06 janeiro 2019

Bach e o cego


O acordeonista russo Sergei Teleshev (que não é cego) interpreta em acordeão a Tocata e Fuga em Ré Menor, BWV 565, originalmente escrita para órgão por Johann Sebastian Bach (1685–1750)

Há um quarto de século (como o tempo passa!), eu vivia em Lisboa. Todas as manhãs ia apanhar o metro ao Marquês de Pombal, para me dirigir ao meu local de trabalho. Na estação do metro do Marquês costumava estar um cego tocando, num acordeão, as músicas que todos os cegos de Lisboa costumavam tocar: Lisboa Antiga, Uma Casa Portuguesa, etc. Mais por desfastio do que por qualquer outra razão, confesso, eu dava-lhe uma moeda antes de me dirigir para o cais de embarque.

Uma manhã, para meu grande espanto, o cego tocava, não as músicas do costume, mas sim, e de forma absolutamente irrepreensível, a Tocata e Fuga em Ré Menor, de Bach! Nem mais, nem menos! Nessa manhã fiquei a ouvi-lo até ao fim, deliciado com a música e espantado com a sua magnífica interpretação, dei-lhe mais dinheiro do que o habitual e acabei por chegar atrasado ao emprego…

Muito poucas semanas depois, saiu num jornal uma entrevista com esse cego. Não tinha sido só eu quem tinha reparado nele e na sua extraordinária mudança de repertório. Declarava o cego na entrevista que não era um pedinte, pois não estava ali a pedir nada a ninguém. Era um animador cultural, que estava na estação do metro a dar um pouco de alento às pessoas que passavam por ele, tristes e sonolentas, a caminho do seu emprego. E acrescentava que o dinheiro que as pessoas lhe davam não eram esmolas, era o seu salário de trabalhador independente.

Pouco tempo depois, mudei de casa, fui morar para perto da Alameda D. Afonso Henriques, deixei de tomar o metro no Marquês de Pombal e nunca mais soube do cego Músico (com M maiúsculo), virtuoso do acordeão e homem cheio de dignidade, que tocava para animar as pessoas e não para lhes pedir esmola. Lembrei-me dele agora, ao deparar-me com este vídeo no Youtube. O cego da estação do metro do Marquês de Pombal tocava assim, desta forma espantosa que neste vídeo se pode ver e ouvir.

Comentários: 6

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Que bem tocava esse animador cego...

06 janeiro, 2019 18:26  
Blogger Rogério G.V. Pereira escreveu...

Para ver, por vezes não chega olhar

Para amar a arte e saber executá-la
às vezes ter olhos só atrapalha

06 janeiro, 2019 23:01  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Muito obrigado pelos vossos comentários. Este animador cultural tocava muitíssimo bem, apesar de cego. Em tudo quanto diz respeito à arte, os olhos da alma são muito mais importantes do que os do corpo.

07 janeiro, 2019 17:00  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Por volta de 1994, passei a trabalhar em Algés. Como vivia em Lisboa, todas as manhãs ia ao Cais do Sodré apanhar o comboio para Algés. No princípio, a linha do metro para o Cais do Sodré ainda estava em construção e eu saía no Rossio. Ia a pé pela Rua Augusta abaixo até à Praça do Comércio e depois seguia pela beira-rio até à estação dos comboios. Eu tinha tanto gosto em fazer este trajeto, que continuei a fazê-lo mesmo depois de ter sido aberta a linha do metro para o Cais do Sodré. Andar debaixo da terra pode ser muito rápido, mas não tem graça nenhuma.

Primeiro no Rossio e depois na Rua Augusta, costumava estar uma cega que cantava fados, ao mesmo tempo que tocava ferrinhos, com uma voz tão dorida, tão dorida, que causava arrepios. Os fados que ela cantava eram extraordinariamente pungentes e julgo que se referiam sobretudo à tristeza de uma vida mergulhada nas trevas da cegueira. Esta cega era a Dona Rosa.

Aí por volta do ano 2000, um austríaco ouviu-a cantar e gostou tanto, que a convidou para gravar um disco. A Dona Rosa gravou um CD, tornou-se conhecida e passou a cantar no estrangeiro.

Estive à procura de algum vídeo na internet que mostrasse a Dona Rosa cantando um dos seus fados, mas o mais parecido que encontrei com o que ela cantava no Rossio e na Rua Augusta foi este vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=3ichlxEQGfA.

08 janeiro, 2019 02:22  
Blogger grão de mostarda escreveu...

Caríssimo Fernando,
aceite que o trate assim, apesar de não nos conhecermos… Também conheci esse cego Músico; tive, como você, a oportunidade de deliciar-me com as interpretações dele, assim como as da D. Rosa. Ainda eu por Lisboa andava, quando um dia um jornalista (colega meu de profissão) se "deu conta" de que um "estranho" se interessara pelos fados que a D. Rosa cantava de modo pungente, como muito bem anota.
Agradeço assim, o recordar-nos o Músico cego, do Marquês de Pombal, junto ao semanário EXPRESSO, onde então exercia a minha profissão. Hoje, tb. aqui no Norte (Esposende) continuo a deixar-me encantar com outros seres,na maioria das vezes ignorados… São outras histórias.
Mário Robalo

08 janeiro, 2019 20:33  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Caríssimo Mário Robalo,

Muito obrigado pelo seu testemunho. Naquele tempo eu era leitor habitual do Expresso e lembro-me de ver o seu nome lá. Mais tarde, cansei-me do jornal, porque fazia cada vez mais "fretes" a interesses políticos e económicos, em vez de procurar ser isento, e agora nem sequer o leio online.

Um abraço e volte sempre.

09 janeiro, 2019 17:39  

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