01 janeiro 2020

Canção Primeira

Em cada poema estou como quem viaja
não eu apenas mas a própria viagem
geografia onde respiro
e poiso os pés e tenho
uma raiz e um nome.
Em cada poema estou mas não sozinho.
Antes de mim a língua e os que primeiro
cantaram a longa história do poema.
Ó cidades: velhas cidades
subterrâneas colunas do meu canto
algures em mim as vossas ruínas gravam
uma estranha sintaxe intraduzível.
Fenícios Árabes Cartagineses
Celtas Romanos Visigodos
quantos povos em mim
quantas vezes dentre vós um houve
que sozinho cantou à tarde
habitado de ventos e crepúsculos? Quantas vezes
uma harpa se ergueu nas mãos de um jovem
e os dedos dos amantes
transformaram em música o suco de seus corpos?
Ó cidades velhas cidades
com vossas glórias e misérias
com vosso luxo e vossas fomes
quantas vezes um homem não terá cantado
sua perdida liberdade?
E aquele que cantou aos pés da amada
um canto de canelas e pimentas
e aqueles que partiram e morreram
e com rústicas mãos foram achar
as terras que depois eram dos reis.

Tão longe tão longe a carne do poema.
Quem pôs na minha boca este sabor a mar
quem pôs nas minhas mãos estes cavalos bárbaros
quem foi que semeou dentro de mim
um navio com sete mares para navegar?

Um cavaleiro passa em seu cavalo árabe.
Há uma mulher despindo-se. Quem prova
as amêndoas secretas do seu corpo?
Condenaram à morte o chefe dos rebeldes.
Passa um povo vencido acorrentado e trágico.
Vitorioso o rei regressa à frente dos exércitos
e há fome e peste nas aldeias arrasadas.
Algures na noite um homem canta.
Algures no tempo entre os cativos canta um homem.
Toda a estranha sintaxe dos lamentos
em línguas mortas já de gente aniquilada
cidades destruídas campos devastados
uma mulher violada pelas chamas
o canto dos guerreiros entre fogo e sangue
o canto dos vencidos entre silêncio e lágrimas.

Quem habitou estas ruínas
quem já passou por estes campos e estas terras
quem já cantou onde hoje canto?
Passa um povo vencido acorrentado e trágico
vitorioso o rei regressa à frente dos exércitos
algures no tempo um homem canta.
Algures na noite um homem canta ainda.

Fenícios Árabes Cartagineses
Celtas Romanos Visigodos
ó cidades já perdidas
quem pôs nas minhas mãos este sinal?

Tão longe tão longe a carne do poema.
E aqui estou desfolhado. Digo:
eu sou a minha história na história do poema.
E as línguas já passadas estão na língua renovada
são o ritmo do ritmo do meu canto
quando uma voz familiar e colectiva
dá uma voz à minha voz e de novo se junta
àquele dos cativos que não cessa o seu cantar.

Vai minha canção vai como um navio
sete mares são pequenos
para o rumo que tu levas.

E vós cavalos bárbaros das mãos
algures na noite um homem canta ainda
algures um povo passa acorrentado e trágico
e vós cavalos bárbaros levai-me.
Sobre as colinas desta terra voltada para o mar
plantai o meu poema.

Ali quero ficar
completamente nu e desfolhado
por todas as cidades destruídas
e por todos os povos arrasados
pelo passado pelo presente pelo futuro
ali quero cantar aos que passarem
uma canção que fale de quem somos:
das nossas casas e dos nossos violinos.
Do nosso pão e nossas rosas.
Da nossa vida e morte. Uma canção onde cantemos
transitórios eternos morrendo passando
ficando ainda
nos demorados violinos da canção tão breve.

Vai minha canção vai como um navio
sete mares são pequenos
para o rumo que tu levas.
Em qualquer parte alguém te espera.

Fenício árabe cartaginês
celta romano visigodo
tenho mil pátrias e uma pátria
e a minha pátria és tu canção.
Aqui habito sem fronteiras e sem raças
e tenho as mãos abertas para todos
aqui posso falar em todas as línguas do mundo
porque nenhuma é estrangeira.

Vai minha canção como um navio vai e leva-me
verso a verso desfolha-me
no coração de cada homem.

Manuel Alegre, in Praça da Canção

Comentários: 3

Blogger Rogério G.V. Pereira escreveu...

Li isto, há 50 anos atrás
a bordo do Vera Cruz

"sete mares são pequenos
para o rumo que tu levas."

e era já tão grande
aquele mar
seguindo o rumo
que nunca quis levar

(não sei se falo nisto no meu livro...)

01 janeiro, 2020 19:21  
Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Já conhecia esta Canção Primeira, mas terei de voltar para a reler. Venho com os olhos e o coração demasiado cansados e, infelizmente, vejo-me obrigada a dosear as leituras a conta-gotas...

Abraço

02 janeiro, 2020 11:20  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

No tempo da "outra senhora", houve dois livros que me marcaram profundamente, como desmentidos que foram à propaganda do regime, na qual eu acreditava piamente até à minha adolescência. Digamos que a sua leitura foi para mim uma espécie de passagem para a idade adulta, quando deixei de ser crédulo. Um destes livros foi, precisamente, a Praça da Canção de Manuel Alegre, o qual foi complementado pelas audição de diversas interpretações musicais de alguns dos poemas nele contidos, por Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire, etc.

O outro livro que me marcou profundamente,a ponto de me deixar em estado de choque, foi também de um poeta, mas moçambicano. Refiro-me ao livro Chigubo, de José Craveirinha, numa proibidíssima edição da Casa dos Estudantes do Império. Eu não sabia nada de África, a não ser a glorificação da colonização portuguesa, "civilizando" e "cristianizando" os negros "primitivos", que era feita pela máquina de propaganda do Estado Novo. O livro Chigubo, de José Craveirinha, foi um murro no meu estômago. Neste endereço pode ver-se uma reprodução dessa primeira edição de Chigubo: https://www.uccla.pt/sites/default/files/chigubo.pdf.

04 janeiro, 2020 02:00  

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