19 maio 2024

Epitáfio para um Homem que Sonhava


Epitaph for a Man Who Dreamed, do compositor norte-americano Adolphus Hailstork, pela Orquestra Chineke! dirigida por Kalena Bovell

Esta é uma obra musical que não é bonitinha nem fútil, nem poderia sê-lo. É uma homenagem ao destacado dirigente do movimento pelos direitos cívicos Martin Luther King (1929-1969), que, no dia 28 de agosto de 1963, proferiu em Washington o famoso discurso I have a dream (Eu tenho um sonho).

O autor desta peça é o compositor norte-americano Adolphus Hailstork, que tem ascendência ameríndia, africana e europeia. A Orquestra Chineke! (Chineke significa Deus em língua igbo, da Nigéria) é uma orquestra britânica, fundada por Chi-chi Nwanoku, que é uma contrabaixista inglesa de ascendência irlandesa e nigeriana. Esta orquestra é maioritariamente constituída por músicos negros e etnicamente diversificados, o que constitui caso único na Europa.

Como se pode verificar no vídeo, esta atuação da Orquestra Chineke! foi realizada durante a pandemia de covid-19, sem a presença de público na sala. Este foi um dos muitos concertos que se fizeram nesses estranhos tempos de confinamento, para serem ouvidos exclusivamente através da internet por um público retido em sua casa.

14 maio 2024

João Cristino da Silva


Autorretrato, 1854, óleo sobre tela de João Cristino da Silva (1829–1877). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa
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Cinco Artistas em Sintra, 1855, óleo sobre tela de João Cristino da Silva (1829–1877). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa
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João Cristino da Silva foi um pintor português nascido em 1829 na cidade de Lisboa. De temperamento insubmisso, João Cristino da Silva frequentou a Academia de Belas Artes de Lisboa sem terminar o curso, por discordar dos métodos de ensino, e em 1860 regressou à mesma instituição, desta feita como professor, mas saiu nove anos depois, insatisfeito com ela. Em 1867 passou a receber um subsídio oficial, que lhe permitiu viajar e contactar com a pintura naturalista que então se fazia em França e na Suíça. Depois de regressar a Portugal, acabou por ser dado como louco e internado no Hospital Psiquiátrico de Rilhafoles, mais tarde chamado de Miguel Bombarda, em Lisboa, onde morreu em 1877.

O quadro mais famoso de João Cristino da Silva, Cinco Artistas em Sintra, retrata quatro artistas plásticos seus contemporâneos, além dele próprio. A figura central do quadro é o pintor Tomás da Anunciação, observado com curiosidade por um grupo de camponeses. Atrás dele, está o pintor Francisco Metrass. Mais à direita, veem-se outros três artistas: o escultor Vítor Bastos, à esquerda, o próprio João Cristino da Silva, desenhando, e José Rodrigues de Carvalho, sentado. A caprichosa formação rochosa de cor branca que serve de fundo ao quadro parece ser um lapiás, que é o resultado da erosão química do calcário. O quadro pode ter sido pintado na vizinhança de Negrais ou entre Negrais e Pero Pinheiro, onde existem lapiás, e não na Serra de Sintra, como erradamente se poderia pensar, porque esta é granítica e por isso não tem lapiás.

11 maio 2024

À Sombra das Árvores Milenares

Passaram muitos anos mas não passou
o momento único irrepetível
o som abafado do estilhaço no corpo
o eco estridente do ricochete no metal
o cheiro da pólvora misturado com sangue e terra
o sabor da morte na última viagem de Portugal.

À sombra das árvores milenares ouvi tambores
ouvi o rugido do leão e o zumbido da bala
ouvi as vozes do mato e o silêncio mineral.
E ouvi um jipe que rolava na picada
um jipe sem sentido
na última viagem de Portugal.

Vi o fulgor das queimadas senti o cheiro do medo
o silvo da cobra cuspideira o deslizar da onça
as pacaças à noite como luzes de cidade
a ferida que não fecha o buraco na femural
no meio da selva escura em um lugar sem nome
na última viagem de Portugal.

Soberbo e frágil tempo
intensa vida à beira morte
amores de verão amores de guerra amores perdidos.
Uma ferida por dentro um tinir de cristal
passaram os anos o ser permanece.
Fiz a última viagem de Portugal.

Manuel Alegre


Militares em operações no norte de Angola, provavelmente na Serra de Mucaba, antes de 25 de abril de 1974 (Foto: Luís Cabral)
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07 maio 2024

Juventude


Juventude, 1929, do escultor Henrique Moreira (1890–1979). Avenida dos Aliados, Porto (Foto: Manuel V Botelho)

A estátua mais estimada pela população da cidade do Porto é, sem dúvida nenhuma, a da "Menina Nua", na Avenida dos Aliados. "Menina Nua" é a designação popular, mas o seu autor, que foi o escultor Henrique Moreira, deu-lhe o nome de Juventude. É uma bela escultura, que representa uma jovem e sorridente mulher, nua e sentada num plinto em estilo Art Déco.

Henrique Moreira nasceu no seio de uma família muito humilde de Avintes, Vila Nova de Gaia, e tornou-se um dos mais importantes escultores portugueses do séc. XX. As suas obras são quase sempre bastante conservadoras do ponto de vista estético, mas a sua qualidade e mestria são absolutamente indiscutíveis.

Na cidade do Porto abundam as estátuas, os bustos, os baixos-relevos e outras obras criadas por Henrique Moreira. O Porto de hoje não seria o que é, sem o imponente Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular, no centro da Rotunda da Boavista, a estátua dedicada ao Pedreiro, em frente à Escola Infante D. Henrique, o Monumento aos Combatentes da Grande Guerra, na Praça Carlos Alberto, a estátua do Padre Américo, na Praça da República, o busto de Camilo Castelo Branco, na Avenida Camilo, a escultura chamada Abundância (a que por vezes dão o nome de "Meninos Nus"), também na Avenida dos Aliados, etc. etc. A lista completa do legado escultórico que Henrique Moreira deixou no Porto é interminável. A cada passo que damos na cidade, "tropeçamos" numa criação sua, por vezes em locais onde menos esperamos.


Antes. A Avenida dos Aliados, no Porto, num postal ilustrado de finais dos anos 60. Em primeiro plano, vê-se a estátua Juventude, do escultor Henrique Moreira (1890–1979) (Foto de autor desconhecido)

Depois. A Avenida dos Aliados, tal como agora se apresenta. A avenida, que era um jardim florido e muito bem cuidado, foi transformada pelo arquiteto Álvaro Siza Vieira num inóspito deserto de pedra. Que mal fizeram as flores ao arquiteto, para que ele tivesse pavimentado a avenida de alto a baixo com paralelepípedos de granito? (Foto: maria margarida)

Sabe-se quem foi a mulher que serviu de modelo a Henrique Moreira, como símbolo da Juventude. Chamava-se Aurélia Magalhães Monteiro e era uma das mulheres mais bonitas do Porto no seu tempo. Infelizmente, o tempo passa, faz os seus estragos e Aurélia Magalhães Monteiro não lhe escapou. A juventude de Aurélia passou, ela ficou cega aos 43 anos de idade e acabou por falecer em 1992, com 82 anos. A beleza e a frescura da sua juventude, porém, permanecem eternizadas na pedra, graças ao talento do escultor Henrique Moreira.


Antes e depois. Aurélia Magalhães Monteiro (1910–1992), que serviu de modelo para a escultura Juventude, de Henrique Moreira (1890-1979), sentada com um vaso de manjerico nas mãos diante da sua própria representação de quando era jovem (Foto: Raul Simões Pinto)

03 maio 2024

Divertimento para duas guitarras


Divertimento para duas guitarras, op. 62, do compositor catalão Fernando Sor (1778–1839), pelos intérpretes finlandeses de guitarra clássica Timo Korhonen e Patrik Kleemola

01 maio 2024

Um dia de maio

Recordo esse momento, esse
terrível entusiasmo. Eram
milhares, dezenas de milhar
e todos se esticavam, todos
tentavam ver os carros, sentiam
o solene momento, gritavam
da alegria mais pura. Era
um som de pólvora liberta,
uma explosão de esperança,
de loucura, de vida — sim,
por uma vez, a vida —. Lembro
esse gosto de pão, o corte
brusco na inércia, o fogo
da presença em oferenda,
a compressão da ira vinculada
agora a um caminho. Hoje
contemplo esta praça, estas ruas
que a tristeza semeou
de novo e espero a multidão
que uma vez aqui floresceu.
Confio em que virá. O vento
fala já nos seus passos, faz
da espera alimento; o ar
vai encher-se de vozes, vai
ver-nos todos juntos, livres,
respirando através das mãos
unidas, através do ardente
fluido de alegria que liberta
as raízes do canto estagnado.

Egito Gonçalves (1920–2001)


O Primeiro de Maio de 1974 no Porto (Foto: Sérgio Valente)
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