28 março 2010

Alexandre Herculano nasceu há 200 anos


«Fraco, pequeno, e pobre na origem, Portugal teve de lutar desde o berço com a sua fraqueza original. Apertado entre o vulto gigante da nação de que se desmembrara e as solidões do mar, o instinto da vida política o ensinou a constituir-se fortemente. Quando se lançam os olhos para uma carta da Europa e se vê esta estreita faixa de terra lançada ao ocidente da Península e se considera que aí habita uma nação independente há sete séculos, necessariamente ocorre a curiosidade de indagar o segredo dessa existência improvável. A anatomia e fisiologia deste corpo, que aparentemente débil resistiu assim à morte e à dissolução, deve ter sido admirável.

Que é feito das repúblicas da Itália tão brilhantes e poderosas durante a Idade Média? Onde existem Génova, Pisa, Veneza? Na História: unicamente na História. É lá onde somente vivem o império Germânico e o do Oriente, a Escócia, a Noruega, a Hungria, a Polónia, e na nossa própria Hespanha a Navarra e o Aragão. Fundidas noutros estados mais poderosos ou retalhadas pelas conveniências politicas, estas nacionalidades exteriormente fortes e enérgicas dissolveram-se e anularam-se, e Portugal, nascido apenas quando essas sociedades já eram robustas, vive ainda, posto que em velhice aborrida e decrépita. Há nisto sem dúvida, se não um mistério, ao menos um fenómeno aparentemente inexplicável.

Estará a razão da nossa individualidade tenaz na configuração física do solo? Somos nós como os suíços um povo montanhês? Separam-nos serranias intransitáveis do resto da Península? Nada disso. As nossas fronteiras indicam-nas comummente no meio de planícies alguns marcos de pedra, ou designam-nas alguns rios só no inverno invadiáveis. Quem impediu a Espanha, esse enorme colosso, de devorar-nos?

Poder-se-á dizer que desde o século XVII é a rivalidade das grandes nações da Europa que nos tem salvado. Talvez. Mas antes disso era por certo uma força interior que nos alimentava, e que ainda atuou em nós no meio da decadência a que chegámos no século XVI, decadência que virtualmente nos veio a sujeitar ao domínio castelhano.

Mas durante esse mesmo domínio o instinto da vida política, o aferro à individualidade, existia se não nas classes elevadas ao menos entre a plebe, porque a plebe é a última que perde as tradições antigas, e o amor da sua aldeia e do seu campanário.

A luta do vulgacho -- exclusivamente do vulgacho -- a favor de D. António prior do Crato contra a corrupção de tudo quanto havia nobre e rico em Portugal, e contra o poder de Filipe II, é um reflexo pálido e impotente da época de D. João I; mas é um facto de grande significação histórica. Completam-no as diligências feitas nas cortes de Tomar para que a linguagem oficial do país se não trocasse pela dos conquistadores. Este facto comparado com essoutro obriga a meditar.

Filipe II foi um grande homem -- astuto, ativo, dotado de um caráter férreo; foi o representante mais notável da unidade política absoluta, e não pôde ou não soube delir e incorporar este pequeno povo na vasta sociedade espanhola, sobre a qual seu pai e ele haviam passado uma terrível rasoira que lhe destruíra todas as asperezas e desigualdades. E todavia Filipe II tinha geralmente por aliados entre os vencidos os homens mais eminentes por ilustração, por linhagem, por faculdades pecuniárias.

É que as multidões obscuras eram ainda portuguesas no âmago, posto que corrompidas no exterior pela corrupção das classes privilegiadas. Todas as outras explicações são insuficientes ou falsas.»

Alexandre Herculano, in Cogitações soltas de um homem obscuro, Opúsculos VI: Controvérsias e Estudos Históricos, Tomo IV

Comentários: 0

Enviar um comentário