28 setembro 2015

Ode à paz

Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos atos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exatidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
                          deixa passar a Vida!

Natália Correia (1923–1993)


(Foto de autor desconhecido)

26 setembro 2015

Missa Luba


Missa Luba, pelo coro de rapazes e adolescentes congoleses Les Troubadours du Roi Baudoin, com Joachim Ngoi como solista e sob a direção do padre Guido Haazen (1921–2004). Esta missa baseia-se em canções tradicionais lubas, num arranjo do mesmo padre Guido Haazen, e é constituída pelas seguintes partes: Kyrie (aos 00m 04s), Gloria (aos 02m 07s), Credo (aos 04m 45s), Sanctus (aos 08m 48s), Benedictus (aos 10m 24s) e Agnus Dei (aos 11m 17s). A seguir poderão ainda ouvir-se, no vídeo, três cânticos de música europeia interpretados pelo mesmo coro: Ave Maria, do compositor flamengo Jacques Arcadelt (1507–1568) (aos 13m 12s), Mbali Kule (Gloria in Excelsis Deo), com base num cântico de Natal de origem portuguesa (aos 15m 46s), e O Jesu Christe, do compositor flamengo Jacquet de Berchem (circa 1505–1567) (aos 17m 31s)


A Missa Luba é uma versão da missa latina constituída por canções tradicionais dos Baluba (povo Luba), que vive nas províncias do Kasai Ocidental, Kasai Oriental e Katanga, da República Democrática do Congo. O arranjo e adaptação à liturgia católica romana foram feitos pelo padre Guido Haazen, um franciscano de nacionalidade belga.

Quando a Missa Luba foi editada em disco pela primeira vez em 1958, ela constituiu uma autêntica revolução, pois rompeu com os conceitos então dominantes sobre o que era e o que não era música sacra. Até então, por exemplo, o único instrumento musical que era admitido num culto religioso católico era o órgão. Enfim, com um bocado de boa vontade, poderia admitir-se um harmónio ou um piano em vez do órgão. Mas agora... tambores?! E africanos, ainda por cima?! Numa missa?!

A Missa Luba foi de certo modo premonitória, pois, poucos anos após o seu lançamento em disco, o papa João XXIII convocou um concílio que veio provocar uma grande renovação na Igreja Católica: o concílio Vaticano II. Digamos que a Missa Luba terá ajudado a preparar o espírito de muitos crentes católicos espalhados pelo mundo para as mudanças na Igreja que estavam para vir.

25 setembro 2015

Missa Crioula


Misa Criolla, de Ariel Ramírez (1921–2010), pelo conjunto Los Fronterizos (Juan Cruz, David Apud, Miguel Mora e Nacho Paz) e o Coro Polifónico da Catedral de Santo Isidro, de Buenos Aires


A Missa Crioula é uma obra musical composta em 1964 pelo músico argentino Ariel Ramírez, dentro do espírito do Concílio Vaticano II, que então ainda decorria e que abriu a música sacra às tradições musicais dos povos e determinou a celebração da missa nas línguas vernáculas, e não em latim (e grego antigo, no caso do Kyrie), como até então sucedia. Já na década de 50 tinha sido lançado um disco que nesse tempo foi considerado revolucionário, com a Missa Luba, uma obra de música sacra de raíz africana, mais concretamente da região do Katanga, no então Congo Belga (atual República Democrática do Congo). O êxito alcançado pela Missa Crioula foi enorme, como enorme já tinha sido o êxito da Missa Luba.

A estrutura da Missa Crioula é a do ordinário da missa: Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei. O concerto que aqui se ouve deve ter tido lugar entre os anos de 1996 e 2009, a avaliar pela composição do grupo Los Fronterizos que nele toma parte. O papa Francisco (de seu nome próprio Jorge Mario Bergoglio) foi titular desta mesma catedral de Buenos Aires onde decorreu este concerto, desde 1998 até ser eleito papa em 2013.

23 setembro 2015

Princípio do outono

No outono, as folhas dos liquidâmbares do Parque de Serralves, aqui na cidade do Porto, adquirem cores extraordinárias (Foto: Johnny Mass)


Meu coração dói-me como um corpo estranho. Meu cérebro dorme tudo quanto sinto. Sim, é o princípio do outono que traz ao ar e à minha alma aquela luz sem sorriso que vai orlando de amarelo morto o arredondamento confuso das poucas nuvens do poente. Sim, é o princípio do outono, e o conhecimento claro, na hora límpida, da insuficiência anónima de tudo.

O outono, sim, o outono, o que há ou o que vai haver; e o cansaço antecipado de todos os gestos, a desilusão antecipada de todos os sonhos. Que posso eu esperar e de quê? Já, no que penso de mim, vou entre as folhas e os pós do átrio, na órbita sem sentido de coisa nenhuma, fazendo som de vida nas lajes limpas que um sol angular doura de fim de não sei onde.


Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto fiz ou não fiz — tudo isso irá no outono, como os fósforos gastos que juncam o chão em diversos sentidos, ou os papéis amarrotados em bolas falsas, ou os grandes impérios, as religiões todas, as filosofias com que brincaram, fazendo-as, as crianças sonolentas do abismo. Tudo quanto foi minha alma, desde tudo a que aspirei à casa vulgar em que moro, desde os deuses que tive ao patrão Vasques que tenha, tudo vai no outono, tudo no outono, na ternura indiferente do outono. Tudo no outono, sim, tudo no outono…

Fernando Pessoa (1888–1935), sob o heterónimo Bernardo Soares, in Livro do Desassossego

21 setembro 2015

Guerra

Tanto é o sangue
que os rios desistem de seu ritmo,
e o oceano delira
e rejeita as espumas vermelhas.

Tanto é o sangue
que até a lua se levanta horrível,
e erra nos lugares serenos,
sonâmbula de auréolas rubras,
com o fogo do inferno em suas madeixas.

Tanta é a morte
que nem os rostos se conhecem, lado a lado,
e os pedaços de corpo estão por ali como tábuas sem uso.

Oh, os dedos com alianças perdidos na lama…
Os olhos que já não pestanejam com a poeira…
As bocas de recados perdidos…
O coração dado aos vermes, dentro dos densos uniformes…

Tanta é a morte
que só as almas formariam colunas,
as almas desprendidas… — e alcançariam as estrelas.

E as máquinas de entranhas abertas,
e os cadáveres ainda armados,
e a terra com suas flores ardendo,
e os rios espavoridos como tigres, com suas máculas,
e este mar desvairado de incêndios e náufragos,
e a lua alucinada de seu testemunho,
e nós e vós, imunes,
chorando, apenas, sobre fotografias,
— tudo é um natural armar e desarmar de andaimes
entre tempos vagarosos,
sonhando arquiteturas.

Cecília Meireles (1901–1964), poetisa brasileira


Aleppo, Síria, 3 de outubro de 2012 (Foto: Manu Brabo)

20 setembro 2015

Liberdade, já


Siripipi de Benguela, canção baseada num poema de Ernesto Lara Filho (1932–1977), poeta e jornalista angolano. Canta Carlos Mendes. O siripipi ou rabo-de-junco é um pássaro de Angola

18 setembro 2015

Grávido

Um cavalo-marinho macho grávido (Foto: Monterey Bay Aquarium)

Por incrível que pareça, o cavalo-marinho macho também pode ficar grávido. Exatamente, eu escrevi macho e não fêmea. O cavalo-marinho é o único animal existente na Natureza em que é o macho que fica grávido e não a fêmea.

«Espera aí!», dir-me-ão. «Então não é verdade que o cavalo-marinho é um peixe? Os peixes põem ovos; não são vivíparos como os mamíferos. Como é que um cavalo-marinho pode ficar grávido, ainda por cima sendo macho?»

É verdade. Apesar do seu aspeto pouco convencional para um peixe, o cavalo-marinho é de facto um peixe. E a fêmea desta espécie põe ovos, como as fêmeas de todos os peixes. O que sucede aos ovos a partir do momento em que a fêmea os põe, é que é diferente no caso dos cavalos-marinhos.

Os preliminares para um acasalamento entre cavalos-marinhos são um processo que pode durar bastantes dias, até que o macho e a fêmea estejam em condições fisiológicas apropriadas para se consumar a união. Estas condições são o amadurecimento dos óvulos da fêmea, por um lado, e a expansão de uma bolsa ventral existente no corpo do macho, para que esta possa receber os ovos que a fêmea nela há de depositar, por outro. Durante esta fase preliminar, macho e fêmea nadam lado a lado, entrelaçam as suas caudas, "dançam", etc.

Quando os organismos do macho e da fêmea ficam prontos para a consumação da união, tem lugar uma "dança nupcial" que dura cerca de oito horas. Durante esta "dança", o macho expõe a abertura da sua bolsa. Quando a "dança" termina, o macho e a fêmea sobem juntos, encostados de frente um para o outro. A fêmea introduz um ovipositor na bolsa do macho e liberta nesta, em média, cerca de 100 a 1000 ovos. Uma fêmea pode depositar até 2500 ovos. O macho, por seu lado, liberta os seus espermatozoides diretamente na água do mar e os ovos são fecundados. Os ovos ficam aconchegados num tecido esponjoso existente no interior da bolsa do macho, onde se desenvolvem até nascerem. A incubação dos ovos dura 24 dias.

É verdade que os ovos postos pela fêmea contêm substâncias nutritivas para alimentação dos respetivos embriões, como acontece com qualquer ovo de qualquer peixe. Mas estas substâncias não chegam, nem pouco mais ou menos, para que os embriões de cavalo-marinho se desenvolvam. Assim, além de providenciar um ambiente protetor, favorável ao desenvolvimento dos embriões, a bolsa do macho fornece a estes nutrientes diversos, tais como lípidos ricos em energia, cálcio para a formação do respetivo esqueleto, etc. Fornece-lhes, igualmente, prolactina (que é a mesma hormona que nos mamíferos, incluindo os seres humanos, induz a produção de leite), oxigénio e até um serviço de eliminação de resíduos. Não é por acaso, pois, que no caso do macho cavalo-marinho se fala em gravidez.

Não se pense que a fêmea se desinteressa da sua descendência, depois de se ter visto livre dos ovos, e se vai embora toda elegante, porque mais magra. Não. Todos os dias ela visita o seu "marido" e interage com ele durante cerca de 6 minutos. Os cavalos-marinhos são monogâmicos, pelo menos durante uma época de reprodução.

O nascimento dos pequenos cavalos-marinhos ocorre geralmente de noite. O macho expulsa-os da sua bolsa através de contrações musculares, no que constitui um autêntico parto. De todos os recém-nascidos, só menos de 0,5% consegue atingir a idade adulta, em consequência dos ataques dos predadores e de condições adversas da água do mar, em termos de temperatura, salinidade, etc.

15 setembro 2015

Início das aulas


Abertura para um Festival Académico, op. 80, de Johannes Brahms (1833–1897), num arranjo de Malcolm Sargent (18951967), pela Orquestra Sinfónica da BBC, os BBC Singers e o Coro Sinfónico da BBC, sob a direção de Jiří Bělohlávek


O compositor alemão Johannes Brahms escreveu a Abertura para um Festival Académico em 1880, como forma de agradecimento por um doutoramento honoris causa que lhe foi atribuído pela Universidade de Breslau. Ele mesmo dirigiu esta abertura na estreia, que ocorreu na referida universidade em 1881.

Brahms escreveu esta abertura apenas para orquestra, baseando-se em temas de canções estudantis alemãs. Para o final da abertura, Brahms escolheu o hino da juventude, Gaudeamus Igitur. O maestro britânico Sir Malcolm Sargent, por seu lado, sobrepôs à orquestra um coro, que canta os primeiros versos do hino. Este arranjo de Sargent resulta num final particularmente jubiloso e triunfal, como aqui se pode ouvir.

14 setembro 2015

Os Jovens Kamayurá no séc. XXI

Um índio Kamayurá na margem da lagoa Ypawu, Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso, Brasil (Foto: Ricardo Teles)


Os Kamaiurá, junto com outros treze povos dos troncos linguísticos Tupi, Aruak, Karibe e Trumai, vivem no Parque Indígena do Xingu, estado do Mato Grosso, Brasil. (…)

O povo Kamaiurá, falante da língua tupi-guarani, vive em três aldeias: Ipavu (localizada às margens da lagoa de mesmo nome e composta por 351 pessoas); Morená (localizada na confluência dos rios Batovi, Kuluene e Ronuro, cuja população é de 67 habitantes), e Jacaré (localizada na antiga base da Força Aérea Brasileira (fab), com 21 moradores). (…)

Canarana, Mato Grosso, Brasil. A população do município de Canarana é de quase 20 000 habitantes (Foto: A Gazeta do Vale do Araguaia)

A cidade de Canarana é o primeiro contato com o “mundo dos brancos”. A proximidade facilita visitas, compras e passeios. Num primeiro momento, foi possível perceber jovens, que futuramente serão os responsáveis pela condução das aldeias, bem familiarizados com a vida urbana, inclusive fazendo amplo uso, na aldeia, das novidades encontradas em Canarana, como televisão, DVDs, tablets, notebooks, tênis e roupas de marca. Os recursos para a aquisição desses bens de consumo provêm dos assalariados que desempenham diversas funções na aldeia (professor, merendeira, agentes indígenas de saúde), da doação de amigos e pesquisadores, de projetos como o de Ecoturismo e de direitos autorais de imagem.

Quando estão na cidade, os jovens parecem acostumados ao estilo de vida citadino, alguns se comportam como os adolescentes locais, bebendo, arrumando briga e, eventualmente, sendo fichados na delegacia do município. É assim que os jovens do sexo masculino sentem especial atração por um contato mais íntimo e curioso com as coisas de um mundo que está a algumas horas da aldeia. As visitas a Canarana parecem ser algo plenamente integrado às perspectivas quotidianas e à expectativa de vida dos jovens xinguanos.

Os rapazes acham que Canarana é boa para passear, fazer compras, jogar futebol e tomar cerveja, mas são unânimes em dizer que o melhor lugar para se morar é a aldeia, porque lá têm família, casa, amigos e comida. A cidade, com todos os atrativos, só desperta interesse nos rapazes se eles tiverem dinheiro, caso contrário, torna-se monótona e insípida. Alguns levam artesanato para vender e acabam gastando o dinheiro com bebidas e garotas de programa.

Moças Kamayurá com pinturas corporais tradicionais (Foto: Taily Terena)

Dentre as moças entrevistadas, apenas três nunca foram a Canarana, mas imaginam como é a cidade pelo que veem na televisão e pelos comentários das amigas que já estiveram lá. As três têm vontade de conhecer a cidade para passear e comprar vestido. As moças foram em situações diversas à cidade: as mais novas acompanhando os pais, algumas o marido; outras, os filhos doentes que necessitam de tratamento médico na Casa de Saúde Tuiuiú.

Canarana, sendo o portal de entrada para o mundo branco, representa o primeiro contato com o capitalismo e tudo que ele traz consigo; sem falar nas questões subjetivas, como a geração de sentidos e a assimilação de signos estranhos ao imaginário indígena.

Mesmo procurando manter a tradição, novas atitudes são percebidas na crescente necessidade de consumir produtos que não fazem parte da cultura tradicional, mas estão paulatinamente sendo incorporados à rotina da aldeia. Os Kamaiurá como um todo vão, ainda que de forma tímida, em direção à modernidade; os jovens assumem comportamentos da cidade e aspiram ao desenvolvimento proporcionado por ela.

Diante desse contexto cultural mais complexo, algumas atitudes indicam que uns poucos jovens passam por um processo de transição, indefinição, por um momento de mudança. É uma passagem delicada na qual se mostram entediados, permanecendo muitas horas na rede, ouvindo música, levantando-se apenas no fim da tarde para o tradicional jogo de futebol no centro da aldeia. (…)

Para muitos jovens (moças e rapazes), Canarana não é a única cidade que conhecem: São Paulo, Brasília, Goiânia, Rio de Janeiro, e também outros países, fazem parte do rol de localidades visitadas. Várias vezes, indagados sobre qual o melhor local para morar, se na aldeia ou na cidade, as respostas foram muito semelhantes: lugar bom para morar é a aldeia, porque temos nossa casa, família, e comida; já na cidade a vida é muito difícil, pois precisa-se de dinheiro para tudo, tomar água, refrigerante. Mesmo se tivessem dinheiro para morar na cidade, a aldeia ainda seria vista como o melhor lugar para morar.

O foco desse artigo são os jovens, por isso, achamos importante verificar se a prática da reclusão pubertária (instituição tradicional de grande relevância para marcar a passagem da infância para a vida adulta) vigorava nos mesmos moldes de tempos passados. Fizemos levantamento de quantos jovens haviam passado pela reclusão e qual o tempo de sua duração. (…) A reclusão, tanto masculina quanto feminina, marca um período no qual o jovem é submetido a regras e tabus, e faz parte de complexos procedimentos importantes para a integração das pessoas na sociedade.

Treinando uma forma de luta chamada huka huka (Foto: Takuman Kamayurá)

Há uma fase que poderia ser denominada de pré-reclusão, na qual o jovem é preparado e constantemente lembrado pelo pai sobre o sentido da reclusão e do comportamento que se espera dele. A partir dessa etapa da vida a personalidade é construída e o jovem se prepara para ser um bom lutador de huka huka e ganhar prestígio e reconhecimento social.

A reclusão masculina tem início com a chegada dos sinais da puberdade, ficando a critério dos pais a determinação do tempo da reclusão. Os sinais que definem o início desse período são a mudança na voz e o crescimento dos órgãos genitais. O período de reclusão pode durar até quatro anos, com interrupções de três a sete meses.

Os principais propósitos da reclusão envolvem o desenvolvimento dos jovens, a capacitação para que se tornem grandes lutadores de huka-huka e o aprendizado do artesanato. Oberg [1953: 65], relata que, durante a reclusão, aos meninos eram ensinados mitos e história dos feitos de homens importantes no passado; além de como tocar flautas, fazer arcos e flechas de melhor qualidade e, eventualmente para alguns, sobre crenças religiosas e práticas espirituais.

Durante esse período, os jovens são submetidos à escarificação e à ingestão de raízes para engordar e fortalecer o físico. (…)

A alimentação é controlada e em algumas etapas ocorre a proibição de certos alimentos, como peixe assado, permitindo-se apenas a ingestão de cauim. Nesse período, as regras devem ser seguidas à risca, não sendo permitido a uma mulher menstruada se aproximar ou tocar na comida do recluso; é vedado a ele a ingestão de doce e de pimenta, e o peixe deve ser apenas cozido.

Em nosso levantamento, verificamos que a reclusão continua ocorrendo, embora com variações em sua duração. Antigamente o tempo era superior a dois anos. Hoje, não ultrapassa um ano. Os rapazes com idade superior a vinte e cinco anos relatam que ficaram reclusos por três anos ou mais, enquanto os jovens da faixa etária entrevistada (de quinze a vinte e cinco anos) ficaram em média um ano. (…)

As meninas entram em reclusão após a primeira menstruação, permanecendo deitadas na rede até que cesse o fluxo menstrual, quando se inicia a fase de ingestão de remédios. A reclusão dura em média um ano ininterrupto. Até o sexto mês as meninas ingerem remédios, diferentes dos masculinos, que deverão deixá-las fortes e gordas. O restante do tempo é dividido entre aprendizado e escarificações. Ao contrário dos meninos, elas ficam sedentárias, não desenvolvendo nenhum tipo de atividade física — atividades como o banho são feitas dentro de casa, no local em que ela se encontra reclusa —. As saídas são restritas e ela só pode sair para fazer as necessidades fisiológicas acompanhada de sua mãe, avó, tia ou irmã mais velha e com a cabeça coberta com um pano.

(…) O fim da reclusão é um momento de grande alegria para os familiares e, a partir de então, a jovem pode se casar. (…)

Outro indicador relevante da integração na vida comunitária dos jovens que se tornaram adultos é a abertura de roças, condição preliminar para que possam se casar. Cabe ao homem, a abertura e o preparo da roça de onde provém a mandioca, matéria-prima do beiju, alimento básico da dieta Kamaiurá. Dos 13 rapazes entrevistados, quatro já são casados, têm roça aberta, trabalham e pescam para o sustento da família; quatro são solteiros, mas possuem roça; dois, de 17 e 18 anos, ainda não ficaram reclusos; há apenas um recluso e outro que não tem planos de abrir roça. Existe inquietação entre os mais velhos no sentido de encontrar um meio de manter as tradições, já que percebem a atração dos jovens pela cidade e o relativo descuido com os costumes tradicionais. Para tentar minimizar esse hiato de gerações e fazer com que os jovens aprendam e pratiquem os costumes dos antigos, foi criada na aldeia, em 2001, a Escola de Cultura Mawaiaka, cujo objetivo é estimular os mais jovens a acatarem os valores e as instituições da cultura Kamaiurá.

Atualmente, a Escola Indígena Estadual Mavutsinin possui um professor de cultura Kamaiurá e quatro professores indígenas, atendendo oito turmas (…).

A maioria dos rapazes entrevistados frequentou a escola por algum tempo (parando apenas na época da seca para abrir e preparar a roça. Pelo fato de a seca coincidir com a temporada das festas, a interrupção temporária dos estudos visa garantir os treinos de huka-huka e a participação em festas de outras aldeias); deixando de frequentar as aulas durante a reclusão e ao se casarem, quando passarão a cuidar do sustento da família. O mesmo acontece com as moças: frequentam esporadicamente as aulas quando crianças; interrompem os estudos durante a reclusão, parando definitivamente ao se casarem, para cuidar do marido e dos filhos.

De modo geral, os jovens acreditam que mesmo num futuro distante, a aldeia sempre existirá na forma como eles a conhecem hoje: limpa, bonita, com muitas roças. E eles desejam transmitir para seus filhos e netos os mitos, as histórias e a arte de tocar flautas. (…)

A aldeia Ypawu, do povo Kamayurá, junto à lagoa de que tomou o nome. Parque Indígena do Xingu, MT, Brasil (Foto: Mavutsinin Kamayura)

Embora os deslocamentos para Canarana sejam frequentes, moças e rapazes são unânimes ao afirmar que a cidade é boa apenas para compras e passeios. Verificamos que por parte dos jovens não há o desejo de trocar a segurança da vida na aldeia, onde possuem casa, amigos e comida, pela cidade, porque em Canarana necessitam de dinheiro para sobreviver e se divertir.

Na cidade, aparentam estar acostumados ao estilo de vida urbana e alguns acabam se comportando como os jovens locais, frequentando bares, prostíbulos, boates e até se envolvendo em brigas. Há os que adquirem hábitos urbanos, predileção por uso de roupas da moda, televisão, motos e computadores. Mas eles também sentem o preconceito, nem sempre velado, dos não índios.

Suas relações deixam de ser frias apenas quando se envolvem em transações comerciais nas lojas de artigos baratos, supermercados e hotéis populares. Tudo indica que a discriminação que sofrem impede a criação de vínculos sociais mais estreitos com os moradores de Canarana, empurrando-os de volta à comunidade, onde encontram acolhida na extensa rede de parentesco que ordena as relações e o espaço de que necessitam para se projetarem como pessoas. Por isso, costumam repetir que a cidade é boa apenas quando se tem dinheiro para gastar.

Apesar da atração que esses rapazes sentem pelo movimento da cidade, não se afastam do estilo de vida Kamaiurá, respeitando suas instituições tradicionais. (…)

As moças seguem com mais atenção os comportamentos ditados pela comunidade: trabalho na roça, processamento da mandioca colhida (descascar, ralar e tirar o sumo venenoso), preparo do beiju e cuidado com filhos são repetidos rotineiramente ao lado das mulheres mais velhas.

A televisão, que exibe o mundo da cidade do mesmo modo que Canarana, constitui-se em forte apelo ao consumo das novidades: roupas, carros, motos, formas de divertimento e sonhos de uma vida alegre e cheia de conforto que atraem os jovens. Acreditamos que a pouca experiência que possuem com a leitura e a escrita, e igualmente a falta de acesso a boas leituras, não permite que avaliem criticamente a relativização das mensagens vindas do ideário urbano e destinadas às massas. (…)

É possível afirmar que a vida na aldeia segue um ritmo semelhante ao de algumas décadas passadas, apesar da introdução de alguns hábitos próprios da cidade. A maior facilidade para as viagens a Canarana responde por essa alteração gradual no comportamento dos jovens. Entretanto, o fato de os índios terem assegurado o controle sobre seu vasto território e gozarem de autonomia relativa na gestão dos negócios da aldeia, talvez garanta uma transição suave em direção à modernidade.

Nesse sentido, o papel desempenhado pelos mais velhos e também pelas mulheres representa uma força conservadora destacada bem mais presente que os anseios inovadores dos jovens. Pode se prever que, não ocorrendo alteração significativa na correlação dessas forças, os Kamaiurá poderão continuar a acomodar as mudanças sem correrem o risco de sofrer uma desorganização irreversível em seu modo de vida.

Contudo, para que essa previsão se concretize, é preciso que a Escola amplie seus objetivos e se constitua num núcleo dinâmico de irradiação da ciência e das artes, fazendo do conhecimento um aliado eficaz na decifração dos novos tempos e na escolha de caminhos futuros, que não neguem a generosidade e a igualdade social, até hoje a base da vida comunitária.



Vaneska Taciana Vitti e Carmen Junqueira, in Jovens Kamaiurá no século XXI


À semelhança de muitos outros povos indígenas brasileiros, os Kamayurá (que a si próprios se chamam Apy'ap) tomam banho várias vezes ao dia. A primeira vez tem lugar ainda de madrugada, antes de o sol nascer. Como durante a noite a água da lagoa arrefeceu menos do que o ar, ela está mais quente do que este. O vapor de água que se liberta da lagoa condensa-se em contacto com o ar frio da madrugada, formando uma neblina sobre as águas (Foto: Alex Almeida)

08 setembro 2015

Pequeno poema

Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.

Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve estrelas a mais…
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém…

Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe…

Sebastião da Gama (1924–1952)


Quando eu era criança…

06 setembro 2015

Dançando nas ruas de Atenas


Moving Athens, um vídeo de Jevan Chowdhury

01 setembro 2015

Baleal

A península do Baleal, Peniche (Foto: Duarte Fernandes Pinto)

O Baleal é uma pequena península. Ou melhor, é uma pequena península... quando o mar não o transforma em ilha. Situado nas imediações de Peniche, para norte desta cidade, o Baleal é habitualmente uma península, ligada ao continente por uma língua de areia ao longo da qual passa a única estrada de acesso à pequena aldeia nela existente. Mas em dias de temporal ou em tempo de marés vivas (como as que vão ocorrer agora neste mês de Setembro), o mar pode passar por cima da língua de areia, cortar o acesso e o Baleal ser transformado em ilha. Este tipo de istmo em língua de areia é chamado tômbolo. Também o acesso por estrada à cidade de Peniche é feito por um tômbolo, embora o mar já não o consiga cobrir em tempo algum.

A costa de Peniche é um local de encontro de duas correntes marítimas: uma que vem de sudoeste e outra que vem de noroeste. Em resultado do choque entre elas, as areias e outros sedimentos que as correntes transportam perdem velocidade e depositam-se. Há, portanto, um progressivo assoreamento desta costa, processo através do qual as ilhas se vão transformando em penínsulas e as penínsulas vão sendo cada vez mais incorporadas na terra "firme", acabando por ficar afastadas do mar.

No tempo de D. Afonso Henriques, por exemplo, Peniche era uma ilha e o mar chegava até às proximidades de Atouguia da Baleia. Através do assoreamento ocorrido ao longo dos séculos, o mar foi depositando areia entre Atouguia e Peniche, até que esta cidade ficou ligada ao continente por um tômbolo e Atouguia da Baleia ficou longe do mar. Enfim, ficou o nome "Baleia" para nos recordar que Atouguia já foi uma localidade costeira em tempos que já lá vão.

Se este processo de assoreamento continuar a verificar-se, podemos esperar que dentro de muitos séculos as Berlengas também acabarão por ser transformadas em penínsulas. Os nossos descendentes deixarão então de experimentar a aventura que nós podemos agora viver, de viajar num pequeno barco até às Berlengas por um mar muitas vezes encapelado.

Voltemos ao Baleal. O que o Baleal tem de especial, além de ser península umas vezes e ilha outras, são os lindíssimos estratos inclinados da rocha calcárea que o constituem. Certamente que, do ponto de vista estrito da ciência geológica, os estratos do Baleal não têm nada de especial. Num país como Portugal, onde abundam as rochas sedimentares, há estratos nas mais variadas posições, inclusivamente na vertical, como na Praia Grande, em Sintra, ou às ondas. Mas no Baleal os estratos inclinados produzem um efeito estético de tão grande beleza, que vale a pena lá ir só para os apreciar.


Ilha das Pombas, um ilhéu existente junto ao Baleal (Foto: Vítor Oliveira)