28 outubro 2025

A machadinha



Um camponês tinha uma filha, e casou-a com um rapaz da sua terra. No dia da boda estando à mesa, os noivos, os pais e as mães deles, e muitos convidados, disse o camponês para a mulher: «Oh Maria, vai à adega buscar mais vinho, pois quero fartar os nossos convidados.» Foi a mulher à adega, e ia-se passando muito tempo sem que ela voltasse. Então o camponês levantou-se da mesa e foi ver se tinha sucedido alguma cousa à mulher. Chegado à adega, viu a mulher parada a olhar para uma machadinha que estava pendurada no teto, e perguntou-lhe: «Oh mulher! que estás tu aí a fazer?» Responde-lhe ela: «Olha homem; estava a lembrar-me que quando a nossa filha tiver pequenos, se eles para aqui vierem brincar, que lhes pode cair aquela machadinha na cabeça e matá‑los!» «Dizes bem mulher; ai se tal sucedia!» E ficou também a olhar para a machadinha. Vendo a noiva que o pai e a mãe não vinham foi ter com eles à adega, e perguntou-lhes o que estavam fazendo ali. Então eles responderam: «Olha, filha, estávamo‑nos lembrando que em tu tendo meninos, se eles vierem brincar para aqui, que lhes pode cair aquela machadinha na cabeça e matá-los.» «É verdade, senhora mãe, que pode isso acontecer.» E lá ficou também a olhar para a machadinha. Pouco a pouco todos os convidados que estavam à mesa, foram para a adega olhar para a machadinha.

Restava só o noivo, que foi por último, mas ao ver a doidice daquela gente, fugiu, em busca duma terra onde não houvesse gente tão doida. Ao chegar a uma terra, viu muita gente a fugir, outros subindo para cima das árvores, e de muros, e outros fechando as portas e as janelas, finalmente havia o terror e o medo por toda a parte; parecia o acabamento do mundo. O rapaz perguntou então o que era a causa de tantos medos como iam naquela terra; e responderam-lhe: que andava lá um bicho que comia gente, e que ninguém se atrevia a matá‑lo. O rapaz ao ver o bicho soltou uma gargalhada, pois a causa do terror daquela gente não era mais de que um peru; e ofereceu-se para o matar, sob a condição de lhe darem muito dinheiro. Morto o peru recebeu o rapaz grandes somas de dinheiro e partiu para outra terra. Ali andavam muitas mulheres, e crianças com joeiras ao sol. Ele então perguntou o que andavam fazendo, e responderam‑lhe: que andavam a apanhar o sol para o levarem para casa, pois não entrava lá nem de verão nem de inverno. O rapaz respondeu-lhes que elas não eram capazes de apanhar o sol, mas que se lhe pagassem bem, que ele era capaz de lho pôr dentro das casas. As mulheres deram todas muito dinheiro ao rapaz e ele tirou-lhes algumas telhas dos telhados, e logo elas viram o sol dentro das suas casas. Partiu o rapaz para outra terra, já muito admirado do que tinha visto, quando se lhe depara uma mulher que estava enfeitando uma porca com muitos cordões de ouro, fitas e flores; e perguntou-lhe: «Para onde quereis mandar esse animal, que estais enfeitando?» Ao que a mulher respondeu: «Saiba vossemecê que eu sou viúva, e que o meu homem fazia hoje anos, e por isso quero ver se encontro um portador para o paraíso, para lhe mandar esta porca, e esta bolsa de dinheiro.» Respondeu o rapaz: «Nunca vossemecê falou mais a tempo, pois para o paraíso é que eu vou.» A mulher entregou-lhe a porca e o dinheiro. O rapaz já não cabia em si de contente com tanto dinheiro que levava, e convencido que no mundo já não havia gente de juízo, resolvia-se a voltar a casa da sua noiva. No caminho, porém, deteve-se por causa de muitos gritos, de ai, quem me acode! quem me acode! que ouviu e tendo-se aproximado do sítio de onde partiam os gritos viu muitos homens deitados uns sobre os outros, e perguntou-lhes: «O que estão ai a gritar? por que não se levantam?» Eles responderam: «Estamos aqui há três dias sem nos podermos levantar, pois não sabemos quais são as pernas de cada um.» Respondeu-lhe o rapaz, que ia já fazer com que eles se levantassem, mas que lhe haviam de dar muito dinheiro. Eles logo disseram que todos lhe havim de pagar muito bem. O rapaz pegou então num cajado e começou a bater nas pernas dos homens, e eles puseram-se a gritar: «Ai, ai, as minhas pernas!» e começaram todos a levantar-se. Depois deram muito dinheiro ao rapaz, e ele lá voltou muito rico para casa da sua noiva, e mandou tirar a machadinha da adega; e viveu sempre muito feliz.



Conto popular recolhido por Adolfo Coelho (1847-1919)

25 outubro 2025

Cantar sobre as águas


Auf dem Wasser zu singen, um lied do compositor austríaco Franz Schubert (1797–1828) sobre um poema do alemão Friedrich Leopold zu Stolberg-Stolberg (1750–1819), pelo barítono alemão Dietrich Fischer-Dieskau (1925–2012) e o pianista britânico Gerald Moore (1899–1987)

23 outubro 2025

Luís de Meneses


Retrato da Viscondessa de Meneses, 1862, óleo sobre tela de Luís de Meneses (Visconde de Meneses) (1817–1878). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa
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Retrato da Filha, Elisa Wilfrida, c. 1878, óleo sobre tela de Luís de Meneses (Visconde de Meneses) (1817–1878). Museu Nacional Soares dos Reis, Porto
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O trovador da aldeia, de Luís de Meneses (Visconde de Meneses) (1817–1878). Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa
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Retrato de Antero de Quental, de Luís de Meneses (Visconde de Meneses) (1817–1878). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa

O Tambor, 1866, de Luís de Meneses (Visconde de Meneses) (1817–1878). Coleção particular
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Luís de Miranda Pereira de Meneses nasceu no Porto em 1820. Era filho primogénito de um juiz, a quem a rainha D. Maria II atribuiu o título de Visconde de Meneses em duas vidas.

Apoiante da causa constitucional e defensor da rainha, tal como seu pai, Luís de Meneses viu ser-lhe renovado o título de Visconde de Meneses em verificação da segunda vida, por D. Fernando II, quando este exerceu o cargo de regente do reino durante a menoridade de D. Pedro V. Luís de Meneses foi, portanto, o 2.º e último Visconde de Meneses.

Desde muito cedo, Luís de Meneses revelou uma destacada vocação artística. Foi viver para Lisboa em 1834 e o seu talento não escapou à atenção de D. Fernando II. Incentivado por este e financiado por seu pai, Luís partiu para Itália, tendo estudado em Veneza e em Roma. Após concluir os seus estudos, viajou por vários países europeus e regressou a Portugal em 1850.

Luís de Meneses foi um dos primeiros pintores do Romantismo em Portugal e especializou-se na arte do retrato. A sua pintura mais famosa representa a sua própria esposa, Carlota Guimarães, que era uma senhora de grande beleza. Luís de Meneses faleceu em 1878.

19 outubro 2025

Valsa Sobre las Olas, de Juventino Rosas


Valsa Sobre las Olas, do compositor indígena mexicano Juventino Rosas (1868–1894), por uma orquestra não identificada

16 outubro 2025

Vaidade Terrena e Salvação Divina


Frente

Verso
Vaidade Terrena e Salvação Divina, seis quadros a óleo sobre madeira de carvalho, presentemente dispostos como tríptico (frente e verso), do pintor alemão radicado em Bruges (Flandres) Hans Memling (c.1430-1494). Museu de Belas-Artes, Estrasburgo, França
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Estamos em presença de seis painéis pintados a óleo por Hans Memling, que terão feito parte de um tríptico ou de um políptico. Os painéis foram separados uns dos outros antes de 1890 e agora não se sabe ao certo qual era a sua disposição original. Não se sabe sequer se teria havido mais painéis além destes, que também fariam parte do mesmo políptico e entretanto se perderam. A disposição aqui representada é a que está patente no Museu de Belas-Artes de Estrasburgo, mas poderia muito bem ter sido outra.

Na frente do tríptico e à esquerda, está uma representação da Morte. Rodeando a figura simbólica, estão as seguintes palavras: Ecce finis hominis comparatus sum luto et assimilatus sum faville et cineri (Eis que o fim do homem é comparável com o lodo e eu sou semelhante a pó e cinza).

Ao centro, uma representação da Vaidade.

À direita, uma representação simbólica do Inferno, acompanhada do texto In inferno, nulla est redemptio (No inferno não há qualquer redenção).

No verso do tríptico e à esquerda, está um brasão de armas acompanhado do lema Nul bien sans peine (Não há bem sem sofrimento).

Ao centro está Cristo, Salvador do Mundo.

À direita, encontra-se o painel Memento Mori (Recordação dos Mortos), com a representação de uma caveira; em baixo, podem ler-se as palavras Scio enim quod redemptor meus vivit et in novissimo diedeterra surrecturus sum et rursum circūdabor pelle mea et incarne mea videbo deū salvaorem meum Job XIX° cap° (Pois eu sei que o meu Redentor vive, e que no último dia me levantarei sobre a terra, e serei revestido da minha pele e da minha carne, e verei a Deus, meu Salvador. Job, cap. 19).

09 outubro 2025

Divertimento N.º 1 de Mozart


Divertimento para Orquestra de Cordas N.º 1 em Ré Maior, de Wolfgang Amadeus Mozart (1756–1791), K. 136 (isto é, n.º 136 do catálogo Köchel das obras de Mozart), escrito quando o compositor tinha 16 anos de idade. Interpretação pelo violinista finlandês Pekka Kuusisto e a Orquestra de Câmara Norueguesa

06 outubro 2025

Gaivota

Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
morreria no meu peito,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.

Alexandre O'Neill (1924-1986)


Amália Rodrigues canta Gaivota, música de Alain Oulman para um poema de Alexandre O'Neill

04 outubro 2025

Subpoesia

Subsaarianos somos
sujeitos subentendidos
subespécies do submundo

subalimentados somos
surtos de subepidemias
sumariamente submortos

do subdólar somos
subdesenvolvidos assuntos
de um sul subserviente

José Luís Mendonça, poeta angolano



Algures em Angola (Foto: Adalberto Gourgel)

02 outubro 2025

Bailado Les Sylphides de Chopin


Les Sylphides, um bailado baseado em música de Frédéric Chopin (1810–1849), orquestrada por Alexander Glazunov (1865–1936), e com coreografia de Michel Fokine (1880–1942), interpretado pelas bailarinas americanas Marianna Tcherkassky, Cynthia Harvey e Cheryl Yeager, o bailarino Mikhail Baryshnikov (letão naturalizado americano), e o corpo de bailado do American Ballet Theater

O compositor polaco Frédéric Chopin nunca escreveu música para bailado, e menos ainda para um bailado chamdo Les Sylphides, mas a verdade é que existe um tal bailado, cuja música é corretamente atribuída a Frédéric Chopin.

Toda a música de Chopin foi escrita para piano, a solo ou acompanhado, e muita dela foi inspirada nas danças tradicionais do país natal do compositor, a Polónia. Um outro compositor, o russo Alexander Glazunov, decidiu pegar em algumas das peças musicais de Chopin, transcreveu-as para orquestra e fez delas um bailado, a que deu o nome de Les Sylphides. A coreografia do bailado ficou a cargo de Michel Fokine, também russo.

Ao contrário de muitos outros bailados, Les Sylphides não conta qualquer história. É um bailado sem enredo, que vale pela bela música de Chopin, pelos movimentos harmoniosos da coreografia de Fokine e pela graciosidade dos bailarinos. Les Sylphides é um dos exemplos mais perfeitos do chamado ballet clássico.

29 setembro 2025

Porque no mundo mengou a verdade

Porque no mundo mengou a verdade,
punhei um dia de a ir buscar,
e, u por ela fui [a] preguntar,
disserom todos: — Alhur la buscade,
ca de tal guisa se foi a perder
que nom podemos en novas haver,
nem já nom anda na irmaindade.

Nos moesteiros dos frades negrados
a demandei, e disserom-m'assi:
Nom busquedes vós a verdad'aqui,
ca muitos anos havemos passados
que nom morou nosco, per bõa fé,
[nem sabemos u ela agora x'é,]
e d'al havemos maiores coidados.

E em Cistel, u verdade soía
sempre morar, disserom-me que nom
morava i havia gram sazom,
nem frade d'i já a nom conhocia,
nem o abade outrossi, no estar,
sol nom queria que foss'i pousar,
e anda já fora d[a] abadia.

Em Santiago, seend'albergado
em mia pousada, chegarom romeus.
Preguntei-os e disserom: — Par Deus,
muito levade'lo caminh'errado!
Ca, se verdade quiserdes achar,
outro caminho convém a buscar,
ca nom sabem aqui dela mandado.

Airas Nunes, trovador galego do séc. XIII

NOTA
[nem sabemos u ela agora x'é,] — verso que falta nos manuscritos que chegaram até aos nossos dias, reconstituído pelo prof. Rodrigues Lapa


GLOSSÁRIO
mengou — minguou
punhei — esforcei-me
u — onde
alhur — alhures, noutro lugar
ca — pois
guisa — maneira
en novas — notícias sobre esse assunto
frades negrados — frades vestidos de negro, da ordem beneditina
nosco — connosco
al — outras coisas
Cistel — Cister (ordem religiosa)
soía — era frequente
i — aí
gram sazom — muito tempo
sol nom — nem mesmo
romeus — romeiros
ca nom sabem aqui dela mandado — porque aqui nada sabem dela



O mundo mengou a verdade, sirventês (género poético medieval) do trovador galego Airas Nunes (séc. XIII), musicado por Xosé Quintas-Canella e interpretado pelo agrupamento DOA, da Galiza