04 novembro 2025

Apolo e Dafne


Apolo e Dafne, escultura de mármore em tamanho natural, executada entre 1622 e 1625 pelo escultor napolitano Gian Lorenzo Bernini (1598–1680). Galeria Borghese, Roma, Itália
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Apolo e Dafne é o nome de uma notável escultura barroca de Bernini, que representa uma cena da mitologia greco‑romana, que o poeta romano Ovídio contou no seu livro "Metamorfoses".

O deus do Amor, Cupido, desentendeu-se com o deus Apolo (também chamado Febo pelos romanos), por causa da soberba deste. Querendo castigar Apolo, Cupido atingiu-o com uma seta de ponta dourada e, em consequência, Apolo ficou loucamente apaixonado pela bela ninfa Dafne. Porém, Cupido atirou também em Dafne, mas desta vez atingiu-a com uma seta com ponta de chumbo, o que a levou a rejeitar todo o amor, viesse de quem viesse.

Ardendo de paixão, Apolo perseguiu Dafne, que fugia dele, mas Apolo foi mais rápido e conseguiu alcançá-la. Dafne implorou então ao seu pai, que era o rio Peneu, que a salvasse dos ímpetos de Apolo. Peneu anuiu e logo Dafne se metamorfoseou num loureiro. Apolo abraçou-a, mas já só sentiu o coração de Dafne bater dentro do tronco de uma árvore.

Em homenagem à sua perdida ninfa, Apolo colocou na cabeça uma coroa feita com ramos do loureiro em que ela se tinha transformado e instituiu o uso de uma coroa semelhante para glorificar as personagens ilustres: uma coroa de louros.

Nesta escultura de Bernini, das mãos de Dafne já começam a nascer ramos e folhas de louro, os seus pés vão-se convertendo em raízes e o seu corpo começa a ser revestido por uma casca de árvore.

Os versos de Ovídio que narram este episódio mitológico são os seguintes:

Dafne peneia foi primeiro amor de Febo,
nascido não do azar, mas da ira de Cupido.
Délio, soberbo após ter vencido a serpente,
vira-o dobrar o arco com a corda tensa:
“Moço lascivo, por que portas armas fortes?”
– disse – “isto convém aos meus ombros, pois posso,
certeiro, ferir feras, como um inimigo,
e com muitas flechadas matei Píton hórrida,
cujo ventre pestífero um monte ocupava.
Contenta-te em, com teu facho, excitar não sei
que amores, nem queiras tomar os meus louvores.”
Diz o filho de Vénus: “O teu arco, Febo,
tudo atinge, e a ti eu; como os animais valem
menos que um deus, tua glória é menor que a minha”.
Disse e, fendendo o ar com as céleres asas,
pousou na umbrosa fortaleza do Parnaso
e da aljava tirou dois dardos de diverso
efeito; um afugenta, o outro atrai amor.
Este é dourado e brilha na ponta afiada;
aquele, obtuso, sob o cano contém chumbo.
Com este alveja a ninfa peneia, com outro
atravessa a medula e os ossos de Apolo.
Este ama súbito; do amante aquela foge,
se alegrando em caçar feras nas profundezas
das selvas; ela, émula da casta Febe;
uma fita envolvia os cabelos revoltos.
Muitos a cortejavam; ela os repelia,
buscando os bosques ínvios, livre de marido,
indiferente a Himeneu, a Amor, e a núpcias.
Seu pai sempre dizia: “A mim deves, ó filha,
genro; a mim deves netos, filha”, repetia.
Ela, odiando, qual crime, as tochas do esposo,
inunda o belo rosto de casto rubor,
e prende os tenros braços ao colo do pai:
“Como Diana, pai caríssimo, permite-me
fruir de virgindade perpétua”, pediu.
Ele, então, assentiu; mas o que queres ser
à beleza repugna e teu corpo repele.
Febo ama e ao ver Dafne deseja unir-se
a ela; e o seu próprio oráculo o ilude.
Tal como a leve palha que arde sem a espiga,
ou a sebe queimada por tocha que acaso
alguém aproximou ou lá deixou de dia,
assim se inflama o deus, assim em todo o peito
ardendo-se e nutrindo um estéril amor.
Vendo os cabelos dela revoltos, nos ombros,
diz: “que tal penteá-los?” Vê os olhos dela
brilhantes como astros, e os lábios que ver
não é bastante; louva-lhe os dedos, as mãos,
os braços e antebraços nus pela metade;
melhor julgando o que se oculta. Mais ligeira
que a brisa, ela foge daquele que a chama:
“Ó filha de Peneu, pára, não sou hostil;
ninfa, pára. Assim, ovelha foge ao lobo,
corça ao leão, à águia trepidantes pombas,
cada qual ao rival; por amor te persigo.
Ai de mim, se caíres e espinhos ferirem-te
as pernas e eu te cause imerecidas dores.
Áspero é por onde vais; mais devagar
corre, não fujas, devagar eu mesmo irei.
Pergunte a quem te apraz; eu não habito em montes,
não sou pastor, não sou um rude guardador
de rebanhos e reses. Não sabes de quem
foges, por isso, insana, foges. Sou senhor
de Delfos e de Claros, de Tenedo e Pátara.
Júpiter é meu pai; o futuro, o passado
e o presente desvelo. Ajusto o verso às cordas.
Certeira é minha flecha, mas uma mais certa
encheu meu peito ainda vago de feridas.
Medicina inventei, chamam-me salutar
em todo o orbe e tenho poder sobre as ervas.
Ai de mim, o amor não se cura com as ervas,
e estas artes a todos úteis não me valem”.
Mais diria, se a filha de Peneu, fugindo,
não lhe cortasse a fala, em louca correria,
assim mesmo admirou-a; um vento contrário
expunha-lhe a nudez, agitando-lhe as vestes,
e a brisa para trás impele os seus cabelos;
mais bela é fugindo. Mas o jovem deus
renuncia à ternura e, tomado de amor,
segue as pegadas dela, com passos ligeiros.
Qual galgo que uma lebre em campo aberto avista,
com patas quer prendê-la e ela se safar;
ele, a ponto de alçá-la, espera tê-la em breve,
e com focinho alerta a fareja de perto;
ela temendo-se apresada, escapa aos dentes
dele e àquela boca que se lhe escancara;
tal a esperança impele o deus, e o medo a virgem.
Mas o perseguidor, com as asas do Amor,
é mais esperto e não se cansa e acossa as costas
da fugitiva e assopra-lhe o cabelo e a nuca.
Ela, esgotada pelo esforço, empalidece,
com o labor da fuga e implora a Peneu:
“Se os rios tem poder divino, pai, socorre-me!
[Ó Terra, traga ou fere o que me traz feridas,]
muda minha aparência, aprazível demais!”
Mal finda a prece, invade-lhe um torpor os membros,
seus seios tenros são por fina casca envoltos,
dos cachos crescem folhas e ramos dos braços;
pés tão velozes fixam-se em lentas raízes,
em seu rosto coberto, um brilho apenas resta.
Entanto, Febo segue amando; e pondo a destra
no tronco, sente o peito tremer sob a casca
e, os ramos abraçando, qual membros, recobre-o
de beijos; mas o tronco se esquiva aos seus beijos.
Diz-lhe o deus: “Já que não podes ser minha esposa,
serás a minha árvore; sempre a terei
nos cabelos, na cítara e aljava, ó loureiro;
entre os chefes do Lácio ouvirás os alegres
cantos e as triunfais pompas no Capitólio.
Serás fiel guardiã do palácio de Augusto,
e às portas estarás protegendo o carvalho;
como jamais corto os meus cachos juvenis,
com perpétua folhagem, serás sempre honrada”.
Peã calou-se; e, inclinando a copa,
feito fronte, o loureiro, com seus ramos, anuiu.

Ovídio (43 A.C ‑ 17 D.C.), Metamorfoses, Livro I. Tradução do latim para português de Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho

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