29 abril 2022

Vítimas "indignas"


(Foto de autor desconhecido)

Apesar de ter vivido em Portugal nos últimos 32 anos, nasci e cresci em Nova Iorque, por isso, nos dias que se seguiram aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, recebi cerca de cinquenta e-mails de amigos e conhecidos de todo o mundo a perguntar se os meus amigos de infância e familiares estavam bem e em segurança. Nas mensagens, a grande maioria deles expressou a sua solidariedade comigo e com outros nova-iorquinos. No entanto, alguns escreveram que, embora não fossem a favor do terrorismo, podiam facilmente compreender que os muçulmanos se opusessem violentamente às recentes guerras travadas pelos Estados Unidos no Iraque – bem como ao apoio dos Estados Unidos a Israel – e estivessem ansiosos por se vingar dos americanos. Dois destes meus amigos não exprimiram qualquer empatia pelas vítimas do ataque e explicaram que os Estados Unidos “estavam a pedir isso” – sendo “isso” um ataque em solo americano.

Apesar de eu defender há décadas que a política externa dos Estados Unidos no Médio Oriente era, em grande parte, criminosa, aquelas mensagens pareceram-me incrivelmente insensíveis e inadequadas – e, dado o estado de preocupação e de choque em que me encontrava, pareceram-me também bastante crueis. No caso de um deles, aproveitei para lhe perguntar se ele diria a um amigo cujo filho acabara de morrer com uma overdose de drogas que o jovem estava “a pedir isso”? Ou se, pelo contrário, não expressaria a sua dor e preocupação? Acrescentei que há um momento para exprimir a compreensão e a solidariedade e outro momento – mais tarde – para tentar fornecer algum contexto e oferecer explicações. Disse-lhe também que nesse momento atribuir a culpa a quem quer que seja, e não aos terroristas, era completamente inútil porque – numa altura em que os nova-iorquinos procuravam familiares desaparecidos e enterravam os seus mortos – isso só servia para despertar sentimentos de ressentimento, em mim como em outros americanos. Sugeri que daí a alguns meses, se ele quisesse, poderíamos tomar um café juntos e conversar sobre como a política externa dos EUA tinha contribuído para o aumento de ativistas muçulmanos que acreditavam que o assassinato de 3.000 homens, mulheres e crianças era justificável e poderia promover a sua causa.

Nunca me respondeu. Nunca mais falei com ele.

E assim, uma das lições que os ataques aos Estados Unidos em 2001 me ensinaram é que há pessoas que se mostram incapazes de empatia se as vítimas são de países cujas políticas essas pessoas não aprovam ou cujos líderes se comportam de maneiras que consideram censuráveis. Para eles, existem “vítimas dignas” e “vítimas indignas”. No caso do 11 de setembro, os 3.000 nova-iorquinos e outros que morreram nos ataques terroristas às Torres Gémeas eram, segundo essas pessoas, “indignos” por causa da política externa do governo dos EUA.

Menciono isso agora porque alguns comentadores e políticos decidiram que os homens, mulheres e crianças ucranianos assassinados em Bucha, Mariupol e outras cidades e vilas de toda a Ucrânia também são “vítimas indignas”. Porquê? Porque o presidente Zelensky e a liderança do país tiveram a audácia de desejar aproximar-se do resto da Europa e – talvez brevemente depois – buscar a adesão à NATO. Esse foi um erro imperdoável, dizem eles, e suficiente para explicar a invasão de Putin e a sua brutalidade implacável. De facto, muitas dessas pessoas acreditam que o ditador russo pode muito bem ser afinal a verdadeira vítima deste conflito. Por exemplo, a deputada trabalhista do Parlamento Britânico Dianne Abbott disse sobre o conflito durante a segunda semana de fevereiro: “Vemos que os Estados Unidos decidiram que precisam de enviar as suas forças militares e outros tropas da NATO para as fronteiras da Rússia. Isso por si só deveria mostrar-nos que as alegações de que a Rússia é o agressor devem ser tratadas com ceticismo”.

Em Portugal, o Partido Comunista recusou-se a denunciar a invasão da Rússia quando no final de fevereiro foi votada no Parlamento uma moção nesse sentido. O seu porta-voz, João Oliveira, ecoando os sentimentos de Abbott, disse que os Estados Unidos eram responsáveis ​​pela guerra e “estavam prontos a sacrificar todos os ucranianos e europeus para promovê-la”.

Nas últimas semanas, Oliveira, Abbott e muitos outros políticos e comentaristas em toda a Europa fizeram o possível para transformar Putin em um peão reativo manipulado pela OTAN, pelos Estados Unidos, pelo presidente ucraniano Zelensky e pela Comunidade Europeia. Todos eles de alguma forma conseguem ignorar o facto de que toda a carreira ditatorial de Putin tem sido baseada numa sede insaciável de dominação e poder – e muitas vezes caraterizada por atos de extrema crueldade.

Não, neste momento, enquanto estão a ser cometidos crimes de guerra na Ucrânia – enquanto há pais que escrevem os nomes e os endereços dos filhos na sua própria pele para o caso de eles ficarem órfãos – eu não posso aceitar que os ucranianos sejam “vítimas indignas” ou que eles estavam “a pedir isso”. Putin tinha alternativas à invasão e é responsável por cada morte causada pelos ataques do exército russo – assim como é responsável pela prisão de milhares de russos corajosos que manifestaram a sua oposição a esta guerra imoral. Haverá muito tempo para oferecer teorias sobre o que a Ucrânia e o Ocidente podiam ter feito para evitar este conflito quando a guerra terminar e os mortos estiverem enterrados. Mas este não é o momento. Este é o momento da empatia e da solidariedade – de ajudar ativamente os ucranianos enquanto lutam pela sua própria sobrevivência.


Richard Zimler, escritor norte-americano. Tradução de António Costa Santos. O original, em inglês, foi publicado em Tikkun

25 abril 2022

25 de Abril de 1974, o dia da libertação


(Foto: Jean-Claude Francolon)

22 abril 2022

Os ninguéns


No Bangladesh (Foto: GMB Akash)


LOS NADIES

Sueñan las pulgas con comprarse un perro y sueñan los nadies con salir de pobres, que algún mágico día llueva de pronto la buena suerte, que llueva a cántaros la buena suerte; pero la buena suerte no llueve ayer, ni hoy, ni mañana, ni nunca, ni en lloviznita cae del cielo la buena suerte, por mucho que los nadies la llamen y aunque les pique la mano izquierda, o se levanten con el pie derecho, o empiecen el año cambiando de escoba.

Los nadies: los hijos de nadie, los dueños de nada.

Los nadies: los ningunos, los ninguneados, corriendo la liebre, muriendo la vida, jodidos, rejodidos:
Que no son, aunque sean.

Que no hablan idiomas, sino dialectos.

Que no profesan religiones, sino supersticiones.

Que no hacen arte, sino artesanía.

Que no practican cultura, sino folklore.

Que no son seres humanos, sino recursos humanos.

Que no tienen cara, sino brazos.

Que no tienen nombre, sino número.

Que no figuran en la historia universal, sino en la crónica roja de la prensa local.

Los nadies, que cuestan menos que la bala que los mata.


Eduardo Galeano (1940–2015), escritor uruguaio

15 abril 2022

Páscoa na Guerra Colonial


Eu não sei quem foi o autor deste filme, feito em 1971, porque o blog de onde o repesquei (CCav2692 - SUS! A ELES!) não diz, mas presumo que tenha sido alguém ligado aos serviços de fotocine do Exército. Os browsers, em geral, conseguem mostrar os vídeos do Blogger diretamente a partir da fonte, sem necessidade de uma interface do Youtube, Vimeo ou Dailymotion, e neste caso costumam encher o ecrã todo com as suas imagens. Portanto, talvez este filme também possa ser visto em tamanho grande, apontando diretamente para aqui

Eu peço imensa desculpa por publicar um post com um vídeo tão desinteressante como este, mas pessoalmente este vídeo diz-me muito. Perdoe-se-me o egoísmo. É um pequeno filme sobre o embarque de tropas para uma operação militar helitransportada na Guerra Colonial, em Zemba, norte de Angola, no ano 1971.

Quando eu vi este filme pela primeira vez, dei um salto na cadeira, pensando: «Eu estou ali!» Não, não estava, mas as cenas que nele estão retratadas são exatamente iguais às que eu próprio vivi dois anos depois, naquele mesmo lugar e naquelas mesmas circunstâncias, tal e qual. O quartel do mato, quase todo constituído por barracões de madeira cobertos de chapa de zinco, era exatamente o mesmo. A pista de aviação era exatamente a mesma. Os montes em volta eram exatamente os mesmos. As florestas que os cobriam eram exatamente as mesmas. A neblina que se dissipava pela manhã era exatamente a mesma. Até os helicópteros pareciam ser exatamente os mesmos. Só os participantes não eram os mesmos: no filme só se veem europeus, enquanto a minha companhia tinha bastantes africanos nas suas fileiras. Só no meu grupo de combate, apenas 50% dos soldados eram portugueses, pois os restantes eram angolanos, que foram as pessoas mais fantásticas que conheci em toda a minha vida. Morro de saudades deles. Não os esqueço, nunca.

Na minha qualidade de alferes miliciano atirador de Infantaria, fui encarregado de comandar o grupo de assalto a uma base de guerrilheiros da FNLA, no decurso de uma operação helitransportada. Esta foi a única operação militar que a minha companhia fez de helicóptero, e não a pé como todas as outras, e o seu comando foi entregue logo a mim, apesar de eu não estar minimamente preparado para tal. Mas isto é outra questão.

A "minha" operação teve o seu início na Sexta-Feira Santa (20 de abril) e terminou no Domingo de Páscoa (22 de abril) de 1973. Apesar de ter uma certa importância estratégica, a base atacada era bastante pequena, não justificando um tão grande poder de fogo por parte da Força Aérea, que mobilizou aviões a jato e um avião a hélice, todos a dispararem foguetes, além de um helicanhão, que era um helicóptero com uma metralhadora pesada a bordo. A base da FNLA foi tomada sem resistência, pois os guerrilheiros que a guarneciam puseram-se em fuga antes de entrarmos nela, "dissolvendo-se" na floresta envolvente.

Recolhido o espólio e destruída a base, empreendemos um patrulhamento pelas redondezas. Na beira de um caminho, a uma certa distância da base, deparamo-nos com uma mulher morta, sem metade da cara. Era evidente que ela tinha sido abatida pelo apontador do helicanhão. A metralhadora pesada montada nesta aeronave costumava ser municiada com balas dotadas de ponta explosiva. Um bala deve ter atingido a mulher na cara e abriu-lhe um horrendo buraco de ossos estilhaçados e sangue. A mulher deve ter tido morte imediata.

Um dos meus soldados angolanos, chamado Domingos Cangúia, que era do Cuanza Norte e era de uma pureza e generosidade inigualáveis, chorou longa e convulsivamente a morte gratuita daquela mulher, exclamando entre soluços:

— Que mal é que esta mulher fez a quem a matou? Porque foi que ele a matou? Certamente ela tinha filhos pequenos. O que vai ser agora dos filhos?

E chorava, chorava, chorava.

Eu, por minha parte, fiquei a pensar em como era fácil matar alguém lá do alto, como quem dispara para um boneco numa barraca de tiro de uma feira ou como quem caça um coelho ou uma perdiz. Talvez o apontador do helicanhão se julgasse um anjo castigador, encarregado de punir todos aqueles que tivessem escolhido o lado "errado" (para ele) da guerra. Se tivesse encarado aquela mulher de frente, de olhos nos olhos, teria tido ele, mesmo assim, o atrevimento de matá-la?

Há cenas que ficam gravadas na nossa memória como ferro em brasa. Para mim, esta foi uma delas.

Desde que terminei o meu serviço militar, nunca mais peguei numa arma, nem sequer numa fisga.

13 abril 2022

Eduardo Luiz


La Chute du Choux Rouge, 1971, óleo sobre tela de Eduardo Luiz (1932–1988). Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal

Natureza Ressuscitada, 1972, óleo sobre tela de Eduardo Luiz (1932–1988). Coleção particular

La Boucherie, 1980, óleo sobre tela de Eduardo Luiz (1932–1988). Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal

Avion Arc en ciel, 1987, óleo sobre tela de Eduardo Luiz (1932–1988). Coleção particular

Sem título, 1986, óleo sobre tela de Eduardo Luiz (1932–1988). Coleção particular

Autorretrato, sem data, óleo sobre madeira de Eduardo Luiz (1932–1988). Coleção particular


Eduardo Luiz foi um pintor português nascido em Braga em 1932. Estudou pintura na Escola Superior de Belas-Artes do Porto e em 1958 partiu para Paris, a fim de prosseguir os seus estudos com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Acabou por se fixar em Paris, onde faleceu em 1988. A sua permanente busca da perfeição originou uma produção escassa mas de grande qualidade, que nem sempre os críticos souberam reconhecer, o que o amargurou.

07 abril 2022

Horowitz e Doppler, dois ucranianos que não são chamados ucranianos


Improviso em sol bemol maior, Deutsch 899 (Op. 90) N.º 3, de Franz Schubert (1797–1828), por Vladimir Horowitz (1903–1989)

As biografias do pianista Vladimir Horowitz dizem que ele era russo naturalizado americano. Não, Vladimir Horowitz não era russo: nasceu em Kiev no seio de uma família judaica. Era ucraniano mas, quando ele nasceu, Kiev fazia parte do Império Russo.


Souvenir à Madame Adelina Patti, Op. 42, de Franz Doppler (1821–1883), por Sarah Park e Kristy Lau em flautas e uma pessoa não identificada ao piano

O flautista e compositor Franz Doppler é identificado como tendo sido austríaco. Na verdade, Franz Doppler era natural da cidade ucraniana de Lviv. Quando ele nasceu, Lviv pertencia à parte austríaca do Império Austro-Húngaro e era uma cidade chamada Lemberg em alemão. A turbulenta história da Europa Oriental, disputada por vários impérios, dá origem a estas confusões.

02 abril 2022

Todos os anos na mesma altura


(Foto: Lourenço)

Todos os anos, na mesma altura, quando começa a primavera, mergulho os pés na água fria do mar, num primeiro passeio, por demais sonhado. Sentir o deslizar das pedras da areia entre os dedos, respirar fundo a maresia, deixar o sol entrar lentamente no corpo e sentir a brisa entrelaçada na magia do voo dos pássaros... e não se saber se somos nós que cantamos ou se é a maré que de intensa jorra os seus braços, feitos de pedaços de luar. Se eu soubesse que podia repetir o gesto lento das ondas, enchia as mãos com flocos de nuvens, mergulhava nos dias a face límpida da maré de todas as marés, não deixava morrer de tédio a luz que ilumina o dia e apanhava com os dedos o tempo perdido.

Agora, que me recordo desses passeios à beira-mar, do caminhar ao longo da areia, os pés gelados, a alma lavada, sei do encontro entre mim e comigo, deixando para trás o rasto das horas que perdidamente gastei a fazer poemas para ti e de como no fim, me sentia como uma gaivota voando livremente sobre o mar.


Isabel Sousa Ribeiro, Pêndulo, edição de autor