Esta é a Cidade
Esta é a Cidade, e é bela.
Pela ocular da janela
foco o sémen da rua.
Um formigueiro se agita,
se esgueira, freme, crepita,
ziguezagueia e flutua.
Freme como a sede bebe
numa avidez de garganta,
como um cavalo se espanta
ou como um ventre concebe.
Treme e freme, freme e treme,
friorento voo de libélula
sobre o charco imundo e estreme.
Barco de incógnito leme
cada homem, cada célula.
É como um tecido orgânico
que não seca nem coagula,
que a si mesmo se estimula
e vai, num medido pânico.
Aperfeiçoo a focagem.
Olho imagem por imagem
numa comoção crescente.
Enchem-se-me os olhos de água.
Tanto sonho! Tanta mágoa!
Tanta coisa! Tanta gente!
São automóveis, lambretas,
motos, vespas, bicicletas,
carros, carrinhos, carretas,
e gente, sempre mais gente,
gente, gente, gente, gente,
num tumulto permanente
que não cansa nem descansa,
um rio que no mar se lança
em caudalosa corrente.
Tanto sonho! Tanta esperança!
Tanta mágoa! Tanta gente!
António Gedeão (1906–1997)
Rua de Santa Catarina, Porto (Foto: Gunawan Widjaja)
Comentários: 3
A Rua de Santa Catarina é maravilhosa. Já há muito que não vou ao Porto e tenho algumas saudades dessa baixa portista e de ir ao Majestic comer uma torrada e um galão bem quentinho !!!
De António Gedeão o melhor. É mais um dos Grandes Poetas Portugueses !
Amigo Ricardo Santos,
É evidente que a cidade glosada neste poema por António Gedeão é Lisboa. Ele era de Lisboa, vivia em Lisboa e quando escreveu as palavras «esta cidade», era a Lisboa que se referia. Mas a verdade é que ele não nomeou a cidade e o poema pode ser aplicado a qualquer cidade do mundo. Por isso, resolvi ilustrá-lo com uma fotografia da mais emblemática rua de comércio tradicional desta cidade do Porto, que é a Rua de Santa Catarina.
Eu podia ter escolhido uma foto da lindíssima Rua das Flores (a do Porto), mas não o fiz porque a Rua das Flores foi, na minha opinião pessoal, invadida em excesso pelo turismo. O pouco comércio tradicional que ainda existia na Rua das Flores foi varrido pela vaga turística, como foi o caso de um conceituadíssimo alfarrabista que nesta rua existia e que teve que fechar as portas para dar lugar a um bar ou a um restaurante qualquer. Assim, não.
Eu confesso que nunca fui cliente habitual do Café Majestic. É muito raro lá entrar. Mas reconheço que é um maravilhoso estabelecimento evocativo da Belle Époque, onde apetece ficar a conversar com os amigos enquanto se bebe um aromático café.
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