30 novembro 2023

Suite Medieval, de Frederico de Freitas


Suite Medieval, do compositor e maestro Frederico de Freitas (1902–1980), pela Real Orquestra Nacional Escocesa, dirigida por Álvaro Cassuto

27 novembro 2023

O Desterrado


O Desterrado, de Soares dos Reis (1847–1889); mármore de Carrara. Museu Nacional Soares dos Reis, Porto (Foto: João Menéres, 1934–2023) (Clicar na imagem para ampliá-la)

António Soares dos Reis foi um escultor português nascido em Vila Nova de Gaia, em 1847, e falecido por suicídio em 1889, também em Vila Nova de Gaia. Estudou no Porto, Paris e Roma, após o que regressou à sua terra natal.

Soares dos Reis fez algumas das mais notáveis esculturas existentes em Portugal, de entre as quais se destaca O Desterrado, que constitui o apogeu da arte escultórica portuguesa no séc. XIX. A respeito desta obra, escreveu o historiador de Arte Pedro Lapa:

A intensidade desta escultura é expressa pelo contraste entre o dinamismo da figura, articulada em dois eixos oblíquos cruzados e o olhar fito no chão, que presentifica uma interioridade onde ecoa um tempo outro. Assim O desterrado torna-se a consciência dolorosa da nostalgia de um tempo impresentificável. As mãos entrelaçadas, o pé apoiado contra a perna ou os lábios contraídos são outros tantos sinais de inquietude dessa consciência ferida a que faz alusão. (...)

Detalhe de O Desterrado, de Soares dos Reis ((1847–1889); mármore de Carrara. Museu Nacional Soares dos Reis, Porto (Foto de autor desconhecido) (Clicar na imagem para ampliá-la)

Detalhe de O Desterrado, de Soares dos Reis ((1847–1889); mármore de Carrara. Museu Nacional Soares dos Reis, Porto (Foto: Duarte(Clicar na imagem para ampliá-la)

A inspiração para a realização desta escultura por Soares dos Reis veio pelo menos de três lados. Em primeiro lugar, Soares dos Reis terá decidido fazê-la após ter visto em Paris, onde se encontrava como pensionista, uma escultura que muito o terá impressionado: O Desespero, de Joseph Perraud.


O Desespero, de Jean-Joseph Perraud (1819–1876); mármore. Musée d'Orsay, Paris, França (Foto: Jean Schormans(Clicar na imagem para ampliá-la)

Por outro lado, Soares dos Reis decidiu passar para a pedra os sentimentos expressos por Alexandre Herculano no seu longo poema Tristezas do Desterro, que começa assim:

I.

Terra cara da patria, eu te hei saudado
D'entre as dores do exilio. Pelas ondas
Do irrequieto mar mandei-te o choro
Da saudade longi­nqua. Sobre as aguas,
Que de Albion nas ribas escabrosas
Vem marulhando branqueiar de escuma
A negra rocha em promontorio erguido,
D'onde o insulano audaz contempla o immenso
Imperio seu, o abysmo, aos olhos turvos
Não sentida uma lagryma fugiu-me,
E devorou-a o mar. A vaga incerta,
Que róla livre, peregrina eterna,
Mais que os homens piedosa, irá depo-la,
Minha terra natal, nas praias tuas.
Essa lagryma acceita: é quanto póde
Do desterro enviar-te um pobre filho.
(...)

O Desterrado, de Soares dos Reis (1847–1889), visto de outro ângulo; mármore de Carrara. Museu Nacional Soares dos Reis, Porto (Foto de autor desconhecido) (Clicar na imagem para ampliá-la)

A terceira fonte de inspiração de Soares dos Reis veio do escultor norte-americano Augustus Saint-Gaudens, seu colega e amigo, com quem travou conhecimento em Paris. Soares dos Reis e Saint-Gaudens reencontraram-se mais tarde em Roma, onde procuraram refúgio da terrível Guerra-Franco Prussiana e onde partilharam um mesmo estúdio. Foi neste estúdio que Soares dos Reis e Saint-Gaudens deram corpo aos seus trabalhos mais representativos, respetivamente, O Desterrado e Hiawatha. A peça de Saint-Gaudens representa o chefe indígena norte-americano Hiawatha sentado sobre um rochedo e em atitude meditativa sobre os destinos do seu povo.


Hiawatha, de Augustus Saint-Gaudens (1848-1907). Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, Estados Unidos da América (Foto de autor desconhecido) (Clicar na imagem para ampliá-la)

Soares dos Reis e Saint-Gaudens devem ter trocado abundantes impressões e ideias entre si, enquanto davam corpo às suas peças. Primeiro, foram modelando o gesso até conseguirem obter as formas que pretendiam; depois, passaram estas formas para as respetivas obras definitivas, em mármore de Carrara. O estudo em gesso de O Desterrado encontra-se presentemente em Lisboa, no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, e a escultura definitiva está no Porto, no museu que acabou por tomar o nome do escultor, o Museu Nacional Soares dos Reis, e que tinha sido o primeiro museu de arte a ser criado em Portugal, por iniciativa do rei D. Pedro IV.


O Desterrado, de Soares dos Reis (1847–1889); gesso patinado. Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa (Foto de autor desconhecido) (Clicar na imagem para ampliá-la)

22 novembro 2023

As folhas mortas do outono


Les Feuilles Mortes, canção de Joseph Kosma e Jacques Prévert, por Yves Montand

Autumn Leaves, de Joseph Kosma e letra em inglês de Johnny Mercer, por Nat King Cole

20 novembro 2023

Guilherme Camarinha


Autorretrato de Guilherme Camarinha (1912–1994), óleo sobre cartão. Museu Nacional Soares dos Reis, Porto

S. Jorge e o Dragão, de Guilherme Camarinha (1912–1994). Manufatura de Tapeçarias de Portalegre, Portalegre (Clicar na imagem para ampliá-la)

Sem Título (Melancia), de Guilherme Camarinha (1912–1994). Manufatura de Tapeçarias de Portalegre, Portalegre (Clicar na imagem para ampliá-la)

Trovador, de Guilherme Camarinha (1912–1994). Manufatura de Tapeçarias de Portalegre, Portalegre (Clicar na imagem para ampliá-la)

Guilherme Duarte Camarinha foi um pintor português, nascido em Valadares, Vila Nova de Gaia, em 1912, e falecido no Porto em 1994. Foi aluno de José de Brito, Acácio Lino e Joaquim Lopes, entre outros, na Escola Superior de Belas-Artes do Porto. Deu aulas em escolas industriais de Guimarães e do Porto e, posteriormente, também na própria Escola Superior de Belas-Artes do Porto, entre 1959 e 1962. Viveu e trabalhou em Coimbrões, Vila Nova de Gaia.

Ainda que sempre se tenha considerado a si mesmo como pintor, Guilherme Camarinha tornou-se famoso, sobretudo, pelas tapeçarias, baseadas em cartões da sua autoria e tecidas completamente à mão na Manufatura das Tapeçarias de Portalegre. Estão espalhadas por todo o país tapeçarias de Guilherme Camarinha, assim como pinturas a fresco, mosaicos, vitrais, etc. Podem encontrar-se em instituições públicas (tribunais, câmaras municipais, ministérios, universidades, embaixadas portuguesas espalhadas pelo mundo, etc.), entidades particulares (Fundação Gulbenkian em Paris, Cooperativa dos Pedreiros no Porto, Café Rialto também no Porto, etc.) e instituições religiosas (Santuário do Sameiro em Braga, Igreja de Nossa Senhora da Conceição no Porto, Igreja de Comunhão Anglicana do Bom Pastor, em Vila Nova de Gaia, etc.). Guilherme Camarinha é sem dúvida um nome incontornável da arte pública portuguesa do séc. XX.

15 novembro 2023

Junto ao seio dela

Para mim basta morrer nesta terra
sepultarem-me nela
em seu solo húmido dissolver e sumir
e renascer como erva sobre a terra
renascer em flor
machucada por mão de criança
crescida na terra que é minha mãe
para mim basta estar junto ao seio
da terra que é minha mátria
como solo
como erva
como flor.
Fadwa Tuqan (1917-2003), poetisa palestiniana (Tradução de Renata Parpolov Costa)


Coro Patria Oppressa!, da ópera Macbeth, do compositor italiano Guiseppe Verdi (1813-1901), pelo Coro Filarmónico Eslovaco e a Orquestra Sinfónica da Rádio Eslovaca, sob a direção do maestro eslovaco Oliver von Dohnányi

13 novembro 2023

Saudades de Mueda


(Foto: mcbastos)

São frias as noites em Mueda. São curtas e frias. São húmidas. E tristes.

A manhã chega depressa e traz a guerra. Logo sentiremos os tiros que já não nos assustam, antes nos lembram que estamos vivos. Mas estar vivo num lugar onde o objetivo é matar, não augura nada de bom.

Todos os dias se sofre em Mueda. Todos os dias se sofre e faz sofrer. Morre-se. E mata-se.

Há uma monotonia trágica em Mueda, como se Deus se tivesse esquecido da máquina da guerra a trabalhar enquanto se entretinha com outra coisa. Deus esqueceu-se de Mueda e deixou os homens enlouquecer à vontade; e aqui, a loucura parece ser a maior virtude dos homens.

Todos os dias há alguém que pensa em Deus. Todos os dias há alguém que para desconcertado com a maldade humana e com o alheamento divino, e que depois tem que seguir em frente, invariavelmente na direção em que vai encontrar mais sofrimento e morte, e maior ausência de Deus.

De Mueda sai-se seguindo sempre em frente, só se volta para trás quando se fizer suficiente mal a alguém. Dezenas de soldados, uns atrás dos outros, ordenados, coordenados, alinhados; de helicóptero, de Berliet, ou a pé; sempre sem que Deus pareça interferir na sua determinação de irem em busca da morte.

Tão diferentes, os soldados que saem de Mueda, dos que regressam. Algo no meio da mata misteriosa modifica os soldados, algo lhes tira brilho e cor, lhes assombra o olhar, lhes suja o rosto. Algo os envelhece.

Ver um camarada cair habitua-nos à ideia de que somos perecíveis e a ideia da morte torna-se-nos familiar, não como algo que nos espera adiante, mas como algo que nos acompanha a cada passo que damos. E a cada passo envelhecemos com a ideia da morte.

A coragem às vezes é a única solução. Podemos nunca saber o que é a coragem até não nos restar mais nada para garantir a sobrevivência.

Há quem esteja morto em vida por nunca ter chegado à beira do abismo e nunca ter conhecido o fim do caminho; nunca ter conhecido o rosto de quem caminhou todo o dia à nossa procura para nos matar, porque, na aritmética da guerra um de nós tem que ser subtraído à existência. E estarmos nós à sua espera de arma na mão coloca as coisas em termos simples, em termos fáceis de perceber: somos peças de um jogo.

Mas não podemos fugir de Mueda, porque de Mueda não se vai para lado nenhum, senão em direção à guerra; o mundo acaba aqui. Mueda é uma ilha rodeada de morte por todos os lados.

Há um cheiro de morte em cada cheiro que se nos cola ao corpo. O bedum do óleo e da pólvora queimada da G3, o bafo do escape das Berliets, a catinga da floresta, o nosso ininterrupto odor corporal.

Às vezes tornamo-nos um pouco mais humanos, quando recordamos as coisas que constituíram a vida antes de Mueda. Eu tenho saudade de acordar e sentir logo vontade de correr. Saudade da frescura do café pela manhã, da boroa acabada de cozer, da fragância da relva orvalhada nas manhãs de Inverno. Fazem-me falta os cheiros dos campos, desde a essência doce do pólen até ao fedor bom do estrume.

Agora acordo com a exsudação húmida do cacimbo e adormeço com o hálito metálico da trovoada.

Quando isto acabar e outra geração se suceder à nossa, vai parecer impossível que nos tenhamos sujeitado à escravidão e que não tenha havido forma de lhe escapar. Vai parecer irrisório que apenas a ignorância tenha sido suficiente para nos impedir de refratar, como faz a luz ao encontrar um meio que lhe dificulta o caminho. E a ignorância é o meio mais eficaz para dificultar a propagação de toda a luz.

Mas não se julgue que a guerra consegue apagar toda a luz de um homem; às vezes é preciso até um pouco de escuridão para descobrirmos se brilha ou não algo dentro de nós.

É de sonho e pesadelo o destino de um soldado, como eu agora aqui, perdido em pensamentos, enquanto voo em direção ao inferno. É de coragem e de medo esta vida cumprida a ferro e fogo.

Com o braço, aperto a máquina fotográfica contra as costelas e seguro a G3 entre as pernas, porque o helicóptero adornou um pouco para a direita. Afasto mais os pés para aumentar a base de apoio e percebo que estamos perto do objetivo. Sinto uma serenidade muito grande, todo o meu ser se prepara para a violência que se vai seguir, não tenho tempo agora para sentir medo, algo em mim se suspende, nada me pode distrair a partir de agora.


Da fundura do tempo venho à superfície como uma rolha de cortiça que não aguenta muito tempo imersa.

Sei que o helicóptero pairou a três metros do solo, sei que saltámos e que seguimos pela mata dentro como se algo de lá nos atraísse a todos. Sei que se seguiram momentos de perigo e sei que não morri lá, o resto parece apenas um pesadelo difuso que o tempo foi esbatendo a pouco e pouco. Sei também que alguns de nós não regressaram e que a maioria dos que regressaram trouxeram a guerra gravada a fogo na memória, como uma tatuagem na alma, ou sei lá onde, entre a pele e essa luz que encontrámos a brilhar dentro de nós nos momentos de maior negrume no inferno tenebroso da guerra.

Sei que havia um cemitério em Mueda, onde se dissolviam na terra alaranjada de Moçambique os corpos dos que deram tudo a troco de nada, e que nenhuma luz de humanidade devolveu à terra mãe de onde partiram, porque a pátria madrasta que nos obrigou a combater se envergonhava dos mortos sacrificados em seu nome.

Agora dissolvem-se na terra onde foram esquecidos e talvez lá devam ficar para sempre, porque os seus corpos já se confundem com a terra que os acolheu, e ninguém merece que o seu regresso venha a apagar a ignomínia de os lá terem deixado. Que a vergonha dure para sempre.

Estive lá. A guerra não se fez sem mim. Acreditei em oitocentos anos de História, mas a realidade incumbiu-se de me mostrar em poucos meses que quase tudo o que me ensinaram era mentira, não sem antes aprender que não é difícil matar um homem, difícil é viver depois disso; difícil é passar o resto da vida a tentar fazer com que os nossos mortos façam sentido.

Mas o que é estranho, é o nascimento da saudade desses tempos, como se a superação da tragédia fosse glória bastante. É esta a fútil glória do sobrevivente.

Durante imenso tempo, vivi uma vida que não era a minha, uma vida postiça, e fui uma personagem de uma história mal engendrada. Como diabo posso eu ter saudades disso? Poderemos nós ter saudades dos pesadelos de um tempo em que a única coisa boa era sermos jovens?

É de mim que tenho saudades, e olhando para trás confundo a história com a personagem e confundo a personagem com o cenário, ou, de certo, é a humana capacidade de perdoar que procura algo de bom para redimir o passado.

Mueda revisitada e perdoada, nós, os que sobrevivemos, precisamos de perdoar para continuar a viver.

Que os mortos nos perdoem também.



mcbastos, antigo combatente da Guerra Colonial e deficiente das Forças Armadas

11 novembro 2023

O concerto para piano de Schumann


O pianista ucraniano Sviatoslav Richter (1915–1997) e a Orquestra Filarmónica de Viena, dirigida pelo maestro italiano Riccardo Muti, interpretam o Concerto para Piano e Orquestra em Lá Menor, Op. 54, do compositor alemão Robert Schumann (1810–1856)

07 novembro 2023

Apoiado versus Suspenso


Apoiado versus Suspenso, 1969, escultura de António Charrua (1925–2008). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa

05 novembro 2023

A vida numa aldeia em Angola durante a época colonial (1956)


Mufuque, na comuna de Cambamba, município do Dange, província do Uíge, vista da estrada principal que atravessa a aldeia (Foto: mufuque57)


A VIDA EM MUFUQUE — A VIDA NUMA ALDEIA EM ANGOLA DURANTE A ÉPOCA COLONIAL (1956)

Capítulo 3 — Alimentação, Vestuário e Habitação

Alimentação

O povo de Mufuque tem dietas simples. Um prato principal comum pode ser "funji" (papa de mandioca) acompanhado de peixe seco. Outros alimentos consistem em couves, raizes de mandioca, folhas de mandioca, caça, carne de cabra, frango, porco, peixe, amendoim, bananas, feijão branco, milho, abóbora, batata-doce, arroz, macarrão, café, chá, cerveja e "jindungo" (uma malagueta que se dá bem na floresta, Capsicum frutenscens, o mesmo que piri-piri). No entanto, alguns destes alimentos só raramente são consumidos.

Os alimentos são preparados na cozinha, que é uma pequena cabana atrás da casa, para manter o fumo afastado da habitação, mas também como precaução contra o fogo. A lareira consiste em três pedras, sobre as quais são pousadas as panelas para que um fogo possa ser aceso debaixo delas. Fica no centro da cabana. O fumo da lareira escoa-se através de fendas na cobertura e nas paredes — não existe chaminé nem outra abertura para a sua saída. A mobília da cozinha consiste em alguns curtos troncos para sentar e uma velha caixa num canto para guardar os utensílios. A cozedura dos alimentos é feita em panelas de barro ou em latas de diferentes tamanhos, que são recuperadas de lixeiras, embora não seja rara a posse de panelas e pratos esmaltados. Usam-se latas de óleo como baldes, e um par de garfos e um velho canivete completam o conjunto.

A fervura em água é a principal forma de cozinhar, embora a carne, o peixe e as raízes sejam frequentemente assados no carvão. Os temperos são simples, limitando-se ao sal, açúcar e jindungo. A maior parte dos alimentos são cultivados ou obtidos da criação de animais, sendo alguns deles também obtidos através da caça, da montagem de armadilhas e da pesca. O resto é colhido na floresta ou comprado numa loja em Cambamba, a 11 quilómetros de distância.

Ao pequeno-almoço bebe-se café, com tanto açúcar quanto se puder. Juntamente com o café come-se pão, caso haja disponível, mas habitualmente come‑se raiz de mandioca assada.

O almoço é a refeição principal, com arroz, funji ou macarrão com carne, verduras ou um pedaço de peixe seco. O jantar consiste em mais funji com algum molho. Durante o dia comem nozes, frutos, térmitas e outros alimentos que encontram na selva ou noutros lugares.

Como é natural, as pessoas não possuem frigoríficos, e por isso têm que ter outros meios de conservar os seus alimentos. A carne é o alimento mais perecível, além do peixe. A secagem é o método mais comum de conservar a carne. Logo após a morte do animal, a sua carne é cortada em tiras com pouco mais de um centímetro de espessura e suspensa num ramo ou corda, para secar ao sol. Alguns dias depois, está tão dura e seca que pode ser partida ao meio. Para cozinhá-la, fervem-na simplesmente num pouco de água.

O peixe, que é capturado no vizinho Rio Suege, é fumado, depois de ter sido aberto, dividido ao meio e limpo das vísceras. Tanto o peixe como a carne são por vezes salgados. O peixe mais consumido é um peixe seco e barato que é trazido em fardos de Luanda.

Nada é desperdiçado. Quando é morto um búfalo, quase todo ele é aproveitado. A pele, por exemplo, é cortada em tiras para ser usada como tirante nas camas. Também limpam o intestino delgado e comem-no. Os olhos e os miolos são fervidos. Os ossos são usados na sopa e posteriormente dados aos cães.

Se um homem tiver posses, bebe frequentemente refrigerante ao almoço. Os refrigerantes vêm em grandes garrafas castanhas e são fabricados em Luanda. Há-os de vários sabores e marcas, tais como tropical, laranja, limão, tangerina, morango, Pepsi-Cola e Sinalco. Muitos bebem Cuca, uma cerveja feita em Luanda. É fornecida em barris ou em garrafas. Uma caneca de bom tamanho com cerveja de barril custa um centavo e meio. A bebida mais comum é o café, que é muitas vezes cultivado pelo próprio.

A comida é servida dentro de casa, numa mesa colocada no meio da divisão. Por vezes o dono da casa tem pratos esmaltados, mas na maioria das vezes todos comem do mesmo prato de estanho. Os homens e os rapazes comem primeiro. As mulheres trazem um prato com um grande monte de funji e uma lata com molho. Os homens tiram um pedaço de funji com os dedos, mergulham-no no molho e levam-no à boca. Depois de os homens terem terminado, comem as mulheres e as raparigas, que a seguir levam os utensílios ao rio para lavá-los. Guardam-nos numa caixa no canto da cozinha.

Vestuário

O vestuário é um dos grandes problemas das pessoas, porque é uma das coisas para as quais é preciso ter dinheiro. A maior parte do dinheiro gasto em vestuário vai para o guarda-roupa do homem. Ele tem que trabalhar durante meses para conseguir comprar um fato barato, que é o seu grande orgulho. Também tenta comprar um par de sapatos. Se ele for muito pobre, a sua melhor roupa é uma camisa rasgada mas limpa, um pano à cintura em vez de calças e um par de alpergatas. Aos dias de semana, todos usam uns calções gastos e remendados, uma velha camisa ou camisola interior e andam descalços. Por vezes, usam um calçado feito de pneus e câmaras de ar velhos ou danificados. Um pedaço do piso de um pneu serve de sola, ao qual são cosidas tiras de câmaras de ar. Resulta daqui uma sandália que se pode usar, mas que é bastante desconfortável. Os chapéus dos homens são habitualmente chapéus de palha velhos e gastos. Os homens mais ricos usam capacetes coloniais.

Só se usam meias aos domingos. Por vezes são apenas metades de meias, somente o suficiente para cobrirem o tornozelo e parecerem que são meias de verdade. Os cintos são frequentemente pedaços de corda, mas alguns homens têm cintos de plástico ou de couro.

As mulheres tentam vestir-se como a esposa do pastor, que é considerada uma autoridade em matéria de vestuário. Ela usa habitualmente um vestido simples de algodão, que está fora do alcance da maior parte das mulheres, em parte porque não sabem costurar. A maioria das mulheres usa metros e metros de tecido ("panos") enrolados em volta de si próprias, apesar do calor. Se uma mulher tiver um bebé, faz uma volta adicional de pano em volta das suas costas para o transportar. As mulheres costumam andar descalças. Para cobrirem a cabeça, usam lenços ou uma volta do pano passando por cima da cabeça.

Muitas crianças com menos de três anos de idade andam completamente nuas exceto aos domingos, quando usam um vestido roto ou um par de calções. As crianças entre três e sete anos de idade usam habitualmente um vestido ou camisa, e de vez em quando usam calças. Quando as crianças chegam à idade escolar, começam a vestir-se melhor. Um aluno da escola veste uma camisa branca, calções e suspensórios ou alças. Frequentemente calça sapatos. Uma aluna traz um vestido e por vezes calça sapatos, muitas vezes pequenos demais ou grandes demais. Só se vestem desta maneira para irem à escola e à igreja.

Habitação

As casas em Mufuque são feitas de argila e paus ("pau a pique") ou de adobe. São pequenas estruturas, habitualmente só com uma divisão, com 3 metros por 4,5 metros. Algumas das casas maiores têm um quarto de dormir a cada lado de uma sala, com 9 metros por 3 metros no total. Só poucas casas é que são maiores do que isto. As casas são retangulares e com coberturas de duas águas. As casas de adobe são frescas e duram mais do que as de pau a pique, mas dão mais trabalho a fazer.

O primeiro passo para construir uma casa de adobe consiste em fazer os adobes, ou blocos de barro. A água é trazida de um rio pelas mulheres e despejada sobre argila. A seguir os rapazes amassam a argila para homogeneizá-la. São adicionadas ervas picadas para dar resistência aos blocos. A seguir a argila é colocada em fôrmas retangulares e compactada. As fôrmas são caixas de madeira com 15 a 20 centímetros de largura, 30 a 35 centímetros de comprimento e quinze a vinte centímetros de altura. Não têm tampa nem fundo. A argila em excesso é raspada com um pau e a fôrma é levantada, deixando um bloco retangular de barro no chão. São necessárias centenas de blocos iguais a este para se fazer uma casa. A seguir os blocos são deixados a secar ao sol. Se chover antes de os blocos ficarem secos, todo o trabalho fica destruído. Quando os blocos estiverem secos, são empilhados e cobertos com capim para mantê-los secos. Depois a casa é construída, como qualquer outra casa de tijolos, em que se utiliza barro como argamassa.

A seguir é colocada a cobertura da casa. Atam-se varas de madeira umas às outras com tiras de casca de árvore, para fazer a estrutura da cobertura, e sobre esta coloca-se capim. O melhor capim encontra-se nos vales, junto da galeria de árvores que acompanha os cursos de água. Só existe um mês em cada ano que é ideal para cortar o capim. Nessa ocasião, o capim tem entre um metro e vinte e um metro e oitenta de altura e está completamente seco. A procura pelo capim é tanta que os homens percorrem cinco quilómetros para cortá-lo. Depois de o cortarem com catanas, juntam-no em feixes e trazem-no às costas no regresso. O capim é atado às coberturas, em camadas com uma espessura de trinta centímetros. Às vezes o construtor faz rústicos caixilhos para janelas, persianas e molduras de portas. As janelas costumam ser poucas e pequenas. As portas são por vezes feitas de folhas de palmeira entrançadas. Se o dono da casa tiver dinheiro suficiente, pode comprar para o seu telhado chapas de zinco onduladas ou telhas de barro cozido, em vez do capim.

Chapa-se barro fresco no interior e no exterior da casa e alisa-se como um reboco. Às vezes a casa é caiada. O chão, que é de terra, é encharcado e compactado firmemente. Ocasionalmente, o dono da casa pode ter meios para fazer um chão de cimento.

O tipo de habitação mais comum é de pau a pique. Na floresta mais próxima cortam-se estacas de madeira compridas, que são transportadas para o local da construção. A seguir são escavados com uma catana buracos com sessenta centímetros a um metro e vinte de profundidade e quinze centímetros de largura (usa-se a ponta da catana para soltar a terra, esta é retirada com as mãos e a operação é repetida várias vezes) até formar um retângulo de buracos, que constitui o contorno da casa. As estacas mais grossas, com oito a quinze centímetros de diâmetro, são introduzidas nestes buracos e é compactada terra à sua volta. Horizontalmente, amarram-se estacas mais finas às estacas grossas. A seguir sáo amarradas estacas ainda mais finas sobre estas. As mulheres e os rapazes amassam barro, como no caso das casas de adobe, e chapam-no sobre a estrutura até esta ficar completamente coberta. Quando esta ficar seca, acrescenta-se outra camada e o excesso de barro é retirado por raspagem. Depois faz-se a cobertura da casa da mesma maneira como na casa de adobe.

O mobiliário é muito simples. As melhores camas são tarimbas de madeira com tiras de pele de búfalo atravessadas no centro. Sobre isto a pessoa que dorme estende o seu "luando", uma esteira feita de juncos de papiro. Outras pessoas dormem em esteiras estendidas no chão. A roupa de cama consiste num único cobertor de algodão e uma almofada de palha.

A maior parte das casas tem uma mesa e um par de cadeiras. Algumas têm uma toalha de mesa muito colorida, que é posta em ocasiões especiais. Muitas pessoas possuem um candeeiro a petróleo para iluminação, enquanto outras não têm iluminação à noite. Ao longo da parede há cabides de madeira para dependurar a roupa e uma ou duas prateleiras. Nas paredes são coladas imagens retiradas de revistas. Algumas portas têm fechadura, mas não costuma ser necessária porque os roubos são raros. Mais frequentemente são usados trincos de madeira.

Nalgumas casas, a cobertura estende-se até formar um alpendre frontal. O exterior das casas é por vezes pintado de uma forma fantástica, o que dá um pouco de colorido à aldeia. Uma vez por dia a casa e as suas redondezas são varridas com uma vassoura feita de capim.




mufuque57 (texto original em inglês)

01 novembro 2023

Ilha

Deitada és uma ilha E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente

promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente

Deitada és uma ilha Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro

ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias

David Mourão-Ferreira (1927–1996)


(Foto: Bill Brandt)