19 fevereiro 2025

Música para quatro saxofones


Divertimento para Quarteto de Saxofones, do compositor e maestro português Marcos Romão dos Reis Júnior (1917–2000), por membros do Ensemble de Sopros da Associação das Filarmónicas do Concelho de Leiria

15 fevereiro 2025

A inteligência artificial também erra


(Ilustração de autor desconhecido)

Errare humanum est é uma conhecida locução latina que significa "errar é humano". Todos os seres humanos cometem erros: uns graves, outro desprezáveis e até alguns que poderão ser fatais. E as máquinas, também se enganam? Se sim, porquê e como?

Uma máquina que seja completamente estúpida não se engana, porque se limita a fazer sempre da mesma maneira aquilo para que foi feita, uma e outra vez, ad æternum. Já quanto à chamada inteligência artificial (IA), o caso muda completamente de figura. Já existem muitos e diversos sistemas de inteligência artificial, que têm características diferenciadas consoante o fim a que se destinam, mas o mais popular de todos é, sem dúvida nenhuma, o chamado LLM (Large Language Model, ou seja, Grande Modelo de Linguagem), que é uma forma de inteligência artificial generativa de que o ChatGPT e o DeepSeek são neste momento os exemplos mais conhecidos, com milhões e milhões de utilizadores espalhados pelo mundo.

Ao contrário das máquinas estúpidas, a IA generativa pode enganar-se e pode assim enganar os seus utilizadores humanos de forma completamente convincente, mesmo que estes estejam atentos e prevenidos. Como poderemos nós saber se o ChatGPT ou outro sistema semelhante nos está a enganar ou a dizer a verdade? O que diferencia os erros das máquinas dos erros dos humanos?

Quando o chatbot (podemos chamar-lhe interlocutor) de uma IA generativa com o qual estamos a interagir, nos debita lixo sem pés nem cabeça, não temos dúvidas de que a IA teve uma "alucinação" e mandamo-la dar uma volta ao bilhar grande. Mesmo quando o chatbot nos apresenta frases gramaticalmente corretas, mas que são manifestamente disparatadas, tal como aconselhar-nos a comer pedras, também a mandamos bugiar. Estas e outras afirmações ridículas feitas pelo ChatGPT e afins já aconteceram e irão continuar a acontecer, espera-se que com uma frequência cada vez menor. O problema surge quando os erros da IA generativa são de tal maneira subtis que acabamos por acreditar neles, tal como por vezes acreditamos em algumas das fake news que agora pululam por aí, por mais prevenidos que estejamos, porque parecem fazer sentido e fingem ser credíveis.

O que é que distingue os erros cometidos pelas máquinas dos erros cometidos pelos humanos? Há diferenças? Há. Os humanos enganam-se muitas vezes nas contas, por exemplo. Eu engano-me quase sempre, aliás. A quantidade de erros que cometemos quando fazemos contas varia consoante o estado de fadiga em que nos encontrarmos. Quanto mais fatigados estivermos, mais nos enganamos. A IA generativa, pelo contrário, não se fatiga, não precisa de fazer uma pausa para tomar café ou desentorpecer as pernas. Os seus erros são sistemáticos e ocorrem com uma frequência mais ou menos constante ao longo do tempo. As suas respostas erradas aparecem de uma forma aleatória e até podem resultar numa mistura de afirmações corretas com afirmações erradas, tornando-se difícil distinguir umas das outras.

Muitos erros humanos podem resultar da ignorância ou, pelo menos, de um conhecimento deficiente relativamente a um dado assunto. Já a inteligência artificial generativa, como os LLM, não tem dúvidas. Ela faz uma afirmação completamente idiota com a mesma aparente convicção de quem tem a certeza absoluta do que diz. A IA generativa limita-se a consultar a sua incomensurável base de dados, recolhe uns dados, recolhe outros, compara-os, aceita uns (geralmente os que lhe aparecem mais vezes), rejeita outros, interliga os que aceitou, procura analogias, corta aqui, acrescenta acolá, elabora um texto (ou cria uma imagem, ou o que for), verifica se está correto do ponto de vista gramatical (ou outro) e apresenta-nos o resultado.

A IA generativa não tem conhecimentos; tem dados. Não tem bom senso; tem raciocínio lógico. Não tem intuição; tem dedução. Não sabe sequer se sabe ou se não sabe; o que ela "sabe", é o que está registado nos seus monstruosos centros de dados, que são continuamente alimentados pelos seus rastreadores (web crawlers) que permanentemente pesquisam e recolhem tudo o que encontram na web, incluindo o conteúdo deste despretensioso blog. Se nos seus centros de dados a IA generativa encontrar um texto irónico ou sarcástico, leva‑o a sério, porque também não sabe o que é a ironia. É possível que alguns dos disparates com que ela nos brinda possam vir de textos humorísticos, como um qualquer texto que proponha que se comam pedras ao pequeno‑almoço para emagrecer… A IA poderá então concluir que comer pedras faz bem à saúde, porque o texto lho diz, e pimba!, diz uma asneira completamente absurda. Não se pode confiar cegamente na IA generativa. Ainda por cima, quanto mais elaborados e complexos forem os raciocínios que ela for chamada a desenvolver, maior será a probabilidade de errar em algum ponto.

A IA generativa é passível de correção e de melhoramentos ao longo do tempo. Não é estática. Não é por acaso que ela se chama generativa. O ChatGPT está cada vez melhor e o mesmo se passa com os outros LLM, que se corrigem a si próprios em função das respostas e reações que vão recebendo dos seus utilizadores humanos. A chamada aprendizagem-máquina (machine learning) existe mesmo e funciona mesmo. As melhores formas de lidar com os erros da IA e de corrigi-los, antes de eles chegarem ao utilizador final, são atualmente objeto de intensa investigação por parte dos engenheiros e cientistas envolvidos no seu desenvolvimento. Do trabalho destes só poderemos esperar avanços cada vez maiores, tanto para o bem como para o mal, porque a tecnologia, em si, é neutra; boa ou má será a utilização que se fizer dela.

09 fevereiro 2025

Ella Fitzgerald in a mellow tone


In a Mellow Tone, um tema de Duke Ellington, na voz de Ella Fitzgerald, saxofone tenor de Ben Webster, piano de Oscar Peterson, contrabaixo de Ray Brown, guitarra de Herb Ellis e bateria de Alvin Stoller. Apenas áudio. Gravado em 1957

07 fevereiro 2025

O auriga de Motya


Auriga de Motya, c. 470 A.C., estátua de mármore de escultor grego anónimo. Museu Giuseppe Whitaker, Mozia, Marsala, Itália
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Auriga é o nome que se dava na Antiguidade a um condutor de carros de combate ou de corrida puxados por cavalos. Auriga de Motya é o nome de uma escultura grega, que se considera ser uma das estátuas mais representativas da Antiguidade Clássica. Calcula-se que tenha sido feita no ano 470 A.C., aproximadamente, por um escultor grego cujo nome não se conhece.

Esta estátua foi descoberta em 1979, quando se faziam escavações no que resta da antiga cidade de Motya (Mozia em italiano), situada numa ilha que agora se chama São Pantaleão e fica junto ao extremo ocidental da Sicília, Itália. A estátua foi encontrada sem braços, sem pés, com a cabeça separada do corpo e o rosto danificado. Foi possível colocar a cabeça no seu lugar, mas as partes que faltam não foram encontradas.

A estátua Auriga de Motya mostra-nos um auriga representado numa atitude que parece ser de triunfo e de orgulho, como se tivesse acabado de vencer uma corrida de carros nuns quaisquer jogos pan-helénicos, fossem eles olímpicos ou outros. São visíveis dois dedos e vestígios dos outros dedos da mão esquerda, o que sugere claramente que o auriga devia ter essa mão pousada na anca do mesmo lado. Quanto ao braço direito, só podemos tentar adivinhar que ele estaria erguido, eventualmente para que o auriga se pudesse coroar como vencedor de uma corrida. Existem pequenos buracos no cimo da cabeça que parecem indicar que eles teriam servido para fixar um qualquer adereço metálico, que podia ser uma coroa de folhas de oliveira, mas também podia ser um elmo.

Nesta escultura, o auriga apresenta-se vestido com uma diáfana e comprida túnica e, por cima da túnica, tem uma faixa atravessada sobre o peito, com dois pequenos buracos à frente, provavelmente para a fixação de outro adereço metálico. Na vida real, esta faixa era feita de couro e servia para proteger o corpo do auriga do atrito provocado pelas rédeas dos cavalos. Numa batalha, um auriga precisava de utilizar as suas mãos para disparar setas contra o inimigo e, por isso, não podia usá-las ao mesmo tempo para segurar as rédeas dos cavalos. As rédeas eram passadas em volta do tronco do auriga, que as controlava com movimentos do corpo, ao mesmo tempo que as suas mãos manuseavam o arco e as flechas.

Foi dito acima que esta notável escultura foi encontrada no local de uma antiga cidade chamada Motya, junto à Sicília, que como se sabe não fica na Grécia. Poderíamos então pensar que Motya seria uma colónia grega, mas não é verdade. Motya era uma colónia, sim, mas púnica, isto é, de Cartago. Ora Cartago foi uma cidade fundada no norte de África pelos fenícios e não pelos gregos. A cultura cartaginesa era por isso semita e não grega. Então, como foi que uma estátua grega foi parar a uma colónia púnica? Não se sabe. Há várias teorias, a mais plausível das quais talvez seja a de que a estátua do Auriga de Motya tenha sido fruto de um saque ocorrido no decurso de uma das várias guerras que opuseram Cartago à Grécia, mas ninguém tem a certeza.

04 fevereiro 2025

Galope de Kabalevsky


Galope, n.º 2 da suite Os Comediantes, op. 26, do compositor russo Dimitri Kabalevsky (1904–1987), numa gravação histórica com a Orquestra de Filadélfia dirigida por Eugene Ormandy

02 fevereiro 2025

O Panteão dos Lemos, em Trofa do Vouga


Estes são os grupos tumulares do lado da Epístola (lado direito de quem está virado para a capela-mor) do Panteão dos Lemos, em Trofa do Vouga. À esquerda está o túmulo de Duarte de Lemos, com a sua estátua orante, e à direita o de sua esposa, D. Joana de Melo. Na igreja matriz de Góis existe um túmulo semelhante ao de Duarte de Lemos, que é o túmulo de Luis da Silveira e que poderá ser do mesmo autor (Foto de Manuelvbotelho)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Estes são os grupos tumulares do lado do Evangelho (lado esquerdo de quem está virado para a capela-mor) do Panteão dos Lemos, em Trofa do Vouga, com os túmulos dos dois primeiros senhores de Trofa, Gomes Martins de Lemos e seu filho João Gomes de Lemos, juntamente com as respetivas mulheres (Foto de Manuelvbotelho)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Pormenor da estátua orante de Duarte de Lemos, no seu túmulo do Panteão dos Lemos, em Trofa do Vouga (Foto: Jgqa56)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Os Lemos foram uma orgulhosa família de senhores de uma povoação situada no concelho de Águeda, chamada Trofa, nome ao qual se acrescenta frequentemente o nome Vouga (Trofa do Vouga), para evitar confusões com uma outra Trofa, que hoje é cidade do distrito do Porto. A família Lemos tinha as suas raízes na Galiza, como o nome claramente sugere, e laços de parentesco com outras personalidades de primeiro plano da nobreza castelhana, o que explica a sua empáfia.

A personalidade que mais se destacou no seio desta família foi Duarte de Lemos (c.1480–1558), que foi o 3.º senhor de Trofa. Duarte de Lemos partiu para a Índia em 1505 com D. Francisco de Almeida, regressou logo a seguir ao Reino e partiu de novo em 1508. Após uma sucessão de acontecimentos que não vêm ao caso, Duarte de Lemos acabou por ser nomeado pelo rei D. Manuel capitão-mor do Mar da Etiópia, Arábia e Pérsia, enquanto Afonso de Albuquerque o foi da Índia.

Duarte de Lemos achou que tinha poucos homens e escassos meios para a vastíssima costa que tinha ficado à sua responsabilidade. Resolveu pedir mais homens e mais naus a Afonso de Albuquerque, que recusou o seu pedido. Duarte de Lemos foi mesmo pessoalmente à Índia (provavelmente a Cochim, onde Albuquerque estaria), mas nem assim obteve uma resposta favorável. Mais: não só Afonso de Albuquerque recusou satisfazer o pedido de Duarte de Lemos, como quis que este o auxiliasse a conquistar Goa. Deve ter havido uma discussão acalorada entre ambos e Duarte de Lemos regressou à sua base (em Socotorá, uma ilha no Oceano Índico em frente à entrada para o Mar Vermelho) sem conseguir o que pretendia. Entretanto, e mesmo sem o apoio de Duarte de Lemos, Afonso de Albuquerque conseguiu conquistar Goa, ainda que com terríveis dificuldades.

O desentendimento entre Duarte de Lemos e Afonso de Albuquerque chegou ao conhecimento do rei D. Manuel, que tomou partido por Albuquerque. D. Manuel retirou a Duarte de Lemos os seus cargos de responsabilidade, ordenou o seu regresso ao Reino e atribuiu esses cargos a Afonso de Albuquerque, que ficou com jurisdição sobre todo o Oceano Índico.

Afonso de Albuquerque não ficou a descansar, saboreando a sua vitória. Conquistou Goa, como já se disse, e também conquistou Calecute, Ormuz, Malaca, Diu, e só não conquistou Adém, à entrada do Mar Vermelho, porque as coisas lhe correram mal, tendo sido ferido no assalto a esta cidade e ficado com um braço inutilizado. Tudo isto ele fez aos 60 anos de idade, mais ou menos, o que no séc. XVI já devia ser uma idade muito considerável! As ambições de Afonso de Albuquerque eram de tal maneira faraónicas, no verdadeiro sentido do termo, que ele chegou a pensar desviar o curso do rio Nilo, para assim fazer vergar o sultão do Cairo, seu principal inimigo!

Duarte de Lemos, por sua vez, regressou a Trofa, certamente zangado com Afonso de Albuquerque e com o rei, mas riquíssimo. Não foi em vão que ele andou pelos mares do Oriente. Duarte de Lemos encomendou um requintado panteão, onde ele pudesse ser sepultado juntamente com os parentes que o tinham antecedido como senhores de Trofa. É o agora chamado Panteão dos Lemos, uma maravilha da arte renascentista, que está na capela-mor da igreja matriz de Trofa do Vouga.

Desconhecem-se os nomes dos autores do Panteão dos Lemos. Apenas se podem fazer conjeturas, falando-se em nomes como João de Ruão, Nicolau de Chanterenne e Hodart, este como possível autor da estátua orante de Duarte de Lemos. Todos estes artistas foram notáveis escultores e arquitetos franceses, que muito vieram enriquecer a arte em Portugal, mas neste caso não se sabe ao certo quem foi que fez o quê.

Para acabar a história, refira-se que, após a conclusão do panteão, Duarte de Lemos partiu para o Brasil e estabeleceu-se numa ilha, que é a ilha onde está agora a cidade de Vitória, capital do estado do Espírito Santo. Duarte de Lemos acabou por morrer no Brasil e foi trasladado para o seu panteão em Trofa do Vouga, onde está sepultado.

29 janeiro 2025

Que prazer e que deleite


Ária Qual piacere e qual diletto, da ópera cómica Oro non compra amore, escrita em 1804 pelo compositor português Marcos Portugal (1762–1830) sobre um libreto de Giuseppe Caravita. Recital interpretado pela soprano Sofia Pedro, a instrumentista Gili Rinot em clarinete clássico e o Ensemble Phoenix em instrumentos da época, sob a direção de Myrna Herzog. Gravação ao vivo numa igreja cristã da cidade de Abu Gosh, em Israel, onde a grande maioria da população é muçulmana

26 janeiro 2025

Um poema da Guerra Colonial


Aquartelamento de Calambata, no antigo distrito (atual província) do Zaire, Angola, onde estava instalada uma companhia do Exército Português (Foto: José Bregieiro, 1972)


CALAMBATA

à memória dos nove

(como) a manhã africana inventa a anhara deserta
onde os passos descem do sopro das armas.
A voz cheia da bazuca numa vibração oblíqua.
O coice súbito do morteiro. O silvo em ogiva na face
cinzenta do medo. O cheiro imaginário da maresia.
O medo, o medo.

E como a súbita emboscada acontece
entre o Lungadge e a Magina, exactamente
às nove horas em ponto da manhã africana.
Um auto de corpo de delito se lavra sobre
a anhara então deserta. São nove homens,
têm a minha idade. Diz-se que deslizam pássaros
autopsiados na véspera da memória.

O cacimbo, esta face de areia suspensa. Fitam-me
nove pares de olhos mortos. Como se do chão uma
lâmina se abrisse por entre crateras para as
minhas mãos, crescendo rápida, fugaz.

Via-se a anhara ondular. Uma bandeira nos imaginados
mamoeiros ou na lança dos bambus. E na franja das
mulembas a presença erecta das cubatas: caçambuleiros
velhos de cachimbo apontado ao norte, dengosas
velhas mulheres, os bois tristes como os olhos dos
monangambas, o grito dos monandengues a anunciar
grandes distantes chuvas de morte sobre o mundo.

O imbondeiro: uma árvore de braços abertos sobre a manhã, a terra num sobressalto mudo e cego debaixo da guerra, como se toda uma eterna madrugada acordasse veloz para nos fechar e suturar os olhos, a língua, a boca, os gestos sem cor.

Tensos os braços na espera. Passam da manhã para a tarde. O socorro não vem, a terra num sobressalto a flutuar dentro da guerra. A madrugada acordada na hora veloz da sutura sobre a boca. E eis que a manhã desperta nas metralhadoras.
O ventre, os ouvidos, o peito tomado de assalto.
O combate é um ser vivo, um réptil a corroer os membros,
a face a vida destes nove rapazes da minha idade.

E então, Calambata, palavra escrita a nove letras.
A manhã de nove horas africanas,
o corpo de nove rapazes da minha idade.

João de Melo, escritor português


NOTAS

1 — Os nove rapazes a que João de Melo se refere neste seu poema foram nove jovens militares portugueses, mortos numa emboscada ocorrida numa picada a cerca de 30 quilómetros da fronteira norte de Angola, no ano 1973. Pertencentes a uma companhia instalada em Calambata, os nove militares dirigiam-se a Maquela do Zombo para, na volta, trazerem reabastecimentos em combustível destinados à sua companhia.

2 — Existe um escritor português chamado João de Melo e existe um escritor angolano chamado João Melo, mas sem "de". São dois escritores distintos.



GLOSSÁRIO

anhara — planície coberta de capim
cacimbo — névoa
mulembas — árvores muito frondosas semelhantes aos sicómoros
cubatas — palhotas
caçambuleiros — trôpegos? (de caçambular = fintar, driblar)
monangambas — trabalhadores forçados
monandengues — garotos, meninos
imbondeiro — baobá, Adansonia digitata

24 janeiro 2025

Take Five


Take Five, uma composição de Paul Desmond, pelo Dave Brubeck Quartet, com Dave Brubeck no piano, Paul Desmond no saxofone alto, Eugene Wright no contrabaixo e Joe Morello na bateria. Gravado em 1959

22 janeiro 2025

A cerâmica dos índios Waurá, também chamados Waujá


Pôr-do-sol no Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso, Brasil, onde vivem os índios Waurá ou Waujá (Foto: Piratá Waurá)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Cerâmica dos índios Waurá apresentada numa exposição (Foto: Piratá Waurá)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Dois potes de barro decorados com desenhos tradicionais do Xingu e cujas tampas têm pegas que representam cabeças de onça. «Segundo a história quando não existia a humanidade o criador procurava água e encontrou na casa de um ser muito pote de água, no outro dia ele voltou flechando as potes e água explodiu (…)». (Foto: Piratá Waurá)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Ultimando a decoração do fundo de uma grande panela de barro, destinada à preparação do beiju, uma espécie de grande panqueca confecionada a partir do polvilho de mandioca (Foto: Piratá Waurá)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Recipiente de barro. «Quando o cacique escolhe seu sucessor que seja jovem é realizado a furação de orelha, nesse momento o pote é utilizado para anestesiar a orelha dos jovens» (Foto: Piratá Waurá)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Duas grandes panelas de barro (Foto: Piratá Waurá)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Alguns desenhos tradicionais utilizados na decoração da cerâmica são também empregues na pintura corporal (Foto: Piratá Waurá)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Piratá Waurá é um talentoso fotógrafo pertencente ao povo Waurá ou Waujá, do Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso, Brasil. Todas as imagens que ilustram este post são da sua autoria e foram colhidas na sua página pessoal no Instagram



Os artefatos da cultura material wauja são muito apreciados, tendo por isso uma das melhores entradas no mercado do artesanato indígena brasileiro. A sua singularíssima cerâmica é um emblema de sua etnicidade. Atualmente, a cerâmica tem um peso extraordinário na manutenção econômica da aquisição de bens industrializados.

(...) O sistema gráfico wauja está estruturado a partir da combinação de cinco elementos gráficos mínimos:

1) triângulos (retângulos e isósceles);

2) pontos;

3) círculos;

4) quadriláteros (losangos, quadrados, retângulos e trapézios);

5) linhas (retas e curvas).

Como em qualquer sistema de arte ornamental, são as combinações padronizadas dos elementos mínimos que determinam a formação de um motivo. O grafismo wauja utiliza aproximadamente de 40 a 45 motivos na ornamentação da cultura material, fora outros tantos especialmente usados na pintura corporal. Apesar dessa riquíssima variedade de motivos gráficos, apenas 16 motivos são empregados com frequência, e, dentre esses, o motivo kulupienê tem sido desenhado com altíssima frequência sobre todos os tipos de suportes desde a primeira notícia histórica sobre os xinguanos em 1884. Este motivo também foi identificado em cerâmicas do século XII.




Aristóteles Barcelos Neto, antropólogo brasileiro

20 janeiro 2025

Um baixo-relevo com 25 000 anos


A chamada Vénus de Laussel, de há cerca de 25 000 anos, baixo‑relevo em calcário, encontrada em Laussel, Marquay, Dordogne, França. Representa uma mulher segurando um chifre de bisonte na sua mão direita. Museu da Aquitânia, Bordéus, França
(Clicar na imagem para ampliá-la)

18 janeiro 2025

Espírito da Floresta


Espírito da Floresta, princípios do séc. XIX, escultura de madeira feita por um artista anónimo do povo Ijo, que vive no delta do Níger, Nigéria. Los Angeles County Museum of Art, Los Angeles, Estados Unidos da América
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Esta estranha escultura nigeriana é chamada Espírito da Floresta e retrata os perigos existentes numa floresta de mangues ou mangal. O povo Ijo, a que pertenceu o criador desta obra de arte, é um povo que habita no delta do Rio Níger, onde o mangal é uma vegetação dominante.

O mangal é um tipo de vegetação existente no litoral de regiões equatoriais e tropicais, que está adaptada a viver num ambiente alagadiço e sujeito à subida e descida das marés. A água onde cresce o mangal tanto pode ser salgada como salobra. Além de serem capazes de viver em condições de salinidade que matariam qualquer outra planta, os mangues possuem raízes parcialmente descobertas, que sustentam a planta "no ar", sugerindo muitas vezes as patas de um aranhiço. As raízes de muitos mangues reunidos dão ao mangal um aspeto característico.

Além de ser uma importantíssima barreira que protege a costa contra a erosão marítima, o mangal constitui um ecossistema riquíssimo do ponto de vista biológico, sendo habitado por numerosas espécies animais como peixes, crustáceos, sanguessugas, macacos, répteis, batráquios e muitos outros bicharocos que vivem na água, no coberto vegetal ou são anfíbios.

O mangal de um delta, como o do Níger, constitui um labirinto de ilhas entre as quais serpenteiam os braços do rio e no qual é fácil alguém se perder. Além disso, a existência de cobras e outras espécies perigosas para o ser humano impõe que se tenha o maior cuidado quando se penetra no mangal. A curiosa escultura acima representada chama a atenção, de uma forma extraordinariamente sugestiva, para os perigos existentes no mangal do delta do Níger.


Pormenor do mangal existente no delta do Rio Níger (Foto de autor desconhecido)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

15 janeiro 2025

Escada


Pintura, 1965, óleo sobre tela de José Escada (1934–1980). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Dans la plage, 1979, plástico de José Escada (1934–1980). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Sem título, 1972, óleo sobre platex de José Escada (1934–1980). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
(Clicar na imagem para ampliá-la)

José Jorge da Silva Escada foi um pintor nascido em Lisboa em 1934 e falecido na mesma cidade em 1980. Começou por estudar na Escola António Arroio, em Lisboa, e em 1958 concluiu o curso de Pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. Em 1959 foi com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian para Paris, cidade onde permaneceu até 1969 e que muito o influenciou. De volta a Lisboa, tornou-se cliente habitual do Café Gelo, no Rossio, juntando-se assim a outros artistas, escritores e intelectuais que já frequentavam este icónico estabelecimento. A sua obra, dotada de grande originalidade, encontra-se espalhada por muitas coleções.

11 janeiro 2025

Viagem ao Maravilhoso


Primeiro episódio da série documental Viagem ao Maravilhoso, realizado em 1990 por Carlos Brandão Lucas para a RTP

09 janeiro 2025

Ralhete

Não me cobres
histórias de adormecer
quando o obus
rebenta no quintal
não me peças luz
se as janelas estão trancadas
não me lembres dos traumas
nem fales de fantasmas
quando eu sonho com
todos os companheiros
que sinto perder na batalha
a cada tempo
não me perguntes sobre o amor
que não tive
nem pelo coração, que esse,
faz tempo, jaz gelado
na granada do meu peito.
Porque procuras os meus olhos
se há muito foram perfurados
pelos estilhaços?
Como te atreves a querer
que te dê a mão se ainda agora
a ofereci em troca de pão?
E, sobretudo, não me perguntes
pelo que não disse
pois a minha boca
há muito se fechou à força
do fuzil do homem
que em mim te semeou.

Ana Santana, poetisa e economista angolana


(Foto de autor desconhecido)

07 janeiro 2025

Fantasia Coral de Beethoven


Fantasia Coral, para piano, vozes solistas, coro misto e orquestra, op. 80, de Ludwig van Beethoven (1770–1827), pela pianista argentina Martha Argerich, o maestro japonês Seiji Osawa e solistas, coro e orquestra não identificados, o que é imperdoável

05 janeiro 2025

Domínguez Álvarez


Casario e Figuras de um Sonho, 1934, óleo sobre tela de Domínguez Álvarez (1906–1942). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Adega do Galo, 1930, óleo sobre tela de Domínguez Álvarez (1906–1942). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Rua de Santo Ildefonso, óleo sobre tela de Domínguez Álvarez (1906–1942). Coleção particular
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Paisagem de Frías, 1932, óleo sobre tela de Domínguez Álvarez (1906–1942). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Sem título, têmpera sobre papel de Domínguez Álvarez (1906–1942). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Paisagem de Contumil, óleo sobre cartão de Domínguez Álvarez (1906–1942). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Capa do catálogo de uma exposição de obras de Domínguez Álvarez (1906–1942), realizada em Lisboa pela Fundação Calouste Gulbenkian em 2007–2008
(Clicar na imagem para ampliá-la)

De ascendência galega, tanto por parte da mãe como por parte do pai, José Cândido Domínguez Álvarez foi um pintor nascido no Porto em 1906 e falecido na mesma cidade em 1942. Estudou no Porto e na Galiza e obteve a classificação máxima (20 valores) como nota final, no curso de Pintura da Escola Superior de Belas-Artes do Porto. Apesar da nota conseguida, Domínguez Álvarez nunca conseguiu obter em vida o reconhecimento do seu real valor. Nunca foi a Paris, ao contrário de tantos outros artistas, e nem sequer foi a Lisboa, limitando as suas deslocações ao norte de Portugal e de Espanha. Mesmo assim, foi um pintor notável, dos melhores do séc. XX. O que ele teve, foi o azar de viver num tempo em que a ditadura do Estado Novo alimentava uma arte conformista e virada para a glorificação do passado, o que ele não fazia.

Domínguez Álvarez foi um pintor modernista. Em algumas das suas obras, é evidente a assumida influência do pintor maneirista El Greco. Noutras, surgem enigmáticos vultos de chapéu na cabeça, em ambientes inquietantes. Pintou bastantes paisagens, com destaque para a representação de vilas e cidades do norte de Espanha. Como viveu na portuense Rua da Vigorosa, às Antas, também pintou algumas paisagens rurais ali bem perto, em Contumil, uma antiga aldeia administrativamente absorvida pela cidade. No seu tempo, Contumil ainda tinha um caráter rural muito acentuado.

01 janeiro 2025

Ouvir estrelas

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…

E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”

Olavo Bilac (1865–1918), poeta brasileiro

30 dezembro 2024

Rock and roll para animar a passagem de ano


Let's Have a Party, por Wanda Jackson

C'mon Everybody, por Eddie Cochran

The Twist e Let's Twist Again, por Chubby Checker

Ain't That a Shame, por Fats Domino

Barbara Ann, por The Beach Boys

You're Sixteen, por Johnny Burnette

Runaway, por Del Shannon

28 dezembro 2024

Lenda da campainha de bronze


Em primeiro plano, o castelo de Monsanto, com a singela capela de Santa Maria do Castelo no seu interior; em segundo plano, "aninhada" à sombra do castelo, a vila de Monsanto, concelho de Idanha-a-Nova (Foto: Duarte Fernandes Pinto)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Há muito tempo já, governava o castelo de Monsanto um homem duro, resoluto, positivo nas suas acções, mas um tanto descrente das coisas divinas. Como o seu povo tinha por hábito e devoção fazer arder na noite de Natal um pesado madeiro em honra do Menino Jesus, precisamente à porta da capela de Santa Maria do Castelo, ele entendeu que essa devoção era imprópria de um povo equilibrado, pois forçava-o ao sacrifício de transportar pela encosta acima o madeiro que lhes parecia mais digno de tão régio Menino. E resolveu pôr cobro a tão piedoso acto. Ora o povo adora as suas tradições, e tentar apagá-las é para ele mais negra sina que a própria fome. Assim, toda a povoação ficou em louco alvoroço quando a nova começou a correr.

O Tio João da Quinta, um dos homens mais sensatos do lugar, entrou desenfreado em casa, gritando para a mulher.

— Não querem lá ver esta! Isto não pode ser! É um pecado!

A Tia Lucrécia abriu os olhos num espanto, ao ver o seu homem em tal desespero. E indagou:

— Homem, que te aconteceu?

Ele encarou-a como se fosse ralhar-lhe. E continuou gritando:

— Aconteceu a mim…. a ti… e a todos os moradores deste lugar! Mas não está certo! Não está certo! Vai haver castigo, lá isso vai!

Cada vez mais surpreendida, Tia Lucrécia voltou a perguntar, já muito inquieta:

— Mas o que foi, homem?

Ele deu um murro sobre a pobre mesa, que gemeu.

— Ora o que havia de ser! O senhor Governador deu ordem para que o madeiro não seguisse esta tarde para a porta da capela!

— Então para onde é que ele há-de ir?

Parou o Tio João de gesticular. Pôs-se mesmo em frente da mulher, a ler-lhe no rosto o efeito das palavras que ia proferir.

— Ora aí está! O madeiro vai ser todo partidinho em achas, para ser queimado na lareira do castelo!

Tia Lucrécia recuou, abrindo a boca num espanto.

— Pode lá ser!

— Pois é como te digo.

A mulher repetiu como para si mesma, ainda de olhos esbugalhados:

— Na lareira do Governador! Essa nem ao diabo lembrava!…

E persignando-se, aflita:

— Cruzes… figas, Canhoto!

O homem teve um risinho sem vontade, e exclamou:

— Pois digas o que disseres… essa ideia teve-a o senhor Governador!

E suspirando fundo, acrescentou:

— Grande perigo está sobre a sua cabeça! Não quereria estar na pele dele, não! Desfeitear assim o Menino Jesus… E logo nesta noite!

Tia Lucrécia olhava agora uma imagem do Menino Jesus colocada sobre uma cómoda tosca. Depois desviou o olhar, pensativa, e indagou:

— E o povo? Que diz o povo?

Tio João abanou a cabeça. Voltou a encolerizar-se.

— Que diz o povo? Que dizes tu? Que digo eu?… Estamos todos revoltados! Mas ele é o Senhor Governador! É ele quem manda! Que pode o povo contra ele?

Voltou a suspirar fundo.

— E um madeiro tão bom! Custou tanto a arranjá-lo… Parece impossível! O madeiro do Menino Jesus!

Tia Lucrécia concluiu, num eco:

— Que grande pecado!

Voltou a animar-se, o Tio João.

— Olha, pragas não lhe faltam! O povo está pior do que uma bicha. Grande castigo vai cair sobre o castelo!

E encolhendo os ombros:

— Ora! Ele que se havenha! Por mim tenho cá uma ideia…

Voltou a curiosidade a reflectir-se na expressão da mulher.

— E que ideia tiveste, homem?

Ele entusiasmou-se:

— Que ideia tive?… Só te digo que o Menino Jesus não pode ficar sem o seu madeiro.

— E que podes fazer tu?

— Ir buscar outro madeiro!

— E levam-no lá acima, sem ordem do senhor Governador?

Tio João pareceu hesitar.

— Bem… os outros têm medo! Mas eu…

— Tu… o quê?

— Eu… penso que poderei levá-lo lá acima sozinho!

Tia Lucrécia gritou, aflita:

— Estás doido, homem? Com uma invernia destas… E sozinho na montanha?…

Ele tentou sorrir.

— Ora! Ainda sou forte e novo demais para precisar de ajudas!

— Mas sozinho?… Ninguém é capaz de te vir ajudar?

— Olha: para falar a verdade… eu é que não quero companhias…

Continuava perplexa, a Tia Lucrécia.

— Não queres companhias! Mas tu não estás bom, homem! Não queres, porquê?

— Porque, se a coisa se espalhar, ele proíbe que eu queime o madeiro. E então… é que teria de desobedecer-lhe, compreendes? Ele só disse que queria o madeiro que era para levarmos para a porta da capela. Mais nada!

Ela meneou a cabeça.

— Cuidado, homem! Se a moura te aparece…

— Qual moura?

— A moura que está encantada na gruta. Ninguém pode subir a montanha sozinho, em vésperas de Natal!

Ele encolheu os ombros.

— Ora adeus!… Histórias dos nossos avós…

Empertigou-se a mulher.

— O quê, não acreditas?

— Eu, não. Só vendo.

Voltou a benzer-se, a Tia Lucrécia.

— Oh, Virgem Santa! Que te livres disso, porque esta moura dizem que é das más! Tem pactos com o Demónio!

Ele tentou gracejar.

— Pois olha: se assim é, foi a moura que impediu que levassem o madeiro lá acima, e fez com que o Governador tivesse esta triste ideia. Pois vou contrariá-la!

Tia Lucrécia quase chorava.

— Oh, homem, vê lá o que fazes!

— Deus é grande!

E estendendo a mão:

— Dá-me daí a minha manta e o machado.

Ela foi buscar a manta. Vinha mais pálida que a sua blusa branca.

— Estou toda a tremer!… Toma lá a manta. O machado está aí ao pé de ti.

Ele pôs a manta ao ombro e pegou no machado. Olhou a mulher bem de frente.

— Quando esta gente souber que fui queimar o madeiro sozinho, vai abrir a boca de pasmo!

— Se te parece!…

— Mas não dês já com a língua nos dentes! Deixa que eu volte.

— Está descansado. Mas não demores muito… Tenho tanto medo!

O homem saiu. Ao abrir a porta, uma lufada de vento frio bateu-lhe no rosto. Caía neve. Puxou para si a gola do casacão, embrulhou-se na manta, e começou a subir a montanha. O vento zunia pela encosta escarpada, como uivos de feras ou gritos de almas penadas…

Uivava o vento como lobo esfaimado. O frio punha rugas fundas no rosto do Tio João. Agora, ele ia subindo devagar. Cortara o lenho e levava-o sozinho, para a velha capela de Santa Maria do Castelo. Arfava de cansaço. E ainda tinha de subir um bom bocado.

O vento uivou com mais força. Ele parou um instante, a descansar. De súbito, pareceu-lhe ouvir um grito. Levantou a cabeça. Espevitou os sentidos. Que seria? O vento?... Outro grito soou, cortado por lamentos. Eram gritos de mulher. Donde vinham? Talvez da gruta. Pousou o madeiro no chão e correu para lá. De súbito, estacou. Que via? Um tesouro! E ali, em plena serra! Jamais alguém o descobrira! Que enorme riqueza! Tanto ouro junto! E seria mesmo ouro?... Aproximou-se mais. O vento parecia ter acalmado. A neve cessara de cair. Era ouro mesmo. Moedas e moedas sem conta! E campainhas… tantas campainhas de ouro! Que maravilha!

Uma voz de mulher chamou-o de mansinho:

— João, não tenhas medo. Tudo isto te pertence!

Estremeceu. Parecia ouvir, num alerta, a voz de Lucrécia perguntando ansiosa:

— E se a moura te aparece?…

Respirou fundo. Ele não estava a sonhar e não acreditava em mouras encantadas! E se o tesouro fosse, de facto, mourisco? Teria de praticar grandes feitos para o possuir. Pelo menos era assim que ouvira dizer à mãe e à avó, quando lhe contavam histórias de mouras encantadas. Feitos? Que poderia ele fazer? Não, era melhor não ser ambicioso. Riquezas que não lhe pertenciam, para que as queria? Subira o monte para levar o madeiro ao Menino Jesus. Pois iria até ao fim da tarefa qu se havia proposto fazer. Como recordação dessa visão admirável e estranha, levaria apenas uma campainha.

Estendeu o braço. Tocou com os dedos, ao de leve, no ouro. Silêncio absoluto à sua volta. Fez pressão nos dedos. Retirou o braço, com a campainha na mão. Voltou as costas ao tesouro. Ia partir. Mas a voz estranha da mulher que há pouco lhe falara chamando-o pelo seu nome, de novo se fez ouvir.

— Que fazes? Vais fugir? Agora não! Tocaste no meu ouro e, portanto, pertences-me!

O Tio João da Quinta olhou para o lado donde vinha a voz. Uma linda mulher envolta num manto branco olhava-o com certa dureza. O coração bateu-lhe mais apressado. Não era medroso, mas aquela aparição não lhe dizia nada de bom. Perguntou:

— Quem és tu, que sabes o meu nome?

Ela respondeu:

— Sou uma pobre moura há muito aqui encantada. Tu me procuraste no dia e hora aprazados pelo meu destino. Agora é preciso que me salves, ou ficarás aqui comigo para sempre!

— E que preciso fazer?

— Leva este ouro e constrói aqui um novo castelo. Mas antes disso tens de destruir a capela lá de cima!

João revoltou-se.

— Destruir a capela? Para quê?

— Porque ninguém mais reinará neste monte senão eu… e tu!

João olhou o tesouro. Olhou a mulher que lhe falava. Sentiu medo. Um medo como nunca tinha sentido. Gritou:

— Tu não és moura… És o Demónio, com disfarce de mulher! Vai-te! Não te quero!

Ela falou uma vez mais:

— É escusada a tua revolta. Já me pertences!

Olhando a capelinha lá no alto, João persignou-se, dizendo:

— Valha-me Nossa Senhora do Castelo!

Um novo grito de mulher cortou o espaço. A sua voz fez renascer o vento. Mas sobre essa voz uma outra se fez ouvir:

— Em bronze se transforme a campainha em que tocaste!

Um ruído semelhante ao trovão ecoou no espaço. O vento voltou a uivar. A neve a cair. O frio gelava. Mas a mulher moura e o tesouro haviam desaparecido. Ele olhou então para a campainha que tirara, e ficou boquiaberto: a campainha, que fora de ouro, estava transformada em bronze!

O homem caiu de joelhos. Orou frases de gratidão sincera à Virgem do Castelo.

— Senhora! Obrigado por me teres salvo! Vou levar-te já o madeiro que trago para o Deus Menino, e dar-te-ei ainda esta campainha de ouro que transformaste em bronze. Ficará para uso da tua capela, como sinal de gratidão de um pobre mortal!

A neve continuava a cair e o vento a uivar. Tio João levantou-se. Pegou no madeiro que havia deixado cair no chão. Colocou-o sobre os ombros e reencetou a caminhada. Mais satisfeito. Mais tranquilo. Mais feliz!



Gentil Marques, Lendas de Portugal