a Santo António.

Do ponto de vista político, Kimpa Vita juntou-se ao campo de um dos pretendentes ao trono, chamado D. Pedro. Atraiu muita gente para a causa de D. Pedro, ajudando assim este a ganhar vantagem sobre os seus rivais e a tornar-se rei do Congo, como D. Pedro IV. D. Pedro, no entanto, recusou seguir a doutrina que Kimpa Vita pregava e ela passou-se para o campo de um rival, que também recusou ouvi-la. Enquanto isso, ela atraía cada vez mais seguidores e passou a ser crescentemente vista como uma ameaça. Acabou por ser capturada pelas tropas leais a D. Pedro IV e condenada à morte por "heresia" e "feitiçaria", com a cumplicidade de missionários capuchinhos. Foi queimada numa fogueira em 2 de julho de 1706. As suas cinzas foram queimadas uma segunda vez, para que o povo não as usasse como relíquias.

Aqui está a explicação para a figura representada neste pingente de marfim: não é Jesus Cristo, mas sim Kimpa Vita, ou Dona Beatriz como também foi chamada. Ela não está representada numa cruz como Jesus Cristo, mas muito provavelmente amarrada no cimo da pira em que iria morrer queimada. Só o anónimo artista que esculpiu esta figurinha é que poderia dizer qual a razão pela qual representou Kimpa Vita de forma a parecerse com Cristo.

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