30 julho 2021

Charneca em flor


Enche o meu peito, num encanto mago,
O frémito das coisas dolorosas…
Sob as urzes queimadas nascem rosas…
Nos meus olhos as lágrimas apago…

Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!

E, nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E já não sou, Amor, Sóror Saudade…

Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!

Florbela Espanca (1894–1930)


(Foto de autor desconhecido)

23 julho 2021

Almas gémeas


Um improviso por Maria João e Bobby McFerrin

19 julho 2021

Cruel insensibilidade




Quando um militar português era morto ou ferido na Guerra Colonial, os seus familiares eram burocraticamente informados do infausto acontecimento através de um impessoal e desumano telegrama, de que é exemplo o que está aqui reproduzido, datado de 26 de julho de 1973, e que diz o seguinte:

MR 604224 INFORMA VEXA SEU FILHO FURRIEL MILICIANO (…) BAIXOU HOSPITAL MILITAR 22 CORRENTE ANGOLA POR MOTIVOS FERIMENTOS ADQUIRIDOS COMBATE DIAGNOSTICO AMPUTAÇÃO À PERNA DIREITA ESCREVENDO AO SR. CHEFE DO SPM 1836 PODERÁ OBTER OUTROS ESCLARECIMENTOS OCORRENCIA FAZEMOS VOTOS RÁPIDAS MELHORAS

COMANDANTE DEPOSITO GERAL ADIDOS LISBOA

13 julho 2021

Nossa Senhora da Visitação, Montemor-o-Novo


Fachada principal do santuário de Nossa Senhora da Visitação, em Montemor-o-Novo (Foto: MaximoMF)

Há feitiço em Montemor-o-Novo e no seu concelho. Nesta parte do Alentejo existem locais que são verdadeiramente mágicos: o incomparável cromeleque dos Almendres (pertencente ao concelho de Évora), a enorme anta do Zambujeiro (também pertencente ao concelho de Évora), a gruta do Escoural, com pinturas rupestres e cerâmica do neolítico, a anta-capela de Nossa Senhora do Livramento e (embora não seja pré-histórico) o santuário de Nossa Senhora da Visitação.

Há qualquer coisa no local onde se ergue o santuário de Nossa Senhora da Visitação que nos faz sentir em paz e sem vontade de sair dali. O que é, não sei. Só se sente. Será o relativo silêncio, apesar da proximidade da cidade? Será a vizinhança da também mágica Estrada Nacional N.º 2, antiga coluna vertebral de Portugal Continental, que liga Chaves a Faro? Será outra coisa? Não sei.

O santuário de Nossa Senhora da Visitação começou por ser uma ermida do séc. XVI, em estilo manuelino rural, a qual veio a sofrer mais tarde grandes modificações, ocorridas no séc. XVIII. Ao contrário do que muitas vezes sucede em tais intervenções, o resultado final é muito interessante. Tem beleza e tem harmonia. Contribui para a magia do lugar.

Vale a pena ir a Montemor-o-Novo e visitar o santuário de Nossa Senhora da Visitação, mas é preciso não esquecer o convento dominicano de Santo António, as ruínas do castelo e tudo quanto Montemor-o-Novo tem para oferecer. E tem muito. Apesar de ser uma pequena cidade, Montemor-o-Novo possuía uma extraordinária e vibrante vida cultural, a que a pandemia de covid-19 veio impor uma forçada paragem. Deseja-se que uma tal vitalidade regresse com redobrada energia, para bem da cultura, de Montemor-o-Novo, do Alentejo e do país.


De cá para lá. Vista de Montemor-o-Novo a partir das ruínas do castelo. Em último plano, recortado no horizonte, vê-se o santuário de Nossa Senhora da Visitação (Foto: Andre)

De lá para cá. Vista de Montemor-o-Novo a partir do santuário de Nossa Senhora da Visitação. Ao fundo, o monte (mor) no alto do qual estão as ruínas do castelo (Foto: Napoleão P)

Pormenor da fachada principal da ermida de Nossa Senhora da Visitação (Foto: Mario C)

Portal manuelino da ermida de Nossa Senhora da Visitação (Foto: Francisco Oliveira)

Teto manuelino da ermida de Nossa Senhora da Visitação (Foto: Mario C)

As paredes do interior da ermida de Nossa Senhora da Visitação estão revestidas de painéis de azulejos setecentistas (Foto: Mario C)

Um dos muitos ex-votos existentes na casa dos milagres do santuário de Nossa Senhora da Visitação, com a seguinte legenda: Milagre que fez N. S. da Vizitação a Joaq.m An.to Giraldo, e a sua mulher Mariana Rita, por os ter salvo do grande prigo que currerão no dia 12 d'Abril de 1883, pela invasão dos presos da cadeia d'esta villa de Monte-mór o Novo

08 julho 2021

Graciosa elasticidade



Dança tradicional do povo Kao-Nyaro, das Montanhas Nuba, Kordofan do Sul, Sudão, registada em filme pelo catalão Antonio Cores em 1972. A música que acompanha este vídeo não tem qualquer relação com as imagens exibidas e ainda por cima é feia. Muito provavelmente, o filme original não tinha som. Quando foi filmada, esta dança devia ser acompanhada pelo ritmo de tambores africanos, à semelhança do que se vê nesta fotografia feita em 1949 por George Rodger. Recomendo por isso que o vídeo seja visto sem som. Enquanto observarmos a graciosidade dos gestos, a elasticidade dos movimentos e a esbelteza dos corpos cobertos de argila fresca, imaginemos ao mesmo tempo um ritmo de batuque

05 julho 2021

Calvário, de Diogo de Contreiras


 Calvário, c. 1550, de Diogo de Contreiras (c.1500–1565), óleo sobre madeira, Misericórdia de Abrantes, Abrantes, Portugal

O Maneirismo foi uma corrente artística que surgiu na Europa do séc. XVI, como contraponto ao Renascimento, que lhe antecedeu. Enquanto o artista renascentista se inspirava nos valores da Antiguidade Clássica e buscava a beleza sem mácula, a perfeição, o equilíbrio e a harmonia, o artista maneirista rompia frontalmente com estes valores e exprimia a emoção, o contraste, o excesso e a desproporção. São duas formas de fazer arte, que desde então e até aos nossos dias se foram alternando na Europa. Por exemplo, o Neoclassicismo pode ser considerado um regresso aos valores do Renascimento e o Surrealismo é uma revisitação dos valores do Maneirismo. Aliás, podemos dizer que a arte europeia do séc. XX foi, quase toda ela, eminentemente maneirista. Este "Maneirismo" (em sentido lato) continua no séc. XXI, pelo menos até ver.

No séc. XVI, o Maneirismo português dificilmente poderia ter sido inconformista, como o foi em outros países europeus. Em Portugal e respetivas possessões ultramarinas (Brasil, Goa, Macau, etc.), o Maneirismo foi extremamente condicionado pelas duríssimas condições impostas pela Igreja Católica, que lançou o movimento da Contrarreforma (em reação à Reforma luterana), com a sua "tropa de de choque" doutrinária e ideológica, que foi a Companhia de Jesus, e a sua feroz perseguição das "heresias", feita através dos tribunais da Inquisição. Debaixo deste ambiente intolerante e persecutório, o Maneirismo português dedicou-se quase unicamente à abordagem de temas religiosos, muitas vezes de uma forma austera, podendo neste caso, pelo menos em parte, ser chamado de "arte jesuítica". O gosto pelos temas da mitologia greco-romana, que os maneiristas europeus partilhavam com os seus antecessores renascentistas e que abundantemente representaram nas suas obras, em Portugal quase não se exprimiu.

O pintor Diogo de Contreiras foi um dos artistas maneiristas portugueses mais representativos e esteve ativo entre 1521 e 1562. Como não podia deixar de ser, a sua pintura é, dados os condicionalismos apontados, quase totalmente de caráter religioso. O Calvário que acima se reproduz tem este caráter. Além da expressividade pungente transmitida pelas suas figuras principais, que estão representadas em primeiro plano, há a destacar a excessiva diferença de tamanho entre estas e as figuras representadas em segundo plano, num claro desrespeito pelas regras da perspetiva. Esta diferença não é defeito, é feitio. As ameaçadoras nuvens negras que cobrem o céu acentuam a expressividade trágica do quadro.

02 julho 2021

Adoração

Vi o teu rosto lindo,
Esse rosto sem par;
Contemplei-o de longe mudo e quedo,
Como quem volta de áspero degredo
E vê ao ar subindo
O fumo do seu lar!

Vi esse olhar tocante,
De um fluido sem igual;
Suave como lâmpada sagrada,
Benvindo como a luz da madrugada
Que rompe ao navegante
Depois do temporal!

Vi esse corpo de ave,
Que parece que vai
Levado como o Sol ou como a Lua
Sem encontrar beleza igual à sua;
Majestoso e suave,
Que surpreende e atrai!

Atrai e não me atrevo
A contemplá-lo bem;
Porque espalha o teu rosto uma luz santa,
Uma luz que me prende e que me encanta
Naquele santo enlevo
De um filho em sua mãe!

Tremo apenas pressinto
A tua aparição,
E se me aproximasse mais, bastava
Pôr os olhos nos teus, ajoelhava!
Não é amor que eu sinto,
É uma adoração!

Que as asas providentes
De anjo tutelar
Te abriguem sempre à sua sombra pura!
A mim basta-me só esta ventura
De ver que me consentes
Olhar de longe... olhar!

João de Deus (1830–1896)