26 junho 2020

+ perto do céu

Enquanto eu te escrevo,
Sarajevo morre lenta
uma morte amordaçada
no silêncio dos tiros
e na paz da granada.
A noite acoita o metralhar
será homem ou fera
este triste uivar?
Posso ver as avenidas,
coloridas, presentes,
hoje sombras despidas
do passado distante.
A vez do vizinho
que hoje foi a enterrar,
sozinho, claro, que morrer é ficar.
Os amantes ali estão
abraçados no asfalto
onde as balas lá do alto
os apanharam à traição,
no coração, que é o sítio ideal
para quem mata a paixão,
que amar é fatal.

(refrão)

+ perto do céu
anjo d'alma azul
+ perto do céu
+ longe que o sul.

Calor, já não há,
só se for o da mortalha
que é o lençol que me agasalha
e a cama onde me deito
e me enrolo sobre o peito,
recordando o céu azul,
e quer a norte quer a sul
a liberdade de fugir.
Ficar a resistir,
morrer, nem pensar,
que a coragem de aqui estar,
como ontem em Guernica,
é a vontade de quem fica.
Vazia a dispensa
é pior a indiferença.
Auschwitz ou Buchenwald
que afinal foram debalde,
porque as câmaras de gás
não ficaram para trás
estão aqui à minha frente.
Eu só quero estar presente
de novo em Nuremberga,
porque um povo não se verga.

(refrão)

Por isso aqui estou
com arma sem munição,
carne para canhão
para contar toda a verdade…
… e liberdade.
E no futuro, nem sequer se vão lembrar
que tudo dói, mesmo Tolstoi
lido à luz da curta vela.
Sarajevo donzela
tantas vezes violada,
sempre só, abandonada.
Tudo o que tenho
é o empenho de quem sonha.
O silêncio é vergonha,
arma mortal, punhal
que mata e maltrata
escondido, sem ruído,
tantas vezes repetido,
e penetra no meu corpo,
que deixa morto
pelas costas…
sem resposta.

Agora é de vez.
Faz frio no inferno deste Inverno.
Cada bomba é uma sombra de indiferença.
Crença que tem que mudar.
Há que gritar e mostrar
ao mundo os mortos
que o mundo ignora
e demora a perceber.
Uso a caneta
que é a minha baioneta,
país eterno
que deixo no caderno
tenho medo que me esqueças
e me peças para calar a voz,
mas não o faças,
porque ontem foram outros
e hoje nós.

(refrão)

Pedro Abrunhosa, in Viagens


Mais Perto do Céu, por Pedro Abrunhosa e os Bandemónio

Comentários: 3

Blogger Ricardo Santos escreveu...

Gosto bastante do Abrunhosa aqui com os Bandemónio. Excelente música e boa poesia, embora a poesia seja sempre difícil de interpretar !

26 junho, 2020 21:36  
Blogger Rogério G.V. Pereira escreveu...

Bem podia
dizer-se
que se trataria
de outra pandemia
a que chamamos guerra

a Banda não se chama
Bandemónio por acaso

27 junho, 2020 00:04  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Aqui temos um exemplo de que Pedro Abrunhosa não é só um bom músico. É também um bom poeta. Só é pena que nesta música ele fale tão depressa que quase não se consegue entender o que diz. E o que ele diz é importante.

Abrunhosa refere-se a Sarajevo, pois esta música é dos anos 90. Se fosse agora, referir-se-ia à Síria ou ao Iémen. Ou poderia referir-se à Palestina, ainda e sempre, que o corrupto Benjamin Netanyahu ameaça criminosamente pôr (ainda mais) a ferro e fogo.

28 junho, 2020 02:36  

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