28 março 2010

Alexandre Herculano nasceu há 200 anos


«Fraco, pequeno, e pobre na origem, Portugal teve de lutar desde o berço com a sua fraqueza original. Apertado entre o vulto gigante da nação de que se desmembrara e as solidões do mar, o instinto da vida política o ensinou a constituir-se fortemente. Quando se lançam os olhos para uma carta da Europa e se vê esta estreita faixa de terra lançada ao ocidente da Península e se considera que aí habita uma nação independente há sete séculos, necessariamente ocorre a curiosidade de indagar o segredo dessa existência improvável. A anatomia e fisiologia deste corpo, que aparentemente débil resistiu assim à morte e à dissolução, deve ter sido admirável.

Que é feito das repúblicas da Itália tão brilhantes e poderosas durante a Idade Média? Onde existem Génova, Pisa, Veneza? Na História: unicamente na História. É lá onde somente vivem o império Germânico e o do Oriente, a Escócia, a Noruega, a Hungria, a Polónia, e na nossa própria Hespanha a Navarra e o Aragão. Fundidas noutros estados mais poderosos ou retalhadas pelas conveniências politicas, estas nacionalidades exteriormente fortes e enérgicas dissolveram-se e anularam-se, e Portugal, nascido apenas quando essas sociedades já eram robustas, vive ainda, posto que em velhice aborrida e decrépita. Há nisto sem dúvida, se não um mistério, ao menos um fenómeno aparentemente inexplicável.

Estará a razão da nossa individualidade tenaz na configuração física do solo? Somos nós como os suíços um povo montanhês? Separam-nos serranias intransitáveis do resto da Península? Nada disso. As nossas fronteiras indicam-nas comummente no meio de planícies alguns marcos de pedra, ou designam-nas alguns rios só no inverno invadiáveis. Quem impediu a Espanha, esse enorme colosso, de devorar-nos?

Poder-se-á dizer que desde o século XVII é a rivalidade das grandes nações da Europa que nos tem salvado. Talvez. Mas antes disso era por certo uma força interior que nos alimentava, e que ainda atuou em nós no meio da decadência a que chegámos no século XVI, decadência que virtualmente nos veio a sujeitar ao domínio castelhano.

Mas durante esse mesmo domínio o instinto da vida política, o aferro à individualidade, existia se não nas classes elevadas ao menos entre a plebe, porque a plebe é a última que perde as tradições antigas, e o amor da sua aldeia e do seu campanário.

A luta do vulgacho -- exclusivamente do vulgacho -- a favor de D. António prior do Crato contra a corrupção de tudo quanto havia nobre e rico em Portugal, e contra o poder de Filipe II, é um reflexo pálido e impotente da época de D. João I; mas é um facto de grande significação histórica. Completam-no as diligências feitas nas cortes de Tomar para que a linguagem oficial do país se não trocasse pela dos conquistadores. Este facto comparado com essoutro obriga a meditar.

Filipe II foi um grande homem -- astuto, ativo, dotado de um caráter férreo; foi o representante mais notável da unidade política absoluta, e não pôde ou não soube delir e incorporar este pequeno povo na vasta sociedade espanhola, sobre a qual seu pai e ele haviam passado uma terrível rasoira que lhe destruíra todas as asperezas e desigualdades. E todavia Filipe II tinha geralmente por aliados entre os vencidos os homens mais eminentes por ilustração, por linhagem, por faculdades pecuniárias.

É que as multidões obscuras eram ainda portuguesas no âmago, posto que corrompidas no exterior pela corrupção das classes privilegiadas. Todas as outras explicações são insuficientes ou falsas.»

Alexandre Herculano, in Cogitações soltas de um homem obscuro, Opúsculos VI: Controvérsias e Estudos Históricos, Tomo IV

20 março 2010

A Primavera está de volta


(Foto de autor desconhecido)


QUANDO TORNAR A VIR A PRIMAVERA

Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma cousa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

17 março 2010

A rabeca chuleira


(Foto: At-Tambur)


Encontrei no Youtube um vídeo, que o etnomusicólogo corso Michel Giacometti fez para a RTP em 1970, que é uma preciosidade etnográfica. Apresso-me a partilhá-lo.




Pode ler-se uma descrição deste instrumento popular português nesta página.

15 março 2010

«E como era a vida nas matas?»


Mata da região do Uíge, norte de Angola (Desenho de Neves e Sousa encontrado em f.g.amorim)


«Ora naquele ano de sessenta-e-um, março, fez a morte grande messe de vidas. Era uma colheita prometida muito tempo já, de uma sementeira de séculos. Por isso que só as flores dos cafezeiros permaneceram brancas, todo o verde das matas do Norte s'anoiteceu de sangue. Tinha mortos pelos caminhos, picadas e estradas. E sem itinerário. Pendurados das árvores ou semeados pelos capins, pasto dos pássaros; em casas-grandes, terreiros e varandas; nos currais do gado, nos celeiros dos grãos, nas lavras de mandioca; metidos nas águas das cacimbas, nas hortas e jindombes; como troncos, nas tongas. Brancos; mulatos; negros -- colonos e assimilados e gentios; altos, baixos, esquartejados e inteiros. Todos, porém, mortos matados. Cabeças espetadas em paus, rota de formigas. Queimados. Crianças, nascidas e nascituras; velhos, cabobos já; e raparigas virgens, mulheres de risos soltos antes, agora de tranças e carapinhas zumbidas de moscas.

Nesse ano, teve a terra demasiado morto a estremecer as raízes das árvores debaixo do sol; tanto que até a chuva ficou presa nas nuvens, medo de cair. Mas nunca as matas d'Entre-Zaire-e-Kwanza foram tão povoadas. Se esvaziaram aldeias e sanzalas, quimbos, vilas até. Circular, só circulavam fardas, milícias e medo. Opevedeceás e refugiados, êxodos em pânico, sem imbambas nem bicuatas, sorte era de ainda levar a vida no bolso.»

(José Luandino Vieira, in O Livro dos Guerrilheiros, Caminho, Lisboa, 2009, págs. 83-84)


«(...) transcrição de uma entrevista áudio a C. Sebastião Kakinda, feita em 1967 (...)

-- E como era a vida nas matas?

-- Atacávamos os tugas, os tugas nos atacavam. É só miséria, a guerra. Primeiro incendiaram as sanzalas, de avião. Depois a fome, tivemos de abandonar lavras e sanzalas. Até mesmo jingamba e isadi e jingondo comemos. Palmito, sementes de café, papaia verde. Então a orientação foi de fazer as lavras na própria mata, jinguba, batata-doce, milho. E os tugas vieram com seus milongos, de avião, tudo secava. Muita fome.

-- Estavam organizados?

-- No princípio, não. Nada. Depois com os camaradas que fugiram no exército português começámos. Cada sanzala, seu responsável político, militar. Kesu, Tendarialozo, outras. E tinha responsável militar, treinava, o camarada Poderoso, de Mukiama...

-- Reuniões políticas também?

-- Era obrigatório. Delegados de todas as sanzalas. Fazíamos comité de acção...

-- Escolas?

-- Sempre. Nas matas tem sempre escola. Cartilhas, professores. Recebem galinha no povo, pagamento. Mesmo exame tem.

-- E igreja, pastores?

-- Sempre tínhamos pastores. E cultos, em todos os lugares.

-- Tinham contactos com a UPA/FNLA?

-- No princípio. Eles, depois, massacravam, punham controles nos vaus, controlavam, roubavam. Se é para roubar as armas matavam mesmo. No Fuesse, mais de vinte camaradas no comando do camarada Tomás...

-- Há muitas doenças?

-- Todas. Anemia e paludismo, diarreia de sangue, febres, chagas, reumatismo. As crianças morrem à toa.»

(in O Livro dos Guerrilheiros, de José Luandino Vieira, Caminho, Lisboa, 2009, págs. 21-22)



Um pequeno grupo de civis acabados de sair da mata (Foto: Fernando Vouga)


Como Luandino escreveu, no início da guerra colonial, em 1961, a população de uma vasta área do noroeste de Angola abandonou as localidades onde residia e refugiou-se nas matas, para fugir à medonha repressão feita pelas Forças Armadas Portuguesas, em resposta aos hediondos massacres realizados pela UPA em 15 de Março, numa espiral de violência louca e cega. A população fugiu para o interior das densíssimas florestas que cobrem vastas áreas da região, onde passou a dar o seu apoio aos movimentos independentistas angolanos, isto é, à UPA (que deu lugar à FNLA) ou ao MPLA, consoante as zonas em que tinha buscado refúgio.

No caso concreto das zonas controladas pela UPA/FNLA, que foram as que conheci melhor no cumprimento do meu serviço militar, a população estabeleceu-se no interior das matas, em acampamentos constituídos por palhotas, e aí procurou, tanto quanto possível, reconstituir as suas comunidades. A população de cada localidade estabeleceu-se num acampamento próprio, separado dos das outras localidades, reatando aí os seus laços de vizinhança e de convivência, sob a autoridade do seu próprio soba, regedor ou dembo (ou do seu sucessor, no caso de aquele ter morrido nos morticínios), e dando ao acampamento o nome da sanzala ou vila de origem, porque a comunidade era a mesma, apesar de passar a viver num lugar físico diferente.

Os acampamentos eram constituídos por palhotas bastante precárias e mais pequenas do que as cubatas normais. Não se justificavam cubatas melhores do que aquelas construções rudimentares, porque elas eram temporárias. As pessoas viam-se constrangidas a mudar o local do acampamento de tempos a tempos, para não serem localizadas pela tropa portuguesa e eventualmente atacadas.

Curiosamente ou talvez não, apesar de também terem de mudar de local com frequência, as bases guerrilheiras da FNLA (ou melhor, do seu braço armado, o ELNA, Exército de Libertação Nacional de Angola) tinham um aspeto consideravelmente melhor do que os acampamentos da população civil. Apesar de também ficarem no interior das matas, as bases da guerrilha eram espaços surpreendentemente airosos, tinham cubatas bem construídas, eram muito limpas e arranjadas e até possuíam canteiros, embora estes tivessem poucas flores porque, estando debaixo das copas das árvores, nunca apanhavam sol.

Os primeiros tempos de vida da população nas matas devem ter sido de muita fome, dado que as pessoas se viram obrigadas a deixar as suas lavras para trás e tiveram que arrotear novas lavras, conquistando terreno à floresta virgem. Até que as novas lavras começassem a produzir, as dificuldades devem ter sido terríveis.

As lavras eram por vezes objeto de destruição por parte das Forças Armadas Portuguesas, que assim tentavam obrigar o povo, acicatado pela fome, a entregar-se às autoridades coloniais. O lançamento de desfolhantes químicos pelos aviões da Força Aérea, com a finalidade de destruir as lavras (facto que é referido pelo guerrilheiro citado por Luandino Vieira), não era frequente, mas aconteceu.

Uma lavra destruída por desfolhantes era um espetáculo mesmo muito feio de se ver. Era como se um qualquer cataclismo à escala cósmica tivesse feito desaparecer a cor verde do Universo. Para onde quer que se olhasse, não se via absolutamente nada que tivesse a cor verde. Nem a mais pequena erva, nem o mais insignificante musgo, nada. O emaranhado dos ramos nus das mandioqueiras lembrava que aquela terra, propositadamente tornada estéril, já alimentara vidas humanas. Os ramos mortos das árvores erguiam-se para o alto, como se clamassem contra a maldição que lhes tinha caído do céu.

(Continuar a ler aqui)
A forma de destruição de lavras que era, de longe, mais frequentemente usada pela tropa portuguesa consistia no emprego de grupos de trabalhadores forçados (chamados bailundos -- por na sua maioria serem da região do Bailundo --, contratados ou monangambas) que, munidos de catanas, cortavam as culturas, enquanto tropas do Exército montavam guarda. Esta era uma ação que repugnava a muitos militares portugueses e também angolanos, uns e outros a cumprir o serviço militar obrigatório. Uma coisa era enfrentar combatentes armados, de homem para homem, outra coisa era causar propositadamente a fome à população civil, no seio da qual havia muitas crianças, idosos, mulheres e doentes. Houve unidades do Exército que sempre se esquivaram a este tipo de ação, incorrendo no risco de serem punidas por não cumprirem as ordens recebidas.

Nas suas deslocações entre um acampamento e uma lavra ou entre um acampamento e outro, era possível que algum civil encontrasse no caminho, de repente, militares das Forças Armadas Portuguesas em operações. O desfecho deste inesperado encontro variava muito, consoante o comportamento que a tropa tivesse. Havia militares que deixavam que a pessoa escapasse sem reagirem, logo que tivessem verificado que ela não estava armada. Outros militares procuravam mesmo assim capturá-la e levá-la para o quartel, para que lhes fornecesse informações. Outros ainda, desprovidos de escrúpulos, disparavam a matar sobre ela e somavam mais um terrorista abatido à sua lista de baixas causadas ao inimigo.

Não era só durante as suas deslocações pelos caminhos do mato que os civis corriam risco de vida. Os próprios acampamentos podiam ser atacados por forças terrestres ou podiam ser bombardeados pela aviação portuguesa. Os bombardeamentos aéreos, por estranho que possa parecer, não eram muito temidos pela população. Primeiro, porque nas proximidades dos acampamentos existiam abrigos, naturais (grutas e furnas) ou feitos pela mão do homem. Segundo, porque os acampamentos estavam situados no interior de matas, abrigados debaixo de árvores altíssimas, muitas delas com dezenas e dezenas de metros de altura, em cuja copa as bombas rebentavam, em vez de virem rebentar junto ao chão, onde poderiam fazer muito mais estragos e vítimas. Terceiro, porque os bombardeamentos costumavam realizar-se sempre nos mesmos dias do mês, com a regularidade de um relógio. Quando se aproximava o dia em que os aviões da Força Aérea viriam lançar as suas bombas, as pessoas punham-se a salvo, regressando quando os aviões se fossem embora. Os pilotos da Força Aérea Portuguesa lançavam as bombas um pouco às cegas, isto é, lançavam-nas sobre uma determinada mata, sem saberem ao certo o que é que havia por baixo daquela massa compacta de árvores que tinham diante dos seus olhos. Podia haver uma base da guerrilha, podia haver um acampamento civil, como podia haver apenas selva.

As tropas terrestres em operações também podiam enganar-se e fazer um golpe de mão a um acampamento civil, em vez de o fazerem a uma base guerrilheira. As bases e os acampamentos estavam habitualmente próximos uns dos outros, mudavam de lugar de tempos a tempos e, por isso, os militares podiam estar enganados quanto à natureza do alvo que atacavam. Podiam, nomeadamente, não conseguir interpretar corretamente as marcas e os indícios que encontravam ao longo da sua progressão e acabar por atacar um acampamento civil, pensando que o faziam a uma base da guerrilha. Em todas as guerras há erros trágicos e a guerra colonial não foi exceção, infelizmente.

Também se pode afirmar que em todas as guerras há crimes contra a humanidade e que a guerra colonial também não foi exceção. Desgraçadamente não foi. Quando um acampamento civil era propositadamente atacado por grupos de combate das Forças Armadas, pelos Flechas (força paramilitar da PIDE/DGS, constituída, sobretudo, por antigos guerrilheiros), pela OPVDCA (Organização Provincial de Voluntários para a Defesa Civil de Angola, uma força paramilitar constituída por colonos), pelos TEs (Tropas Especiais, constituídas sobretudo por ex-guerrilheiros da UPA/FNLA) ou por outra força mais ou menos irregular que eventualmente atuasse pelo lado colonial, os civis que fossem mortos no ataque eram habitualmente contabilizados como guerrilheiros abatidos. Nenhuma destas forças, de resto, se atrevia a reconhecer que tinha atacado um acampamento civil. O que constava nos seus relatórios de operações era que o ataque tinha sido feito a uma base do inimigo, isto é, da guerrilha.

Ora atacar uma verdadeira base da guerrilha implicava correr sérios riscos, porque os guerrilheiros estavam armados, sabiam defender-se e as bases tinham uma estrutura de defesa montada para a eventualidade de um ataque. Era muito menos perigoso lançar um ataque a um acampamento civil, onde no máximo só havia meia-dúzia de guerrilheiros a proteger a população, como acontecia nas áreas da FNLA, ou onde só havia uma pequena milícia de autodefesa mal municiada, como era sobretudo o caso nas áreas do MPLA. Assim, houve forças militares e paramilitares que cometeram a cobardia de atacarem deliberadamente acampamentos civis, em lugar de o fazerem a bases guerrilheiras. Destes ataques resultaram por vezes verdadeiros massacres entre a população. É muito importante que se diga, porém, que a grande maioria das unidades das Forças Armadas Portuguesas nunca agiu deste modo. Nunca. De algumas forças paramilitares já não será possível dizer o mesmo.




Soldados portugueses na região dos Dembos, norte de Angola (Foto encontrada na Wikipedia)


Mesmo que a produção das lavras cultivadas no meio das matas eventualmente chegasse para alimentar a população, outros tipos de alimentos, tais como carne, eram manifestamente insuficientes. Embora nas matas houvesse bastante caça, sobretudo javalis e gazelas (na floresta tropical húmida não costuma haver animais de grande porte, que habitam preferencialmente a savana), a prática da caça era relativamente limitada, por causa da guerra e dos seus perigos. Quase nunca se usavam armas de fogo para caçar, porque os tiros poderiam chamar a atenção de alguma força militar que pudesse estar nas proximidades. O que se usava era armadilhas de caça, que eram silenciosas e eficazes.

As matas também não eram espaços apropriados para se fazer criação de animais. Nos acampamentos havia umas quantas galinhas e pouco mais. Resultava daqui que a população tinha uma alimentação muito desequilibrada, com graves deficiências de proteínas. Este sério desequilíbrio alimentar era eloquentemente revelado pelas barrigas dilatadas das crianças.

Além das deficiências alimentares e da sua nefasta influência sobre as defesas naturais do organismo, a maior parte das pessoas que viviam nas matas sofria de parasitoses intestinais. Há em Angola parasitoses muito graves, que podem colocar em sério risco a vida do seu hospedeiro. Este risco aumenta ainda mais quando o hospedeiro tem as suas defesas naturais enfraquecidas, em resultado de outras doenças ou da subnutrição. Assim, à lista de doenças referida pelo guerrilheiro que Luandino Vieira cita no seu livro, há que acrescentar as parasitoses intestinais e também doenças infecciosas como a tuberculose, a cólera e o sarampo.

O sarampo, que em Portugal não passava de um mero incómodo, porque só obrigava a criança doente a ficar de cama por uns dias, ao fim dos quais voltava a ficar sã como um pero, era quase inevitavelmente fatal para uma criança cujas defesas já estavam debilitadas. Nas matas do norte de Angola, uma epidemia de sarampo significava a morte pura e simples de uma geração quase inteira de crianças. Eram muito poucas as que conseguiam sobreviver a esta doença.

Nas matas não havia médicos. A população recorria à medicina tradicional ou então a algum enfermeiro, se houvesse. Sim, havia enfermeiros do lado da guerrilha, mas pouquíssimos para as necessidades. Numa guerra, os enfermeiros são imprescindíveis para acudir aos feridos, que inevitavelmente existem, muitos dos quais com séria gravidade. Mas ao contrário do lado português, em que os feridos, depois de terem recebido os primeiros socorros prestados de imediato por um enfermeiro, acabavam por ser evacuados por helicóptero para um hospital, onde eram tratados em boas condições, no lado da guerrilha eles não podiam ser evacuados para onde quer que fosse. Só um enfermeiro no local é que poderia fazer algo por eles e nada mais. No caso de o ferimento ser grave, a morte acabava inevitavelmente por acontecer. Como facilmente se compreende, a deserção de um enfermeiro para o campo colonial representava um profundíssimo golpe para quem continuava nas matas.

A vida nas matas era, como se vê, extremamente dura e precária. A morte rondava em todo o lado e a todo o momento. A guerra era uma realidade que parecia que nunca mais iria acabar. A fome, as doenças, a dor, o luto, enfim, toda a espécie de sofrimento ensombravam permanentemente a vida do povo. Diante de tantos perigos e de tantas ameaças, as pessoas sentiam a urgente necessidade de se agarrar a uma tábua de salvação, que lhes desse alguma esperança, por mais ilusória que fosse. Esta tábua de salvação era a religião.

Nunca me constou que existissem pastores protestantes na 1ª Região Político-Militar do MPLA. Melhor dizendo: o que me constou foi que não os havia. Mas admito que sim, que houvesse. Como se sabe, o MPLA perfilhava a ideologia marxista e, como tal, não apoiava nenhuma igreja ou religião. Mas o movimento não poderia dar-se ao luxo de ignorar -- e muito menos de hostilizar -- a religião, sob pena de perder o apoio popular.

Quanto à FNLA, esta sim, apoiava oficialmente uma igreja protestante, mais precisamente uma igreja metodista cuja designação completa era Igreja Católica Apostólica Evangélica Angolana. Esta igreja tinha pastores espalhados pelas zonas controladas pelo movimento, onde prestavam assistência religiosa à população. Como complemento à assistência que prestavam, os pastores vendiam livrinhos de cânticos e orações, que estavam escritos no idioma local, quicongo ou quimbundo consoante a região. Como nas matas não havia dinheiro em circulação, os livrinhos eram vendidos em troca de outros bens, como galinhas ou produtos das lavras.

Os livrinhos de cânticos e orações eram muito mal impressos e feitos num papel de péssima qualidade. É evidente que eles teriam que ser assim, para saírem tão baratos quanto possível, a fim de poderem chegar às mãos de pessoas que viviam no mais estrito limiar da sobrevivência. E a verdade é que as pessoas não se poupavam a sacrifícios para adquirirem um. Por muito fraca que fosse a impressão dos livrinhos e por muito ordinário que fosse o papel, as gentes que viviam nas matas queriam-lhes mais do que se eles fossem impressos em letras de ouro sobre folhas do mais fino pergaminho. Por nada deste mundo aceitavam desembaraçar-se deles. Preferiam morrer de fome. Os livrinhos de cânticos e orações eram, de muito longe, os bens mais preciosos que aquele povo tinha.

Tal como nas áreas controladas pelo MPLA, também nas áreas sob o controle da FNLA havia escolas e professores. Mas ao contrário do MPLA, que publicava uma cartilha para ser usada nas escolas, a FNLA não publicava nada. Assim, para poderem aprender a ler e escrever, os alunos das escolas da FNLA viam-se obrigados a usar o tal livrinho de cânticos e orações, porque não havia mais nenhum. Era com base no livrinho que eles aprendiam. Faziam-no, portanto, na sua língua materna: quicongo se fossem bacongos ou quimbundo se fossem ambundos.

E quanto à língua portuguesa, como era? Quase todas as pessoas que viviam nas matas falavam um português bastante rudimentar. Mas tinham uma forte vontade de conhecer melhor a língua, quanto mais não fosse para poderem entender o que era dito nas emissões de rádio da FNLA e para poderem ler o que estava escrito nos panfletos, impressos em português, que eram lançados pelos aviões da Força Aérea.

Os panfletos que a Força Aérea lançava eram, com efeito, apanhados com avidez pela população civil, não obstante as ameaças feitas pelos comandantes da FNLA de que castigariam quem quer que fosse encontrado na posse de um deles. O teor dos panfletos realçava as dificuldades que o povo sentia nas matas, «vivendo como bichos», e incitava-o a apresentar-se nas chamadas sanzalas da paz (aldeamentos controlados pelas autoridades coloniais), onde não lhe faltaria comida, tratamento médico, roupa, água, escolas, etc. Nos panfletos, os guerrilheiros eram habitualmente chamados bandidos e os seus líderes descritos como corruptos e insensíveis ao sofrimento do povo. «Enquanto Holden Roberto vive como um rei no estrangeiro, o povo morre de fome na mata», diziam alguns panfletos.

O efeito que os panfletos tinham sobre as populações era pouco menos do que nulo. Fosse porque as pessoas tinham medo de ser mortas pelos brancos se aparecessem diante de uma sanzala ou de um quartel, fosse porque permaneciam convencidas de que a razão estava do lado dos guerrilheiros, fosse por outro motivo qualquer, a verdade é que eram muito poucas as pessoas que saíam da mata e se apresentavam às autoridades portuguesas só por terem lido os panfletos.

Uma coisa, pelo menos, era certa: os panfletos eram mesmo lidos e compreendidos pela população. As pessoas procuravam ansiosamente apanhá-los e não descansavam enquanto não conseguissem decifrar o seu conteúdo. A avidez com que o faziam devia-se em boa parte ao desejo que sentiam de praticar a leitura de textos em língua portuguesa. Esta afirmação talvez possa parecer um tanto estranha, relativamente a gentes que viviam no sertão africano, mas a verdade é que as populações do norte de Angola -- e não só -- sentiam uma grande vontade de aprender coisas novas e de conhecer melhor o mundo. Esta curiosidade intelectual era um facto, ela existia mesmo. A leitura, a escrita e o domínio da língua portuguesa contavam-se entre as habilitações que as pessoas procuravam aperfeiçoar. Ora os panfletos lançados dos aviões permitiam-lhes praticar a leitura e o português ao mesmo tempo. Por isso os procuravam apanhar e ler, para exasperação dos comandantes da guerrilha.



Panfleto incitando a população refugiada nas matas a apresentar-se às autoridades portuguesas (Foto: 1º Cabo Louro)


A FNLA tinha um programa diário de rádio, chamado Voz de Angola Livre, o qual era transmitido a partir de Kinshasa e irradiado pelos emissores de ondas médias e curtas da estação oficial da República do Zaire, atual República Democrática do Congo. Este programa era emitido a partir das 19 horas e tinha a duração de trinta minutos, tal e qual como acontecia com o programa do MPLA, chamado Voz de Angola Combatente, que era transmitido a partir de Brazzaville através dos emissores da rádio oficial da República Popular do Congo, atual República do Congo. Ambos os programas conseguiam ouvir-se dentro de Angola em excelentes condições, com toda a clareza e sem interferências.

Em cada acampamento controlado pela FNLA, em princípio, existia um receptor de rádio a pilhas, o qual só era ligado para captar as emissões do movimento. Todos os habitantes do acampamento eram obrigados a ouvir estas emissões, reunidos em volta do aparelho. As emissões eram faladas em português e também em quicongo e quimbundo. Além de proclamarem os êxitos militares do movimento, reais ou supostos, as emissões incluíam bastantes mensagens em código dirigidas ao interior do território. No que à política diz respeito, eram frequentemente enaltecidas as virtudes da economia de mercado e da propriedade privada. Era através destas emissões que a FNLA, que não tinha comissários políticos, fazia a doutrinação da população que lhe era afeta.

Um outro aspeto da vida nas matas que aqui ainda poderia ser abordado seria a administração da justiça. No entanto, não sei até que ponto é que a justiça competia às autoridades tradicionais e até que ponto é que ela era administrada pelos comandantes da FNLA. O que sei é que, no que aos comandantes do movimento dizia respeito, a forma de aplicação da justiça variava muito de um comandante para outro. Enquanto havia comandantes que eram temidos e até odiados, porque eram extremamente severos, ordenando a aplicação de castigos físicos violentos pelas razões mais insignificantes, outros comandantes eram muito mais comedidos nas sentenças que ditavam. No caso destes últimos, uma condenação que era considerada bastante grave consistia em ordenar que o réu ficasse amarrado a uma árvore durante uma semana. Como nas matas não havia prisões, a única forma de prender uma pessoa era amarrá-la a uma árvore.

Enfim, a vida da população de uma região em guerra, qualquer que ela seja, é uma vida extremamente dura e sofrida. Tentar sobreviver no meio dos tiros e das bombas, da fome e das doenças, do ódio e do desprezo pela vida humana, exige um força de vontade sobre-humana. O povo de Angola sofreu demasiado na sua carne e no seu espírito o efeito de várias décadas de guerra. Merece agora, mais do que qualquer outro povo do mundo, a paz e a liberdade, pelas quais tanto sangue foi derramado.



Sinais de paz. No centro desta imagem de satélite extraída do Google Maps está assinalada uma povoação, que no início da guerra colonial tinha sido abandonada pelos seus habitantes. A localidade passara a ser um mero ponto numa picada, completamente vazio de gente, invadido pela selva e propício a emboscadas. Agora, terminado o ciclo das guerras, com o fim da guerra civil, a povoação renasceu exatamente no mesmo sítio onde tinha existido anteriormente. À direita está assinalada uma sanzala mais pequena, que também tinha deixado de existir no princípio da guerra colonial.



GLOSSÁRIO

Ambundos -- grupo etnolinguístico dos falantes da língua quimbundo

Bacongos -- grupo etnolinguístico dos falantes da língua quicongo

Bailundo -- natural da região do Bailundo, no Planalto Central de Angola

Bicuatas -- pertences; trastes

Cabobos -- aqueles que não têm dentes

Cubata -- construção tradicional, habitualmente de madeira e barro e coberta de capim seco

Dembo -- chefe tradicional supremo, equivalente a rei

DGS -- Direção Geral de Segurança, designação da polícia política durante o consulado de Marcelo Caetano

FNLA -- Frente Nacional de Libertação de Angola

Imbambas -- coisas; pertences; trastes; bagagens

Jindombes -- canteiros; alfobres

Jinguba -- amendoim

Lavra -- plantação de mandioca, milho, batata-doce, feijão, etc.

MPLA -- Movimento Popular de Libertação de Angola

Milongos -- medicamentos; mezinhas; remédios

Monangamba -- trabalhador forçado

Opevedeceás -- membros da OPVDCA, uma força paramilitar composta por colonos

PIDE -- Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a polícia política da ditadura de Salazar

Quicongo -- língua do antigo reino do Congo, em Angola falada nas províncias do Zaire, Uíge e Cabinda

Quimbundo -- língua falada nas províncias de Luanda, Bengo, Kwanza Norte e em parte das províncias de Malange e Kwanza Sul

Regedor - chefe tradicional de estatuto superior a soba

Sanzala -- aldeia constituída por cubatas

Soba -- chefe tradicional

Tongas -- zonas demarcadas nas fazendas, para desbravar; plantações de café

UPA -- União dos Povos de Angola



13 março 2010

O São Pedro de Grão Vasco e o São Pedro de... Grão Vasco?


São Pedro, de Vasco Fernandes (Grão Vasco), Museu Grão Vasco, Viseu




São Pedro, de Gaspar Vaz ou Vasco Fernandes (Grão Vasco), Mosteiro de São João de Tarouca, Tarouca


As duas excelentes telas quinhentistas da Escola de Viseu que acima se reproduzem representam São Pedro como primeiro papa, sentado num trono e abençoando os fiéis.

Relativamente ao quadro de cima, não parece haver dúvidas quanto à sua autoria. Ele é de Vasco Fernandes, que foi talvez o maior pintor português do Renascimento e que, por isso mesmo, foi cognominado Grão Vasco.

Quanto ao quadro de baixo, não existem certezas sobre quem terá sido o seu autor. Há quem diga que foi Gaspar Vaz e há quem diga que foi também Grão Vasco.

10 março 2010

Calou-se a voz de Alda do Espírito Santo



Onde estão os homens caçados neste vento de loucura

O sangue caindo em gotas na terra
homens morrendo no mato
e o sangue caindo, caindo...
Fernão Dias para sempre na história
da Ilha Verde, rubra de sangue,
dos homens tombados
na arena imensa do cais.
Ai o cais, o sangue, os homens,
os grilhões, os golpes das pancadas
a soarem, a soarem, a soarem
caindo no silêncio das vidas tombadas
dos gritos, dos uivos de dor
dos homens que não são homens,
na mão dos verdugos sem nome.
Zé Mulato, na história do cais
baleando homens no silêncio
do tombar dos corpos.
Ai, Zé Mulato, Zé Mulato.
As vítimas clamam vingança
O mar, o mar de Fernão Dias
engolindo vidas humanas
está rubro de sangue.
- Nós estamos de pé -
nossos olhos se viram para ti.
Nossas vidas enterradas
nos campos da morte,
os homens do cinco de Fevereiro
os homens caídos na estufa da morte
clamando piedade
gritando pela vida,
mortos sem ar e sem água
levantam-se todos
da vala comum
e de pé no coro de justiça
clamam vingança...
Os corpos tombados no mato,
as casas, as casas dos homens
destruídas na voragem
do fogo incendiário,
as vias queimadas,
erguem o coro insólito de justiça
clamando vingança.
E vós todos carrascos
e vós todos algozes
sentados nos bancos dos réus:
-- Que fizestes do meu povo?...
-- Que respondeis?
-- Onde está o meu povo?...
E eu respondo no silêncio
das vozes erguidas
clamando justiça...
Um a um, todos em fila...
Para vós, carrascos,
o perdão não tem nome.
A justiça vai soar,
E o sangue das vidas caídas
nos matos da morte
ensopando a terra
num silêncio de arrepios
vai fecundar a terra,
clamando justiça.
É a chamada da humanidade
cantando a esperança
num mundo sem peias
onde a liberdade
é a pátria dos homens...

Alda do Espírito Santo (1926-2010), poetisa de São Tomé e Príncipe

NOTA: Este poema refere-se ao massacre de Batepá, ocorrido em 3 de Fevereiro de 1953, na sequência da recusa, por parte dos santomenses, em aceitarem a imposição de trabalhos forçados nas roças de São Tomé. No massacre terão sido mortas mais de 500 pessoas.

07 março 2010

O dr. Sousa Martins


O momumento ao dr. Sousa Martins, no Campo dos Mártires da Pátria, Lisboa (Foto: Dias dos Reis)


Quando entrardes de noite num hospital e ouvirdes algum doente gemer, aproximai-vos do seu leito, vede o que precisa o pobre enfermo e, se não tiverdes mais nada para lhe dar, dai-lhe um sorriso. -- Dr. Sousa Martins

Entre as personagens do romance "As Pupilas do Senhor Reitor", de Júlio Dinis, conta-se a do médico de aldeia João Semana. Personagem bondosa e caritativa, incapaz de cobrar uma consulta a um pobre, João Semana é o exemplo que habitualmente se dá de um clínico que faz da Medicina uma espécie de sacerdócio.

Quem se deveria citar como exemplo de médico esforçado, dedicado e compassivo, não deveria ser a figura de João Semana, que foi apenas uma personagem de romance criada pela imaginação de um escritor, mas sim alguém de carne e osso com estas mesmas características: o dr. Sousa Martins, de seu nome completo José Tomás de Sousa Martins, nascido em Alhandra, no concelho de Vila Franca de Xira, em 1843 e falecido, também em Alhandra, em 1897.

Médico competentíssimo, cientista de elevadíssima craveira e professor catedrático dos mais notáveis que houve na Medicina portuguesa, o dr. Sousa Martins tinha todas as condições para se julgar um ser superior ao comum dos mortais, petulante, fechado no alto da sua torre de marfim, orgulhoso da sua imensa sabedoria e indiferente ao sofrimento dos pobres e necessitados.

No entanto, ele foi precisamente o contrário disso tudo. Foi um “eminente homem que radiou amor, encanto, esperança, alegria e generosidade. Foi amigo, carinhoso e dedicado dos pobres e dos poetas. A sua mão guiou. O seu coração perdoou. A sua boca ensinou. Honrou a Medicina portuguesa e todos os que nele procuraram cura para os seus males”, segundo o que sobre ele escreveu Guerra Junqueiro.

A atividade científica do dr. Sousa Martins incidiu sobre diversos campos de investigação, com realce, sobretudo, para o estudo da tuberculose, o que lhe viria a ser fatal. Defendeu a construção de sanatórios, nomeadamente na Serra da Estrela, razão pela qual o primeiro sanatório construído nas Penhas da Saúde foi batizado com o seu nome. Por esta mesma razão, o hospital da cidade da Guarda também se chama Sousa Martins.

O facto de ter lidado muito de perto com a tuberculose levou a que ele acabasse por contrair também a doença e falecer dela. O povo de Lisboa, Alhandra e regiões envolventes, inconformado com a sua morte, deu então início a um culto em torno da sua pessoa, fazendo-lhe múltiplos pedidos para que, do mundo do Além, ele continue a curar os doentes e a consolar os sofredores. Mesmo agora, mais de cem anos depois de ter morrido, o povo continua a implorar-lhe graças e milagres, apesar de a Igreja não apoiar este culto. Mas não importa; o culto existe na mesma, embora a religião não esteja envolvida nele. É um culto relacionado com o espiritismo.

Em homenagem ao dr. Sousa Martins, foi erguido no Campo dos Mártires da Pátria (vulgo Campo de Santana), em Lisboa, um monumento situado em frente da antiga Escola Médico-Cirúrugica onde ele deu as suas aulas, atual Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Da autoria de Costa Mota, este monumento representa o dr. Sousa Martins de pé e vestido com uma beca de catedrático, sobre um pedestal na base do qual uma figura feminina simboliza a Juventude escutando as palavras do Mestre. Junto a este monumento, o povo anónimo tem vindo a acumular uma quantidade imensa de placas de mármore, gravadas com agradecimentos ao dr. Sousa Martins pelas muitas graças e milagres que ele alegadamente terá feito. Um dado curioso e talvez único em Portugal é a ausência de símbolos religiosos nestas placas.



Repare-se na ausência de símbolos religiosos. Placas de mármore depositadas pela gente do povo junto do monumento ao dr. Sousa Martins, em Lisboa. (Foto: Abruxo)


No cemitério de Alhandra, que fica junto da igreja matriz da vila, o túmulo onde o dr. Sousa Martins está sepultado é alvo de idêntico culto. Alvo de idêntico culto é também o Museu Dr. Sousa Martins, igualmente em Alhandra, que fica mesmo em frente ao Rio Tejo. O livro de visitas deste museu é particularmente curioso. A par das habituais impressões escritas pelos visitantes que são idênticas às do livro de visitas de qualquer outro museu («Gostei muito», «É um museu muito interessante», etc.), podem ler-se emocionados agradecimentos ao dr. Sousa Martins por mais curas milagrosas. Um livro assim, mais nenhum museu tem!

Nestes tempos em que o egoísmo desmedido e a ambição sem escrúpulos são erigidos em qualidades pelos neoliberais, o dr. Sousa Martins é um exemplo a apontar.


O Museu Dr. Sousa Martins, em Alhandra (Foto: Câmara Municipal de Vila Franca de Xira)

01 março 2010

Chopin, 200 anos


No dia 1 de Março de 1810, viu a luz do dia na Polónia um menino a quem puseram o nome de Fryderyk Franciszek Szopen. Este menino viria a ficar na História como um dos pianistas e compositores mais brilhantes e mais representativos de todo o período romântico, com o nome adaptado para o francês de Frédéric François Chopin.

Hoje, 200 anos depois do seu nascimento, recordo esta efeméride partilhando a escuta de uma das suas mais belas composições: o Nocturno nº 20 em dó sustenido menor, opus póstumo, numa sublime interpretação de Maria João Pires.