23 junho 2011

Noite de São João

Noite de São João no cais da Ribeira, Porto (Foto: Carlos Romão)

É uma verdade conhecida de todos que a Noite de São João é a maior festa da cidade do Porto. Mas quem nunca a viveu pessoalmente, vibrando com a saudável "loucura" que se apossa da multidão que inunda as ruas do centro da cidade, não imagina até que ponto esta festa pode ser uma libertação dos maus humores e dos rancores que, por uma razão ou por outra, se foram acumulando em cada um de nós ao longo de todo um ano.

Além de ser uma libertação, o São João do Porto é uma confraternização gigantesca, em que as pessoas de todas as idades, cores, credos e condições sociais se misturam de sorriso nos lábios, sem atropelos nem agressividade, apenas para se sentirem plenamente humanos, rodeados por outros seres humanos seus irmãos, e felizes por compartilharem com eles a sua humanidade e a sua alegria.



Reportagem do Travel Channel, em inglês, sobre o São João do Porto

A festa de São João (assim como as festas dedicadas a Santo António e a São Pedro, que lhe estão próximas no calendário) resulta da cristianização de uma festividade pagã milenar, que os povos europeus realizavam todos os anos por ocasião do solstício de verão. No tempo dos Romanos, este solstício calhava a 24 de Junho, dia que, no calendário cristão, veio a ser dedicado a São João Batista.

Assim, um pouco por toda a Europa -- desde Portugal até à Rússia, desde a Noruega até Malta, desde a Irlanda até à Ucrânia -- se celebram por estes dias festividades que têm marcadas influências pagãs, relacionadas com a fertilidade da terra e das mulheres e em que o fogo desempenha geralmente um papel predominante. Nos países escandinavos, por exemplo, onde o Midsommar (nome das festividades em sueco) é muito popular, fazem-se enormes fogueiras nas margens dos lagos e dos fiordes, além de se erguerem mastros cobertos de decorações.

As colonizações e migrações europeias estão na origem de festividades idênticas existentes, também, em muitos países do continente americano, com particular destaque para o Brasil.

20 junho 2011

As guerras do Solnado


Enquanto durou a Guerra Colonial, isto é, desde 1961 até 1974, o regime de Salazar e de Caetano impôs em Portugal um silêncio absoluto a todas as vozes que pusessem em causa a legitimidade de tal guerra. Quem, mesmo assim, se atrevesse a fazê-lo, era imediatamente apontado a dedo como um traidor à Pátria e teria, de certeza absoluta, grandes problemas com a polícia política, a famigerada PIDE/DGS. Mesmo a simples defesa da Paz e da concórdia entre os povos, como valores inestimáveis para a Humanidade, trouxe sérios dissabores a muitos portugueses, incluindo sacerdotes da Igreja Católica.

Foi neste dificílimo contexto político que Raul Solnado, que foi um dos mais notáveis atores cómicos portugueses do séc. XX, se atreveu a intervir neste campo. Não o fez pondo em causa a Guerra Colonial em concreto, mas ridicularizando a guerra em geral -- todas as guerras --, em geniais rábulas que protagonizou nos palcos do Parque Mayer, em Lisboa, entre outros lugares. Eu não sei que dificuldades é que Solnado teve que enfrentar para conseguir fazê-lo. Imagino que muitas. Mas a verdade é que a apertada censura da época permitiu que tais rábulas fossem levadas à cena. Apesar de tudo, o teatro de revista era naquele tempo um espaço em que, de uma maneira controladíssima, é certo, se podia fazer um pouquinho de crítica social e política. Esta é uma das razões que explicam a enorme popularidade que o teatro de revista tinha então.

Quando falavam na "Guerra do Solnado", era à popularíssima "Guerra de 1908" que as pessoas se referiam. Mas Raul Solnado também abordou o tema da guerra em mais duas rábulas, pelo menos: "Chamada para Washington" e "É do Inimigo?".



A Guerra de 1908



Chamada para Washington



É do Inimigo?

12 junho 2011

A padroeira dos campinos

A ermida de Nossa Senhora de Alcamé (Foto: Descubra Lisboa)

A igreja de Nossa Senhora de Alcamé, dedicada a Nossa Senhora da Conceição, fica situada em plena lezíria ribatejana, muito perto da margem esquerda do Rio Tejo, em frente do Mouchão de Alhandra, que é uma ilha fronteira a Alhandra, Sobralinho e Alverca. É uma bonita construção neoclássica do séc. XVIII, da autoria de José Manuel de Carvalho e Negreiros, que se ergue altaneira sobre uma plataforma um pouco mais elevada do que a lezíria circundante, por causa das cheias no rio. É, por isso, bem visível de longe. Para quem sai de Vila Franca de Xira em direção ao sul, chega-se à igreja tomando-se uma estrada de terra batida que se encontra à direita logo a seguir à ponte, no local onde a Estrada Nacional nº 10 faz uma ampla curva antes de se lançar na chamada Reta do Cabo.

A igreja impressiona, sobretudo, pela sua solidão no meio dos campos e pastagens, pertencentes à Companhia das Lezírias, onde deambulam cavalos e, sobretudo, touros. Gado bravo, pois claro. Em resultado do seu isolamento, a igreja foi alvo de vandalismo em 1999, do qual resultou a destruição de um valiosíssimo retábulo e o roubo da imagem de Nossa Senhora da Conceição. No lugar do retábulo está agora uma fotografia do mesmo e, nos dias de festa, é trazida para a igreja uma reprodução da imagem original, vinda de Samora Correia.

Como disse, a igreja é dedicada a Nossa Senhora da Conceição, mas o povo deu-lhe o nome de Nossa Senhora de Alcamé. Este nome Alcamé é de origem árabe e significa "trigo". Nossa Senhora de Alcamé é a padroeira dos campinos do Ribatejo e a ela está associada uma lenda, que reza assim:

Em tempos, um pastor encontrou uma pequena cobra e se dedicou a criá-la, alimentando-a com o leite das ovelhas. A certa altura terá adoecido, ficando vários meses sem ir ao campo. Quando lá voltou, foi ao mouchão e assobiou pelo réptil, como costumava fazer. A cobra apareceu, mas não o reconhecendo, atacou-o de goelas abertas. Aflito, o homem invocou a protecção da Virgem, que apareceu em sua glória, e lançou para a boca da serpente uma maçã. Engasgada e sufocada, a cobra morreu e o pastor salvou-se.

04 junho 2011

Dança dos Espíritos Sagrados

Orfeu e Eurídice, bronze de Peter Vischer, o Moço (1487-1528), Museum für Kunst und Gewerbe, Hamburgo, Alemanha

Se eu tivesse que ir viver para uma ilha deserta e só pudesse levar uma coisa comigo, eu não hesitaria um momento sequer em escolher um CD, MP3 ou outro dispositivo qualquer que contivesse a Dança dos Espíritos Sagrados, da ópera Orfeo ed Euridice, do compositor alemão Christoph Willibald Gluck. É a minha música preferida de entre todas.

Foi esta música, mais do que qualquer outra coisa, que me aliviou o espírito angustiado, há muitos anos, quando eu me encontrava num período difícil da minha vida. Peço que não me leve a mal esta espécie de confissão íntima que acabo de fazer. Não quero que tenha pena de mim. Apenas quero realçar até que ponto eu gosto desta obra e quanto ela foi um bálsamo para mim. A Dança dos Espíritos Sagrados, de Gluck, é um verdadeiro refrigério para a alma.


Dança dos Espíritos Sagrados, da ópera Orfeo ed Euridice, de Christoph Willibald Gluck (1714-1787). A coreografia que aqui se vê é de Pina Bausch (1940-2009).

A música da Dança dos Espíritos Sagrados é constituída por dois temas, A e B. Primeiro é tocado o tema A, depois o tema B e por fim é repetido o tema A. No vídeo acima, existe um estranho acrescento de algumas notas, entre o tema B e a reexposição do tema A (entre os 6 minutos e 13 segundos e os 6 minutos e 27 segundos), que não fazem parte da partitura original de Gluck. Ainda por cima, essas notas não "encaixam" muito bem no resto da obra. Dão a impressão de que foram metidas "a martelo" e foram mesmo. Desconheço a razão de tão insólito acrescento. Não bastariam alguns segundos de silêncio, tal como foi feito entre o tema A e o tema B? A obra, exatamente como Gluck a compôs, pode ser ouvida, por exemplo, aqui:

http://www.youtube.com/watch?v=xTZgMQ7TVes

01 junho 2011

Dois poemas de Manuel António Pina

Pensar de pernas para o ar
é uma grande maneira de pensar
com toda a gente a pensar como toda a gente
ninguém pensava nada diferente

Que bom é pensar em outras coisas
e olhar para as coisas noutra posição

as coisas sérias que cómicas que são
com o céu para baixo e para cima o chão


A ANA QUER

A Ana quer
nunca ter saído
da barriga da mãe.
Cá fora está-se bem
mas na barriga também
era divertido.

O coração ali à mão,
os pulmões ali ao pé,
ver como a mãe é
do lado que não se vê.

O que a Ana mais quer ser
quando for grande e crescer
é ser outra vez pequena:
não ter nada que fazer
senão ser pequena e crescer
e de vez em quando nascer
e voltar a desnascer.

Manuel António Pina, Prémio Camões 2011


(Foto de autor desconhecido)