29 janeiro 2020

Batalha no 6.º Tom


Batalha no 6.º Tom, de António Correia Braga (m. 1704), por Anna Karpenko, no órgão da Grande Igreja de Santiago, na cidade de Haia, Holanda

"Batalha" é o nome de um género musical surgido em Portugal e Espanha, que se tornou popular nos sécs. XVII e XVIII. Embora nem todas as batalhas tenham sido compostas para órgão, o que é facto é que a maior parte delas o foi, procurando tirar partido das características próprias do órgão ibérico. Neste tipo de órgão, tubos horizontais providos de palhetas emitem um som estridente e vibrante, como o de trombetas incitando uns supostos guerreiros a combater numa imaginária batalha. Na gravação que acima se pode escutar, porém, o órgão utilizado não parece possuir este conjunto de tubos. Ainda assim, esta interpretação parece-me digna de ser ouvida.

Como sucede com muitos outros compositores portugueses de música antiga, muito pouco se sabe sobre o autor desta batalha. Sabe-se apenas que António Correia Braga estava ativo na cidade de Braga em 1695, ano em que terá composto esta obra, e morreu em 1704. A Batalha no 6.º Tom, aliás, é a única composição de sua autoria que chegou até aos nossos dias.

25 janeiro 2020

Uma descendente de portugueses no Sri Lanka


Entrevista com Rachel Outschoorn, uma burgher de Batticaloa, na costa oriental do Sri Lanka

19 janeiro 2020

Esta é a Cidade

Esta é a Cidade, e é bela.
Pela ocular da janela
foco o sémen da rua.
Um formigueiro se agita,
se esgueira, freme, crepita,
ziguezagueia e flutua.

Freme como a sede bebe
numa avidez de garganta,
como um cavalo se espanta
ou como um ventre concebe.

Treme e freme, freme e treme,
friorento voo de libélula
sobre o charco imundo e estreme.
Barco de incógnito leme
cada homem, cada célula.
É como um tecido orgânico
que não seca nem coagula,
que a si mesmo se estimula
e vai, num medido pânico.

Aperfeiçoo a focagem.
Olho imagem por imagem
numa comoção crescente.
Enchem-se-me os olhos de água.
Tanto sonho! Tanta mágoa!
Tanta coisa! Tanta gente!
São automóveis, lambretas,
motos, vespas, bicicletas,
carros, carrinhos, carretas,
e gente, sempre mais gente,
gente, gente, gente, gente,
num tumulto permanente
que não cansa nem descansa,
um rio que no mar se lança
em caudalosa corrente.

Tanto sonho! Tanta esperança!
Tanta mágoa! Tanta gente!

António Gedeão (1906–1997)


Rua de Santa Catarina, Porto (Foto: Gunawan Widjaja)

13 janeiro 2020

Variações em lá


Variações em lá, de António Chainho, por António Chainho em guitarra portuguesa e dois acompanhantes não identificados

07 janeiro 2020

A fortaleza de Juromenha


Vista aérea da fortaleza de Juromenha, concelho de Alandroal (Foto: Duarte Fernandes Pinto)

Há ruínas e ruínas. Há ruínas antigas, cheias de dignidade, que atraem multidões de turistas, e há ruínas velhas, que são a própria imagem da decadência e do abandono e pelas quais ninguém se interessa. A fortaleza de Juromenha pertence a esta segunda categoria. Ela é a verdadeira representação viva do abandono a que tem sido votado o interior de Portugal Continental em geral e o interior do Alentejo em particular.

Juromenha, que D. Afonso Henriques conquistara aos mouros em 1166, juntamente com Moura e Serpa, desempenhou ao longo dos séculos um importantíssimo papel na defesa do território português, contra os mouros, primeiro, e contra os espanhóis, depois. A sua origem perde-se na noite dos tempos, sendo a sua fundação atribuída a galo-celtas, adoradores de Endovélico e outros deuses locais. Passou pelas mãos de romanos, de mouros, de portugueses, outra vez pela de mouros e pela de portugueses mais uma vez.


Vista do interior da fortaleza de Juromenha (Foto: Maria Ana BS)

A fortaleza, tal como existe agora em Juromenha, foi edificada no séc. XVII, por ocasião da Guerra da Restauração, no local onde antes tinha existido uma fortificação mourisca, primeiro, e um castelo medieval, depois, mandado erguer pelo rei D. Dinis. Em 1659, uma terrível explosão de um paiol de pólvora causou a morte de cerca de cem pessoas.

A seguir, a fortaleza de Juromenha voltou a mudar de mãos, tendo sido ocupada pela Espanha em 1662, durante a Guerra da Restauração, passado para o domínio português em 1668, voltado a ser conquistada pelos espanhóis durante a chamada "Guerra das Laranjas", em 1801, e regressado à soberania portuguesa em 1808. Por fim, a evolução da tecnologia militar acabou por torná-la irrelevante e ditou o seu abandono definitivo em 1920.


O interior da igreja matriz de Juromenha encontra-se neste miserável estado (Foto: António Neves)

O que agora se vê na fortaleza de Juromenha é confrangedor. Tudo o que havia para roubar, já foi roubado. Tudo o que havia para vandalizar, já foi vandalizado. O que resta, vai caindo aos bocados por efeito da passagem do tempo. Em 2018, ruiu uma das torres da fortaleza. A igreja matriz, então, é um exemplo particularmente eloquente da decadência de Juromenha. Por que se espera para transformar estas ruínas velhas e desprezadas numas ruínas antigas e dignificadas? A região é lindíssima, o rio Guadiana é convidativo e o Alentejo precisa de gente nova como de pão para a boca.


O rio Guadiana espreguiça-se aos pés da fortaleza de Juromenha (Foto de autor desconhecido)

01 janeiro 2020

Canção Primeira

Em cada poema estou como quem viaja
não eu apenas mas a própria viagem
geografia onde respiro
e poiso os pés e tenho
uma raiz e um nome.
Em cada poema estou mas não sozinho.
Antes de mim a língua e os que primeiro
cantaram a longa história do poema.
Ó cidades: velhas cidades
subterrâneas colunas do meu canto
algures em mim as vossas ruínas gravam
uma estranha sintaxe intraduzível.
Fenícios Árabes Cartagineses
Celtas Romanos Visigodos
quantos povos em mim
quantas vezes dentre vós um houve
que sozinho cantou à tarde
habitado de ventos e crepúsculos? Quantas vezes
uma harpa se ergueu nas mãos de um jovem
e os dedos dos amantes
transformaram em música o suco de seus corpos?
Ó cidades velhas cidades
com vossas glórias e misérias
com vosso luxo e vossas fomes
quantas vezes um homem não terá cantado
sua perdida liberdade?
E aquele que cantou aos pés da amada
um canto de canelas e pimentas
e aqueles que partiram e morreram
e com rústicas mãos foram achar
as terras que depois eram dos reis.

Tão longe tão longe a carne do poema.
Quem pôs na minha boca este sabor a mar
quem pôs nas minhas mãos estes cavalos bárbaros
quem foi que semeou dentro de mim
um navio com sete mares para navegar?

Um cavaleiro passa em seu cavalo árabe.
Há uma mulher despindo-se. Quem prova
as amêndoas secretas do seu corpo?
Condenaram à morte o chefe dos rebeldes.
Passa um povo vencido acorrentado e trágico.
Vitorioso o rei regressa à frente dos exércitos
e há fome e peste nas aldeias arrasadas.
Algures na noite um homem canta.
Algures no tempo entre os cativos canta um homem.
Toda a estranha sintaxe dos lamentos
em línguas mortas já de gente aniquilada
cidades destruídas campos devastados
uma mulher violada pelas chamas
o canto dos guerreiros entre fogo e sangue
o canto dos vencidos entre silêncio e lágrimas.

Quem habitou estas ruínas
quem já passou por estes campos e estas terras
quem já cantou onde hoje canto?
Passa um povo vencido acorrentado e trágico
vitorioso o rei regressa à frente dos exércitos
algures no tempo um homem canta.
Algures na noite um homem canta ainda.

Fenícios Árabes Cartagineses
Celtas Romanos Visigodos
ó cidades já perdidas
quem pôs nas minhas mãos este sinal?

Tão longe tão longe a carne do poema.
E aqui estou desfolhado. Digo:
eu sou a minha história na história do poema.
E as línguas já passadas estão na língua renovada
são o ritmo do ritmo do meu canto
quando uma voz familiar e colectiva
dá uma voz à minha voz e de novo se junta
àquele dos cativos que não cessa o seu cantar.

Vai minha canção vai como um navio
sete mares são pequenos
para o rumo que tu levas.

E vós cavalos bárbaros das mãos
algures na noite um homem canta ainda
algures um povo passa acorrentado e trágico
e vós cavalos bárbaros levai-me.
Sobre as colinas desta terra voltada para o mar
plantai o meu poema.

Ali quero ficar
completamente nu e desfolhado
por todas as cidades destruídas
e por todos os povos arrasados
pelo passado pelo presente pelo futuro
ali quero cantar aos que passarem
uma canção que fale de quem somos:
das nossas casas e dos nossos violinos.
Do nosso pão e nossas rosas.
Da nossa vida e morte. Uma canção onde cantemos
transitórios eternos morrendo passando
ficando ainda
nos demorados violinos da canção tão breve.

Vai minha canção vai como um navio
sete mares são pequenos
para o rumo que tu levas.
Em qualquer parte alguém te espera.

Fenício árabe cartaginês
celta romano visigodo
tenho mil pátrias e uma pátria
e a minha pátria és tu canção.
Aqui habito sem fronteiras e sem raças
e tenho as mãos abertas para todos
aqui posso falar em todas as línguas do mundo
porque nenhuma é estrangeira.

Vai minha canção como um navio vai e leva-me
verso a verso desfolha-me
no coração de cada homem.

Manuel Alegre, in Praça da Canção