25 julho 2022

A morte a rir dos nossos verdes anos




OS VERDES ANOS
1963 – Carlos Paredes / Pedro Tamen

"Era um segredo
Sem ninguém para ouvir
Eram enganos e era um medo
A morte a rir
Dos nossos VERDES ANOS" …

(…)

PRIMEIRA HISTÓRIA:

Mucondo, (Norte da Angola), 17 de Setembro de 1968,

Estava uma tarde de cacimbo. Refastelado na minha cama, lia calmamente a “Comarca da Sertã”, chegada pela manhã no “Teco Teco”, com as notícias fresquinhas da “terra”.

Na outra, ao lado, o Saraiva esmiuçava as linhas e as entrelinhas do aerograma também recebido da madrinha de guerra ou namorada, não sei bem.

Nisto, alguém bate à porta e exclama em voz alta:

- Furriel Barata, o Sr. Capitão pede-lhe que vá falar com ele.

Com desembaraço levantei-me, desenruguei as calças e a camisa, ajeitei o cabelo e lá fui.

Chegado à sala dos oficiais encontrei o Capitão Sequeira Marques reunido com os três alferes. Este, ao ver-me, simpaticamente pediu-me que me juntasse ao grupo e me sentasse. Ao princípio, não percebi bem o que é que estava ali a fazer. Não era habitual um sargento reunir-se com os oficiais.

Afinal, tratava-se da preparação de uma “operação” a nível da Companhia, a ter início na madrugada do dia seguinte. Eu estava ali porque o Alferes Oliveira, comandante do meu “grupo de combate”, se encontrava de férias e eu, nessa circunstância, seria o seu substituto na cadeia hierárquica.

Ali estivemos reunidos uns dez minutos. Pouco nos foi adiantado sobre detalhes da “operação”, que seria confidencial. Mas, da curta conversa, percebi que seria de grande risco.

A minha missão, no momento, resumia-se a que deveria preparar “o pessoal” do meu “grupo de combate” para a partida no dia seguinte, às cinco e meia da manhã, e coordenar a logística de mantimentos e munições para dois dias.

À hora aprazada, lá estava “todo o pessoal” reunido na parada, subindo sem demoras para as “Berliets” e “Unimogs”. Tudo pronto para o arranque. Não tardou que o Capitão desse a ordem de partida.

Andada uma centena de metros, virámos à esquerda. Aí, apercebi-me de que iríamos para os lados do Rio Lifune, virando costas ao “Mufuque”, de má fama. Isso trouxe um pouco de alívio à minha alma inquieta, na pele de “condutor de um grupo de homens em missão de combate”, que sabia ser de alto risco, e por isso, sentia a enorme responsabilidade de os trazer todos a salvo, de volta ao quartel do Mucondo.

Meia hora de caminho. Desviámos da picada para uma zona de capim. Param os carros, desligam-se os motores, ordens para apear e montar de imediato a segurança. Os carros regressam, gera-se um profundo silêncio, os “quadros” juntam-se para ouvir, em surdina, as instruções do “comandante”. Só ali soubemos, em detalhe, ao que íamos.

Estávamos ,“estrategicamente”, em cima do “trilho” que deveríamos seguir até ao “objectivo”. Fazenda Caiado, uma roça de café há muito abandonada onde, recentemente, haviam sido detectados sinais de alguns movimentos….

Calhou ao “grupo de combate” que eu interinamente comandava, abrir caminho, ir na cabeça da fila.

Senti o enorme peso dessa decisão. Sem lamentos, porque esses ali não teriam lugar. Eramos um grupo muito disciplinado, solidário e amigo. Oficiais, sargentos e praças, vestíamos a mesma farda e já tínhamos passado por muito….

Afinal, alguém teria que ir na testa da coluna !

Por uma questão de coerência e respeito pelos dois outros sargentos do pelotão, mandei para a frente a minha Secção, comandada por mim próprio.

Para desanuviar, e para me sentir melhor com a minha consciência, preferi não atribuir posições. Os meus sete homens dispuseram-se, então, no “trilho”, de forma livre e aleatória.

Corajosamente, o Serafim (meu conterrâneo de Proença a Nova) colocou-se em primeiro. Em segundo o Santos, depois o Curto, a seguir o cabo Pires,. Eu era o quinto da fila. Atrás de mim o Norberto, o homem da ”bazuca” e, por aí fora, até ao último dos cerca de oitenta homens que compunham a “operação” em marcha.

Eram três os pelotões operacionais que compunham esta força militar, que, como de costume, ao longo do dia iriam revezar-se nas posições de maior exposição ao risco.

O Capitão Sequeira Marques que nos comandava, dava o exemplo, que incutia confiança ao pessoal. Seguia no primeiro terço da fila, acompanhado do radiotelegrafista Cristino e do enfermeiro Pedro.

Acabava de amanhecer. De mochilas às costas, olhos bem abertos e ouvidos atentos, cartucheiras carregadas e G3 em riste, iniciámos a marcha, muito devagar, espaçados de dois em dois metros.

A progressão iniciou-se dentro da mata cerrada. Primeiro uma extensa zona plana, depois uma íngreme e longa descida até que chegámos a uma larga clareira, sem arvoredo, uma extensa lavra de mandioca, muito bem cuidada, atravessada por um pequeno riacho de água corrente e límpida.

Percebemos de imediato que, a partir daqui, poderíamos ser surpreendidos. Pegadas muito frescas de poucas horas, no orvalhado trilho de terra batida, notavam-se agora muito claramente. Aconselhavam a uma progressão bem lenta, com toda a atenção e o maior cuidado.

Prosseguimos o nosso caminho. Não destruímos nada, a lavra ficou intacta.

Voltámos a entrar na mata fechada e a seguir o “trilho”. A partir daqui, era mais vivo e mais largo, parecia ter mais uso.

De início, uma cansativa escalada, depois mais suave, chegamos a um planalto. Enormes e frondosas árvores tapavam o sol que já ia alto. De repente fez-se escuro, parecia ter anoitecido. Não se ouvia nada, nem o chilrear das aves exóticas que por ali abundavam.

A “Companhia” continuava a sua marcha lenta, excessivamente lenta, num silêncio enervante, sepulcral. Os quatro homens que seguiam à minha frente marcavam a cadência. Despistavam a existência de qualquer armadilha, ou “bailarina” que pudesse estar enterrada no chão. O trilho seguia, serpenteando majestosos troncos. Parecia que não iria ter fim, que não iriamos encontrar por ali viva alma.

Nisto, no silêncio da floresta, ecoou com grande estrondo, o som de um tambor.

Veio da direita, da mata cerrada. Não se via nada!..Uma manobra de diversão, para desviar a nossa atenção para aquele local.

Quase em simultâneo, ouviu-se o forte estalido de um tiro!!!.

Não veio do mesmo sítio. Veio de mais de perto, um pouco mais à esquerda. Quase no “nariz da coluna”.

Todos para o chão!

Enquanto uns tomaram posições atrás das árvores, outros, já protegidos, responderam com ensurdecedoras e repetidas rajadas, para a frente e para a direita, a zona do ataque.

O Saraiva, meu camarada e amigo de “todas as guerras” (desde Tavira), para nos proteger as costas, chegou-se mais à frente com a sua Secção.

As G3 vomitavam estridentes rajadas. Era arrepiante o silvar das balas. Faziam ricochete nas árvores e provocavam zumbidos por todo o lado.! Um perigo para nós próprios.

Todos se movimentavam rastejando, procurando o melhor abrigo para o que aí viesse…..

Superando o barulho da metralha, um grito lancinante rasgou no ar:

- “O SANTOS” !

O Santos não rastejou…. Permanecia inerte. Deitado no trilho com a G3 ao lado, ali, a meia dúzia de metros de mim.

Avisei para trás:

- Passem a palavra ao Capitão.

Estará morto ou apenas ferido ?! Pensei, em pânico.!

Porra! Um “puto” de vinte anos! Isto não podia ter acontecido! Merda, que puta de vida !.

Mais meia dúzia de rajadas da “brawning” do Leitão para cima “deles”. Esta, falava-lhes mais grosso, impunha-lhes mais respeito!.

Mais três ou quatro morteiradas lá para o sítio!

Só para intimidar, criar uma maior distância com o “outro lado”, mantê-los de cabeça baixa…

Não havia tiros de resposta !!! Teriam fugido ou estariam a vigiar-nos?!

Tínhamos que nos afoitar…. Cobertos por outros camaradas, arrastámo-nos no descampado para junto dele.

Tinha uns olhos de aflição, fixos, muito abertos. Não falava, mas mexia a boca e respirava!

Agora era preciso socorrê-lo da sua agonia, criar um perímetro de segurança à sua volta.

O Capitão Sequeira Marques não tardou. Já está entre nós!….

Que grande alívio para mim !. Chegou como um relâmpago, acompanhado do Pedro, o enfermeiro.

Com a faca de mato, rasgou-lhe a camisa ensanguentada. Ficou exposta uma grande ferida na zona lombar. Era a cratera por onde lhe saíra a bala. Não se percebia muito bem por onde entrara, nem os estragos que teria provocada dentro do seu franzino corpo.

Temíamos o pior. O Santos continuava a respirar e a esvair-se. Foram momentos de grande tensão, momentos angustiantes aqueles que se seguiram.

O Pedro dá-lhe sedativos e tenta estancar-lhe o sangue que jorrava em catadupa da grande ferida. O Capitão já está no rádio com o Cristino. Tentam comunicar com a sede do Batalhão, no Zemba. Necessitávamos de uma rápida evacuação.

Passou um desesperante quarto de hora. O “Santos”, começava a dar sinais de uma grande debilidade, enquanto lutava pela vida.

Era preciso que aguentasse mais um pouco, até que chegasse o helicóptero e o médico. O Pedro estava, finalmente, a conseguir estancar-lhe a enorme perda de sangue, que lhe cobria todo o tronco.

Agora, teríamos que sair muito rapidamente daquele local. Estava a tornar-se extremamente perigoso permanecermos ali mais tempo, imobilizados, naquela mata fechada e húmida. Pairava no ar um estranho silêncio, a sensação de estarmos a ser cercados pelos “do outro lado”.

A acção directa do Capitão Sequeira Marques, oficial do quadro, pouco mais velho que nós, mas muito mais experiente, foi decisiva e da maior importância nestes momentos dramáticos. Transmitiu-nos a confiança e a serenidade que começava a faltar a alguns elementos sob grande tensão nervosa.

Feita a maca improvisada, abandonámos o trilho e seguimos pela mata, até que encontrámos uma larga clareira livre de árvores. Montámos um perímetro de segurança e ali ficámos, em tensão, contando os minutos que pareciam horas, até ao momento em que, para nosso grande alívio, o helicóptero desceu e levou o nosso camarada ferido.

Quebrado o efeito de surpresa, invertemos a marcha e regressámos ao quartel.

“O Santos”, que reside na Régua, de quem hoje continuo amigo, e vejo pelo menos uma vez por ano, foi evacuado para Luanda e mais tarde para o Hospital Militar de Lisboa.

Teve sorte. A bala entrou-lhe um pouco acima do esterno e passou a escassos dois centímetros do coração. Contudo, afectou de forma irreversível outros órgãos vitais, o que lhe tem condicionado a qualidade de vida, com internamentos frequentes no Hospital Militar.

SEGUNDA HISTÓRIA :

Duas semanas depois, numa Sexta Feira…

à mesma hora… no mesmo trilho…no mesmo sitio… o mesmo tambor, …

….à frente seguia outra secção, que não a minha. No lugar do “Santos” ia o “Joaquim Pinto”.

Não teve a mesma sorte. O helicóptero não o levou para Luanda, foi para a Capela de Santo Estêvão, no quartel do Mucondo.

Durante vários dias repousou ali, em paz, dentro de uma urna de madeira…..

…. até que veio um avião e o levou, de volta a casa, onde a mulher e a família o esperavam !

Perdeu a vida nos seus “VERDES ANOS”, sem saber muito bem porquê !

Coisas do Tempo da Outra Senhora

Fevereiro de 2020


Joaquim Eduardo Silva Barata


A capela do quartel do Mucondo, no norte de Angola, dedicada a Santo Estêvão (Foto: José Prudêncio)

Comentários: 2

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

A morte, como sempre, cumpria desapaixonadamente o seu papel. Era a guerra quem se ria dos nossos verdes anos...

Abraço!

25 julho, 2022 10:57  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Eu não fui contemporâneo do autor deste texto, mas também fiz três ou quatro operações militares na zona do Mucondo, no norte de Angola. Nem todas correram tão bem como desejávamos, mas agora não é o momento para falar disso. A guerra é uma maldição.

26 julho, 2022 19:56  

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