Os Jovens Kamayurá no séc. XXI
Um índio Kamayurá na margem da lagoa Ypawu, Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso, Brasil (Foto: Ricardo Teles) |
Os Kamaiurá, junto com outros treze povos dos troncos linguísticos Tupi, Aruak, Karibe e Trumai, vivem no Parque Indígena do Xingu, estado do Mato Grosso, Brasil. (…)
O povo Kamaiurá, falante da língua tupi-guarani, vive em três aldeias: Ipavu (localizada às margens da lagoa de mesmo nome e composta por 351 pessoas); Morená (localizada na confluência dos rios Batovi, Kuluene e Ronuro, cuja população é de 67 habitantes), e Jacaré (localizada na antiga base da Força Aérea Brasileira (fab), com 21 moradores). (…)
Canarana, Mato Grosso, Brasil. A população do município de Canarana é de quase 20 000 habitantes (Foto: A Gazeta do Vale do Araguaia) |
A cidade de Canarana é o primeiro contato com o “mundo dos brancos”. A proximidade facilita visitas, compras e passeios. Num primeiro momento, foi possível perceber jovens, que futuramente serão os responsáveis pela condução das aldeias, bem familiarizados com a vida urbana, inclusive fazendo amplo uso, na aldeia, das novidades encontradas em Canarana, como televisão, DVDs, tablets, notebooks, tênis e roupas de marca. Os recursos para a aquisição desses bens de consumo provêm dos assalariados que desempenham diversas funções na aldeia (professor, merendeira, agentes indígenas de saúde), da doação de amigos e pesquisadores, de projetos como o de Ecoturismo e de direitos autorais de imagem.
Quando estão na cidade, os jovens parecem acostumados ao estilo de vida citadino, alguns se comportam como os adolescentes locais, bebendo, arrumando briga e, eventualmente, sendo fichados na delegacia do município. É assim que os jovens do sexo masculino sentem especial atração por um contato mais íntimo e curioso com as coisas de um mundo que está a algumas horas da aldeia. As visitas a Canarana parecem ser algo plenamente integrado às perspectivas quotidianas e à expectativa de vida dos jovens xinguanos.
Os rapazes acham que Canarana é boa para passear, fazer compras, jogar futebol e tomar cerveja, mas são unânimes em dizer que o melhor lugar para se morar é a aldeia, porque lá têm família, casa, amigos e comida. A cidade, com todos os atrativos, só desperta interesse nos rapazes se eles tiverem dinheiro, caso contrário, torna-se monótona e insípida. Alguns levam artesanato para vender e acabam gastando o dinheiro com bebidas e garotas de programa.
Moças Kamayurá com pinturas corporais tradicionais (Foto: Taily Terena) |
Dentre as moças entrevistadas, apenas três nunca foram a Canarana, mas imaginam como é a cidade pelo que veem na televisão e pelos comentários das amigas que já estiveram lá. As três têm vontade de conhecer a cidade para passear e comprar vestido. As moças foram em situações diversas à cidade: as mais novas acompanhando os pais, algumas o marido; outras, os filhos doentes que necessitam de tratamento médico na Casa de Saúde Tuiuiú.
Canarana, sendo o portal de entrada para o mundo branco, representa o primeiro contato com o capitalismo e tudo que ele traz consigo; sem falar nas questões subjetivas, como a geração de sentidos e a assimilação de signos estranhos ao imaginário indígena.
Mesmo procurando manter a tradição, novas atitudes são percebidas na crescente necessidade de consumir produtos que não fazem parte da cultura tradicional, mas estão paulatinamente sendo incorporados à rotina da aldeia. Os Kamaiurá como um todo vão, ainda que de forma tímida, em direção à modernidade; os jovens assumem comportamentos da cidade e aspiram ao desenvolvimento proporcionado por ela.
Diante desse contexto cultural mais complexo, algumas atitudes indicam que uns poucos jovens passam por um processo de transição, indefinição, por um momento de mudança. É uma passagem delicada na qual se mostram entediados, permanecendo muitas horas na rede, ouvindo música, levantando-se apenas no fim da tarde para o tradicional jogo de futebol no centro da aldeia. (…)
Para muitos jovens (moças e rapazes), Canarana não é a única cidade que conhecem: São Paulo, Brasília, Goiânia, Rio de Janeiro, e também outros países, fazem parte do rol de localidades visitadas. Várias vezes, indagados sobre qual o melhor local para morar, se na aldeia ou na cidade, as respostas foram muito semelhantes: lugar bom para morar é a aldeia, porque temos nossa casa, família, e comida; já na cidade a vida é muito difícil, pois precisa-se de dinheiro para tudo, tomar água, refrigerante. Mesmo se tivessem dinheiro para morar na cidade, a aldeia ainda seria vista como o melhor lugar para morar.
O foco desse artigo são os jovens, por isso, achamos importante verificar se a prática da reclusão pubertária (instituição tradicional de grande relevância para marcar a passagem da infância para a vida adulta) vigorava nos mesmos moldes de tempos passados. Fizemos levantamento de quantos jovens haviam passado pela reclusão e qual o tempo de sua duração. (…) A reclusão, tanto masculina quanto feminina, marca um período no qual o jovem é submetido a regras e tabus, e faz parte de complexos procedimentos importantes para a integração das pessoas na sociedade.
Treinando uma forma de luta chamada huka huka (Foto: Takuman Kamayurá) |
Há uma fase que poderia ser denominada de pré-reclusão, na qual o jovem é preparado e constantemente lembrado pelo pai sobre o sentido da reclusão e do comportamento que se espera dele. A partir dessa etapa da vida a personalidade é construída e o jovem se prepara para ser um bom lutador de huka huka e ganhar prestígio e reconhecimento social.
A reclusão masculina tem início com a chegada dos sinais da puberdade, ficando a critério dos pais a determinação do tempo da reclusão. Os sinais que definem o início desse período são a mudança na voz e o crescimento dos órgãos genitais. O período de reclusão pode durar até quatro anos, com interrupções de três a sete meses.
Os principais propósitos da reclusão envolvem o desenvolvimento dos jovens, a capacitação para que se tornem grandes lutadores de huka-huka e o aprendizado do artesanato. Oberg [1953: 65], relata que, durante a reclusão, aos meninos eram ensinados mitos e história dos feitos de homens importantes no passado; além de como tocar flautas, fazer arcos e flechas de melhor qualidade e, eventualmente para alguns, sobre crenças religiosas e práticas espirituais.
Durante esse período, os jovens são submetidos à escarificação e à ingestão de raízes para engordar e fortalecer o físico. (…)
A alimentação é controlada e em algumas etapas ocorre a proibição de certos alimentos, como peixe assado, permitindo-se apenas a ingestão de cauim. Nesse período, as regras devem ser seguidas à risca, não sendo permitido a uma mulher menstruada se aproximar ou tocar na comida do recluso; é vedado a ele a ingestão de doce e de pimenta, e o peixe deve ser apenas cozido.
Em nosso levantamento, verificamos que a reclusão continua ocorrendo, embora com variações em sua duração. Antigamente o tempo era superior a dois anos. Hoje, não ultrapassa um ano. Os rapazes com idade superior a vinte e cinco anos relatam que ficaram reclusos por três anos ou mais, enquanto os jovens da faixa etária entrevistada (de quinze a vinte e cinco anos) ficaram em média um ano. (…)
As meninas entram em reclusão após a primeira menstruação, permanecendo deitadas na rede até que cesse o fluxo menstrual, quando se inicia a fase de ingestão de remédios. A reclusão dura em média um ano ininterrupto. Até o sexto mês as meninas ingerem remédios, diferentes dos masculinos, que deverão deixá-las fortes e gordas. O restante do tempo é dividido entre aprendizado e escarificações. Ao contrário dos meninos, elas ficam sedentárias, não desenvolvendo nenhum tipo de atividade física — atividades como o banho são feitas dentro de casa, no local em que ela se encontra reclusa —. As saídas são restritas e ela só pode sair para fazer as necessidades fisiológicas acompanhada de sua mãe, avó, tia ou irmã mais velha e com a cabeça coberta com um pano.
(…) O fim da reclusão é um momento de grande alegria para os familiares e, a partir de então, a jovem pode se casar. (…)
Outro indicador relevante da integração na vida comunitária dos jovens que se tornaram adultos é a abertura de roças, condição preliminar para que possam se casar. Cabe ao homem, a abertura e o preparo da roça de onde provém a mandioca, matéria-prima do beiju, alimento básico da dieta Kamaiurá. Dos 13 rapazes entrevistados, quatro já são casados, têm roça aberta, trabalham e pescam para o sustento da família; quatro são solteiros, mas possuem roça; dois, de 17 e 18 anos, ainda não ficaram reclusos; há apenas um recluso e outro que não tem planos de abrir roça. Existe inquietação entre os mais velhos no sentido de encontrar um meio de manter as tradições, já que percebem a atração dos jovens pela cidade e o relativo descuido com os costumes tradicionais. Para tentar minimizar esse hiato de gerações e fazer com que os jovens aprendam e pratiquem os costumes dos antigos, foi criada na aldeia, em 2001, a Escola de Cultura Mawaiaka, cujo objetivo é estimular os mais jovens a acatarem os valores e as instituições da cultura Kamaiurá.
Atualmente, a Escola Indígena Estadual Mavutsinin possui um professor de cultura Kamaiurá e quatro professores indígenas, atendendo oito turmas (…).
A maioria dos rapazes entrevistados frequentou a escola por algum tempo (parando apenas na época da seca para abrir e preparar a roça. Pelo fato de a seca coincidir com a temporada das festas, a interrupção temporária dos estudos visa garantir os treinos de huka-huka e a participação em festas de outras aldeias); deixando de frequentar as aulas durante a reclusão e ao se casarem, quando passarão a cuidar do sustento da família. O mesmo acontece com as moças: frequentam esporadicamente as aulas quando crianças; interrompem os estudos durante a reclusão, parando definitivamente ao se casarem, para cuidar do marido e dos filhos.
De modo geral, os jovens acreditam que mesmo num futuro distante, a aldeia sempre existirá na forma como eles a conhecem hoje: limpa, bonita, com muitas roças. E eles desejam transmitir para seus filhos e netos os mitos, as histórias e a arte de tocar flautas. (…)
A aldeia Ypawu, do povo Kamayurá, junto à lagoa de que tomou o nome. Parque Indígena do Xingu, MT, Brasil (Foto: Mavutsinin Kamayura) |
Embora os deslocamentos para Canarana sejam frequentes, moças e rapazes são unânimes ao afirmar que a cidade é boa apenas para compras e passeios. Verificamos que por parte dos jovens não há o desejo de trocar a segurança da vida na aldeia, onde possuem casa, amigos e comida, pela cidade, porque em Canarana necessitam de dinheiro para sobreviver e se divertir.
Na cidade, aparentam estar acostumados ao estilo de vida urbana e alguns acabam se comportando como os jovens locais, frequentando bares, prostíbulos, boates e até se envolvendo em brigas. Há os que adquirem hábitos urbanos, predileção por uso de roupas da moda, televisão, motos e computadores. Mas eles também sentem o preconceito, nem sempre velado, dos não índios.
Suas relações deixam de ser frias apenas quando se envolvem em transações comerciais nas lojas de artigos baratos, supermercados e hotéis populares. Tudo indica que a discriminação que sofrem impede a criação de vínculos sociais mais estreitos com os moradores de Canarana, empurrando-os de volta à comunidade, onde encontram acolhida na extensa rede de parentesco que ordena as relações e o espaço de que necessitam para se projetarem como pessoas. Por isso, costumam repetir que a cidade é boa apenas quando se tem dinheiro para gastar.
Apesar da atração que esses rapazes sentem pelo movimento da cidade, não se afastam do estilo de vida Kamaiurá, respeitando suas instituições tradicionais. (…)
As moças seguem com mais atenção os comportamentos ditados pela comunidade: trabalho na roça, processamento da mandioca colhida (descascar, ralar e tirar o sumo venenoso), preparo do beiju e cuidado com filhos são repetidos rotineiramente ao lado das mulheres mais velhas.
A televisão, que exibe o mundo da cidade do mesmo modo que Canarana, constitui-se em forte apelo ao consumo das novidades: roupas, carros, motos, formas de divertimento e sonhos de uma vida alegre e cheia de conforto que atraem os jovens. Acreditamos que a pouca experiência que possuem com a leitura e a escrita, e igualmente a falta de acesso a boas leituras, não permite que avaliem criticamente a relativização das mensagens vindas do ideário urbano e destinadas às massas. (…)
É possível afirmar que a vida na aldeia segue um ritmo semelhante ao de algumas décadas passadas, apesar da introdução de alguns hábitos próprios da cidade. A maior facilidade para as viagens a Canarana responde por essa alteração gradual no comportamento dos jovens. Entretanto, o fato de os índios terem assegurado o controle sobre seu vasto território e gozarem de autonomia relativa na gestão dos negócios da aldeia, talvez garanta uma transição suave em direção à modernidade.
Nesse sentido, o papel desempenhado pelos mais velhos e também pelas mulheres representa uma força conservadora destacada bem mais presente que os anseios inovadores dos jovens. Pode se prever que, não ocorrendo alteração significativa na correlação dessas forças, os Kamaiurá poderão continuar a acomodar as mudanças sem correrem o risco de sofrer uma desorganização irreversível em seu modo de vida.
Contudo, para que essa previsão se concretize, é preciso que a Escola amplie seus objetivos e se constitua num núcleo dinâmico de irradiação da ciência e das artes, fazendo do conhecimento um aliado eficaz na decifração dos novos tempos e na escolha de caminhos futuros, que não neguem a generosidade e a igualdade social, até hoje a base da vida comunitária.
Vaneska Taciana Vitti e Carmen Junqueira, in Jovens Kamaiurá no século XXI
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