26 maio 2020

Carlos Botelho


Barcos no Rio, de Carlos Botelho (1899–1982), c. 1930, óleo sobre cartão, Galerias Diogo de Macedo, Casa-Museu Teixeira Lopes, Vila Nova de Gaia, Portugal

"O Pintor de Lisboa", assim chamaram a Carlos Botelho, que em Lisboa nasceu, em Lisboa morreu e a Lisboa dedicou uma parte muito significativa da sua obra pictórica. Não se pode falar de Carlos Botelho sem evocar a sua paixão por Lisboa, e não se pode falar de Lisboa sem lembrar que Carlos Botelho foi um dos seus mais dedicados pintores.

Carlos António Teixeira Basto Nunes Botelho, de seu nome completo, foi um um pintor, cartunista, decorador e ilustrador ligado ao Movimento Modernista, que exerceu a sua ação ao longo de uma grande parte do séc. XX. Fez muita banda desenhada na sua juventude, mas foi só aos 30 anos de idade que ingressou na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, para desistir um ano depois, desiludido com o academismo dominante naquele estabelecimento de ensino. Carlos Botelho foi, portanto, essencialmente um autodidata, que muito aprendeu durante as suas vivências no estrangeiro, nomeadamente em França e nos Estados Unidos. O facto de ter tido um atelier na Costa do Castelo deve ter desempenhado um papel determinante na sua paixão pela paisagem urbana de Lisboa e pela sua incomparável atmosfera, que evocou em pinturas inesquecíveis.


Doca do Peixe, de Carlos Botelho (1899–1982), 1933, óleo sobre cartão, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal


Lisboa e O Tejo; Domingo, de Carlos Botelho (1899–1982), 1935, óleo sobre tela, Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa, Portugal


Ramalhete de Lisboa, de Carlos Botelho (1899–1982), 1935, óleo sobre tela, Museu de Lisboa, Lisboa, Portugal


Pintura, de Carlos Botelho (1899–1982), 1936, óleo sobre madeira, Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa, Portugal

22 maio 2020

Tucunaré Lopez


O fotógrafo angolano Tucunaré Lopez na província do Namibe, entre Mucubais (Foto de autor desconhecido)

Tucunaré Lopez é um fotógrafo angolano, nascido e residente em Luanda. Confesso que não sei se ele se chama mesmo Tucunaré Lopez ou se este nome é um pseudónimo. Acho muito estranho que alguém nado e criado em Angola ostente o nome de um peixe do Amazonas, o tucunaré.

É certo que Angola e o Brasil têm uma relação histórica de cinco séculos, fruto de um odioso tráfico esclavagista, que levou milhões de seres humanos agrilhoados de África para as Américas. Para um brasileiro, Angola não é um país qualquer, assim como para um angolano, o Brasil não é um país qualquer. Mesmo que o samba não tivesse sido levado de Luanda para a Baía, ou que a capoeira (essa arte marcial que é ao mesmo tempo uma dança) não tenha regressado do Brasil a Angola, ambos os países têm um passado comum extremamente doloroso que não se pode apagar. Angola está presente no Brasil e o Brasil está presente em Angola. Não é por acaso que os angolanos chamam onça ao leopardo e jacaré ao crocodilo. Por que não há de um homem chamar-se Tucunaré?



(Foto: Tucunaré Lopez)


(Foto: Tucunaré Lopez)


(Foto: Tucunaré Lopez)


(Foto: Tucunaré Lopez)


(Foto: Tucunaré Lopez)


(Foto: Tucunaré Lopez)


(Foto: Tucunaré Lopez)


(Foto: Tucunaré Lopez)

17 maio 2020

Sinfonia N.º 4 de Joly Braga Santos


Sinfonia N.º 4 em Mi Menor, op. 16, de Joly Braga Santos (1924–1988), dedicada à Juventude Musical Portuguesa. Versão Coral, com um poema de Vasconcelos Sobral (1930–2016). A interpretação está a cargo da Orquestra Sinfónica da Rádio Romena e do Coro George Enescu, dirigidos por Silva Pereira

12 maio 2020

Abandonados


O primeiro oficial de operações e informações que o nosso batalhão teve, como responsável pelo planeamento das operações que realizávamos, foi o capitão de Infantaria António Jacques Favre Castel-Branco Ferreira, mais conhecido por capitão Castelo Branco.

Eu não "morria de amores" por ele, pois o capitão Castelo Branco tinha uma mentalidade típica dos oficiais de carreira, com a qual eu não me identificava de maneira nenhuma. Os gostos e os interesses dele (assim como os do comandante e os do major) eram completamente diferentes dos meus. Eu diria mesmo que eram opostos. A única coisa que eu tinha em comum com ele era a condição militar, que no meu caso era temporária.

Apesar de não me identificar minimamente com o capitão Castelo Branco, a verdade é que eu tinha imenso respeito por ele, porque ele tinha comido o pão que o diabo amassou na sua anterior comissão, onde comandou uma companhia (a C. Caç. 2316, do B. Caç. 2835) num dos piores buracos que houve em toda a guerra da Guiné: Guileje! O facto de ele ter passado noites e noites seguidas metido nos abrigos de Guileje, sofrendo repetidos e sistemáticos ataques do PAIGC, que causavam mortos e feridos entre os elementos da sua companhia, deixou-o psicologicamente afetadíssimo.

A segunda comissão militar do capitão Castelo Branco, que ocorreu connosco em Zemba, só agravou o seu estado. Ao fim de menos de um ano de comissão, teve que ser evacuado para Lisboa e internado no Serviço de Psiquiatria do Hospital Militar Principal como maníaco-depressivo, sendo substituído nas suas funções pelo capitão Reis.

Na sua qualidade de oficial de operações e informações do batalhão, o capitão Castelo Branco tinha uma obsessão. Cismava com a chamada central do Dange, que era uma base da UPA/FNLA, das mais importantes que havia em Angola, a qual tinha existido na Zona de Ação da companhia de Cambamba, mas que tinha sido destruída pelos Comandos no âmbito de uma operação que teve lugar alguns meses antes do início da nossa comissão. Dizia o Castelo Branco (e devia ser verdade) que, depois da dita operação, a central do Dange foi reconstruída pela FNLA muitos quilómetros mais para norte, perto de São José do Encoje ou mesmo de Nova Caipemba. Ora São José do Encoje e Nova Caipemba não tinham nada a ver com o nosso batalhão. Não eram da nossa conta. Eram da responsabilidade do batalhão de Quitexe, vizinho e "irmão gémeo" do nosso. Este batalhão de Quitexe era o B. Caç. 3879, com as companhias 3532, 3533 e 3534.

Muito embora a central do Dange já não dissesse respeito ao nosso batalhão, a verdade é que o capitão Castelo Branco vivia obcecado com ela e não falava noutra coisa senão na central do Dange e também em São José do Encoje e Nova Caipemba. Falava, voltava a falar e continuava sempre a martelar no mesmo assunto. O Castelo Branco vivia tão obcecado com a central do Dange, que morria se ninguém fosse pelo menos ao local onde ela tinha existido, para confirmar que ela tinha sido mesmo destruída. Era por demais evidente que tinha, pois todos os informadores o diziam, e na verdade nunca mais se voltaram a registar quaisquer incidentes em toda a área onde ela tinha estado implantada. Mesmo assim, o Castelo Branco não descansou enquanto não planeou uma operação, com o único propósito de se ir ao local exato da destruída central, para confirmar o que já se sabia.

Embora a antiga central do Dange ficasse na Zona de Ação de Cambamba, foram enviados ao local dois grupos de combate de Zemba e só de Zemba, sem a participação de qualquer tropa de Cambamba, porque esta tinha tido recentemente uma atividade operacional muito intensa. O comandante da operação fui eu. A operação foi facílima. Foi a operação menos arriscada de todas as que realizei com o meu grupo de combate e foi também a segunda menos cansativa, porque o terreno era plano e as matas pouco densas, bem diferentes das incríveis florestas virgens de Zemba.


Cambamba, com o seu característico Inselberg ao fundo (Foto: José Monteiro)

Em Cambamba, antes da partida para a operação propriamente dita, falei com o guia que nos iria conduzir ao local, a fim de acertar pormenores. O guia estranhou o facto de nós querermos ir à antiga central do Dange.

— Não está lá ninguém — disse-me o guia. — O quartel foi destruído. Não vamos lá fazer nada.

— Não faz mal — disse-lhe eu. — O comando do batalhão quer que nós vamos lá, e nós vamos.

— Está bem, pronto, não há problema. Se querem ir, eu levo-os lá, — concordou o guia — mas não está lá ninguém.

Eu pensei: «Isto vai ser canja; vai ser uma operação sem história; não vai acontecer nada digno de nota». Mas estava enganado. Ocorreram algumas peripécias durante essa operação, que fizeram com que ela ficasse gravada na minha memória até hoje.

Depois de termos sido largados num ponto de uma picada que acabava no meio do mato, mas que no passado devia ter ligado Cambamba a Zalala ou à Fazenda Liberato, fomos direitinhos, sem desvio nenhum, à antiga central do Dange, tal como o Castelo Branco queria. Lá chegados, vimos que, de facto, a base estava destruída e não havia sinais da presença de gente naquelas paragens, certamente desde o próprio dia da destruição. A vegetação começava a tomar conta do lugar, com o capim e outras plantas a crescer por entre os restos carbonizados das cubatas.

A base tinha sido bastante grande, mas o que mais me chamou a atenção foi o facto de ela estar pessimamente localizada, sem defesas naturais de qualquer espécie. O terreno era completamente plano e a mata, no interior da qual ela tinha estado implantada, era muito pouco densa. Mesmo muito pouco densa. Não faltavam ali à volta matas mais densas do que aquela. Ainda hoje estou para perceber porque foi que a FNLA fez um quartel tão importante num sítio tão mau, tão pouco defensável.

«E pronto, a operação está feita», pensei eu. «Agora vamos só dar umas voltas por aí, para gastar tempo até chegar o dia do nosso regresso ao quartel».

Começamos a nomadizar pela região e, por onde quer que andássemos, não encontrávamos quaisquer vestígios de presença humana recente. Era perfeitamente claro que a FNLA tinha abandonado completamente toda a área. Isto mesmo comuniquei por rádio para Zemba.

Não havia presença humana na área, mas havia presença animal… Ao sairmos do interior de uma mata para uma clareira, encontramos, no meio desta e a menos de 50 metros de nós, um elefante! Que grande susto que apanhamos! Contávamos com tudo, menos com um bicharoco daquele tamanhão ali mesmo à nossa frente. Preparámo-nos para atirar sobre ele, no caso de ele nos atacar. Se o fizesse, ficaria mais furado do que uma peneira… Mas não o fez. Ignorou-nos olimpicamente e seguiu o seu caminho, como se nós não existíssemos sequer. Enfim, do alto das suas não sei quantas toneladas de peso, tratou-nos como se fôssemos uns seres desprezíveis, que nem sequer mereciam um mínimo de atenção da parte dele…

A entrada do elefante na floresta foi uma coisa digna de se ver. Ele abriu um enorme rombo na mata, arrancando árvores com a tromba com uma facilidade espantosa. Mesmo depois de deixarmos de o ver, quando já ia dentro da floresta, continuávamos a ver ramos a voar pelos ares, acima das copas das árvores, que eram bastante pequenas. Tudo acompanhado pelo barulho correspondente, claro. Um espetáculo!

Tive então uma ideia: e se nós fôssemos atrás do elefante, aproveitando o rombo que ele tinha acabado de abrir na floresta, para avançarmos mais depressa? Assim fizemos. Metemo-nos pelo rombo, desviando-nos, evidentemente, das montanhas de merda que ele ia deixando pelo caminho… Aquilo era praticamente uma "auto-estrada", de tão larga que era. Mas não pudemos utilizá-la por muito tempo, porque o elefante começou a fazer uma curva e, a dada altura, já estávamos a voltar para trás. Com muita pena minha, tivemos que abandonar a "auto-estrada" e abrir caminho à força de catana, de novo para diante.

À medida que avançamos, começamos a ver no chão pegadas frescas de pessoas. Estávamos a entrar numa área habitada, mas só por populações civis, pois as marcas eram todas de pés descalços. Os guerrilheiros costumavam usar botas e marcas de botas era coisa que nós não víamos.

De repente, sem que nada me fizesse prever, o meu pessoal começou a correr desenfreadamente numa determinada direção. Espantado com que estava a acontecer, corri também o mais que pude, no sentido de tomar conhecimento do que se estava a passar e assumir o controlo da situação. Pensei que, o que quer que estivesse a acontecer, aquela corrida era de certeza coisa do furriel Macedo, que ia à frente da coluna com o guia. Eu ia um pouco mais atrás, em quinto ou sexto lugar, como sempre fazia. O Macedo devia ter combinado qualquer coisa com o guia e decidiu pô-la em prática sem me consultar, a mim, que era o comandante da operação e estava tão perto dele. Fiquei extremamente chateado. Logo que houvesse uma oportunidade, o Macedo ia ouvir-me das boas! Ia, ia! Aquilo não podia ficar assim! O Macedo não ia esperar pela demora!

A correria tinha como destino um acampamento. Mal entrava no acampamento, o meu pessoal espalhava-se pelo mesmo, sem receber ordens minhas ou de quem quer que fosse. O acampamento foi rapidamente ocupado sem se disparar um tiro. Pela minha parte, sem pensar no que estava a fazer, dirigi-me imediatamente à primeira cubata que me apareceu. Abri subitamente a porta da cubata e parei à entrada, com a arma apontada lá para dentro. Ouvi uma voz de homem muito aflita, dizendo-me em português:

— Não atire, não atire, por favor! Por amor de Deus, não atire! Eu saio já, eu saio! Mas por favor não atire. POR FAVOR!

Como o interior da cubata estava escuro e o homem que falava era negro, eu não conseguia vê-lo, pois vinha do exterior ofuscado pelo sol. Por isso mantive a arma apontada, ainda que não tivesse a mais pequena intenção de atirar. À medida que os meus olhos se foram habituando à penumbra da cubata, comecei a ver um vulto com os braços no ar à minha frente. Levantei imediatamente a arma para o alto. O homem baixou os braços e começou a tentar vestir uns calções. Mas estava tão assustado que não conseguia acertar com as pernas nos calções. Demorou muito tempo a enfiá-los, ao mesmo tempo que ia dizendo:

— Eu saio já, eu saio já! Espere um bocadinho que eu saio já. Eu saio, eu saio.

Enquanto tudo isto se passava, eu permanecia à entrada da cubata virado para dentro, para ver o que fazia o homem, mas com os ouvidos atentos aos ruídos que vinham cá de fora. Ouvia passos apressados ou em corrida, assim como vozes, mas não ouvi gritos de pânico nem tiros. A minha maior preocupação, naquele momento, era que algum soldado mais nervoso começasse a disparar, o nervosismo dele se espalhasse pelo resto do pessoal e se seguisse um tiroteio generalizado, resultando tudo num banho de sangue. Tal não aconteceu, felizmente. Uma tropa consciente e disciplinada como a nossa não tinha o gatilho fácil.

Eu fui mesmo muito estúpido em ter agido como agi. Eu não tinha nada que ficar ali especado à entrada de uma cubata, à espera que alguém se vestisse e saísse cá para fora. Na minha qualidade de comandante da operação, o que eu devia ter feito era colocar-me mais ou menos no meio do acampamento, de maneira a poder controlar a evolução dos acontecimentos e dar as ordens que fossem necessárias. A revista às cubatas era uma tarefa dos soldados, não era minha. A minha tarefa era outra. Não admirava que o furriel Macedo passasse por cima da minha autoridade e agisse por conta própria. Eu não estava a saber comportar-me à altura das minhas responsabilidades. Eu merecia ser desconsiderado pelos furriéis.

Finalmente, o homem que apanhei dentro da cubata conseguiu vestir os calções e sair cá para fora. Os calções dele estavam tão esfarrapados, tão esfarrapados, que fiquei admiradíssimo como ele conseguia andar com aquilo vestido sem trazer a "ferramenta" toda ao léu… Os calções tinham mais buracos do que pano.

Juntamos as pessoas no centro do acampamento. As mulheres, sobretudo, estavam aterrorizadas, pensando talvez que as fôssemos violar. É claro que ninguém lhes tocou. O homem que apanhei dentro da cubata era por acaso o mais calmo de todos naquele momento. Resolvi por isso interrogá-lo, tendo ao meu lado o outro alferes que participou na operação (já não tenho a certeza de quem era, mas devia ser o Peixoto) e furriéis.

Para nosso espanto, o homem começou a responder-nos num português rigorosamente perfeito e com toda a fluência. Perguntamos-lhe onde foi que aprendeu a falar tão bem português. Explicou-nos:

— Em miúdo andei na escola e mais tarde fiz a tropa.

— Ai sim? Você também fez a tropa?! — perguntamos-lhe admirados.

— Sim, estive na Índia.

— Na Índia?!!! — abrimos a boca de espanto até às orelhas.

— É verdade. — confirmou ele — Fiz uma comissão em Goa em 1958.

Nós julgávamos que naquele "cu de judas" em que nos encontrávamos só havia gente matumba, que nunca tinha saído da região, e apareceu-nos um homem tão viajado que até já tinha estado na Índia!

O homem, apontando para os meus inesquecíveis subordinados africanos, acrescentou:

— Na tropa, eu era igual a esses homens. Tal e qual. Só a minha farda é que era diferente. Eu não usava essa farda — referia-se ao camuflado que nós vestíamos. — De resto, eu era igualzinho a eles. Exatamente igual. Eu fui um deles.

Pareceu-nos notar-lhe no olhar uma pontinha de inveja pelos nossos companheiros angolanos. Por isso lhe perguntamos:

— E gostou?

— Eu estava muito longe… Tinha muitas saudades… A Índia fica muito longe daqui. Mas gostei. É bom conhecer outras terras e outras gentes.

— Tem saudades desse tempo?

— Tenho — respondeu. — Mentiria se dissesse que não tinha, mas tenho saudades, sim. Eu na tropa fui bem tratado. Na tropa, eu fui bem tratado.

E disse mais uma vez «na tropa, eu fui bem tratado», querendo significar com isto que, se foi bem tratado na tropa, na vida civil nem sempre o foi.

Feitas as primeiras perguntas de ordem pessoal, resolvi mudar de assunto, perguntando-lhe acerca da FNLA:

— Onde é que está a UPA, que não se vê em lado nenhum?

— A UPA? A UPA fugiu! — respondeu-me — Fugiram todos. Fugiram os guerrilheiros e fugiram também o professor, o pastor [protestante] e todos os outros. Fugiram e deixaram-nos abandonados. Nós ficamos completamente sozinhos. Nem o pastor nem o professor ficaram. Estamos aqui completamente abandonados e não temos nada. Absolutamente nada. Não temos sal, não temos sabão, não temos fósforos, não temos roupas, não temos nada. Estamos aqui a morrer devagar.

— Então porque é que não se foram apresentar a Cambamba? — perguntamos-lhe, impressionados.

— Porque tínhamos medo de ser mortos pelos brancos — foi a resposta.

Neste instante, lembrei-me das afirmações que tempos antes tinha ouvido a um habitante de Cambamba, bastante idoso, que dissera: «Os brancos chamam terrorista à UPA. É verdade, têm razão. Quando começou a confusão [a população local chamava confusão à guerra], a UPA foi realmente terrorista. Foi, sim senhor. É verdade que foi. Mas a tropa que veio a seguir foi muito mais terrorista do que a UPA. Muito mais. O povo teve que fugir todo para a mata, para junto da UPA, para não ser morto pela tropa. Mesmo quem não gostava da UPA teve que fugir, porque a tropa matava toda a gente. A tropa foi muito mais terrorista». Lembro que um dos militares que estiveram em Cambamba no início da guerra foi o célebre alferes Robles. Ainda hoje se fala dele e das atrocidades que alegadamente terá cometido em Cambamba e Aldeia Viçosa.

Terminado o interrogatório, dei ordens para que todos se preparassem para partir. Nenhum dos civis quis ficar. Todos eles aceitaram partir connosco. Pediram-me apenas que lhes desse tempo para pegarem nos pertences que desejavam levar para Cambamba. É claro que acedi. Dei-lhes todo o tempo do mundo. Mas eles não demoraram muito. Os seus haveres eram impressionantemente escassos. Eles estavam na mais arrepiante miséria.

Enquanto os civis recolhiam os seus pertences, entrei em contacto pelo rádio diretamente com Zemba (o Racal TR-28 era um grande rádio!), a fim de dar conta do que se tinha passado. Solicitei o envio de uma coluna de viaturas ao nosso encontro, no sentido de levarem os civis resgatados para Cambamba. Nós não podíamos andar com eles atrás de nós durante o resto da operação, por duas razões principais: eles não estavam em condições físicas de poderem fazer grandes caminhadas e nós não tínhamos rações de combate suficientes para alimentar toda a gente. Os civis precisavam de ser vistos pelo médico (não sei se o Brandão os viu ou não, mas pelo menos devia) e precisavam de ser alimentados e vestidos convenientemente.

Veio o próprio comandante do batalhão ao rádio falar comigo, gritando-me do outro lado:

— Ó pá, dá por terminada a tua missão! Amanhã vocês vêm-se embora! Vocês já fizeram muito, agora outros que façam também alguma coisa.

Eu nem queria acreditar no que o tenente-coronel me dizia pelo rádio. Ele antecipava o fim da nossa operação e fazia-nos um elogio! Aquele foi o primeiro e o último elogio que ouvi da boca dele em toda a comissão… Algum santo devia estar para cair do altar, como se costuma dizer. Continuou ele:

— Vou dizer ao Magalhães para preparar dois grupos de combate, para irem amanhã substituir-vos e concluir a operação. Amanhã vocês vêm-se embora.

Mais tarde contactei pelo rádio com Cambamba, a fim de acertar pormenores sobre a hora e o local da rendição. Ficou tudo acertado e dirigimo-nos imediatamente para o local, que ainda ficava a bastantes quilómetros de distância do sítio onde nós estávamos.

Quando partimos do acampamento, cometi mais uma falha. Eu devia ter deixado um bilhete num local bem visível, a comunicar, a qualquer pessoa que eventualmente ali aparecesse, que os habitantes do acampamento tinham ido para Cambamba e que estavam todos bem. Foi uma falha imperdoável da minha parte. Foi o resultado de andar durante quase toda a operação descontraído, armado em turista, como se estivesse a fazer um safari em África, em vez de me ter compenetrado nas minhas funções. Resultado: fiz asneiras atrás de asneiras. Uma operação militar não era um passeio e eu devia ter isto sempre presente.

Chegamos ao local da rendição sem mais novidades. Esperamos pouco tempo até chegar a coluna de viaturas vinda de Cambamba. Enquanto esperávamos, sentei-me à sombra de uma pequena árvore, convencido de que mais nada me iria acontecer até à chegada da coluna. A nossa participação na operação tinha chegado ao fim. Mas o destino ainda me tinha reservado mais uma surpresa.

Um camarada nosso apontou para um ponto no chão ao pé de mim, gritando-me:

— Cuidado! Uma cobra!

Olhei para o chão e vi uma cobra lindíssima a poucos centímetros de mim. Era a cobra mais linda que vi em toda a minha vida. Espantosamente linda. Dei um salto para o lado e alguém lhe cortou imediatamente a cabeça com uma catana. Alguns dos meus admiráveis subordinados africanos aproximaram-se e foram unânimes na identificação da cobra. Era uma surucucu, uma das cobras mais venenosas de Angola. Mortal. Mas eu dificilmente correria perigo de vida se ela me mordesse, porque o cabo enfermeiro trazia soro antiofídico na sua bolsa. Mesmo assim, eu ainda era capaz de passar alguns maus momentos até que o soro anulasse o efeito do veneno.

A coluna vinda de Cambamba por fim chegou. Nela vinham para nos render dois grupos de combate da companhia 3536, comandados pelo alferes Silva. Troquei impressões com o Silva, passando para ele o serviço. O Silva comunicou-me que tinha sido incumbido da tarefa de resgatar civis abandonados na mata pela FNLA, à semelhança do que nós tínhamos feito. Eu disse-lhe que era isso mesmo o que eu também desejava que ele e o seu pessoal fizessem.

No momento da nossa subida para as viaturas, ajudamos os civis que tínhamos resgatado a subir também, mas o homem que eu tinha "capturado" recusou-se a subir. Não queria ir já para Cambamba. Queria ir com o pessoal da 3536 na operação, para servir de guia. Por mais que eu insistisse para que subisse para uma viatura e seguisse para Cambamba, ele recusava-se, dizendo:

— Há pessoas a morrer, abandonadas na mata. O que é importante agora é salvá‑las. Eu sei onde elas estão e levo-os lá. Depois, então, posso ir para Cambamba. Mas só depois.

O alferes Silva aceitou que o homem fosse com ele. Eu subi para uma viatura e regressei a Zemba, completamente descansado quanto ao êxito da operação, porque o Silva era o alferes mais ajuizado do batalhão todo.


Manuel da Conceição Silva, antigo alferes miliciano da C. Caç. 3536 (Foto: Maria do Carmo Silva)

10 maio 2020

De monte a monta…

De monte a monta, o meu grito
soa, soa, como voz
de um eco do infinito
ecoando em todos nós.

Timor cresce como um grito
ecoando em todos nós.

Ruy Cinatti (1915–1986)



Vista a partir de Tatamailau, o pico mais alto do monte Ramelau, município de Ermera, Timor-Leste. Altitude: 2963 metros (Foto: Isabel Nolasco)

08 maio 2020

Este quadro já não existe


Die Freundinnen ("As Amigas"), de Gustav Klimt (1862–1918), óleo sobre tela, 1916–17

Este quadro já não existe. Foi destruído em 1945 pelas tropas nazis em fuga, no final da 2.ª Guerra Mundial. Ficaram réplicas dele, como a que aqui se reproduz.

O seu autor foi o austríaco Gustav Klimt, um dos mais destacados artistas da Secessão de Viena, que foi um movimento fundado em 1897 com a finalidade de se opor ao conservadorismo vigente na capital da Áustria. Klimt, tal como tantas outras pessoas por esse mundo fora, morreu em 1918 vitimado pela pandemia da gripe pneumónica.

A Secessão de Viena, à qual está associado o estilo "Arte Nova" (Jugendstil, em alemão), marcou de forma indelével o próprio caráter da capital austríaca. Para nós, agora, Viena não seria Viena nem seria nada, se não tivessem existido a Secessão e as múltiplas intervenções artísticas que os seus membros deixaram para a posteridade. Além de Gustav Klimt, foram membros da Secessão Otto Wagner, Josef Maria Olbrich, Max Kurzweil, Josef Hoffmann, etc.

06 maio 2020

Tom Waits, de António Pinho Vargas


Tom Waits, de António Pinho Vargas, por António Pinho Vargas ao piano

No ano de 1951, nasceu em Vila Nova de Gaia um pimpolho a quem foi dado o nome de António Manuel Faria Pinho Vargas da Silva. Logo uma fada madrinha o predestinou para vir a ser músico, mas não um músico qualquer: um músico versátil e multifacetado.

António Pinho Vargas é um nome marcante no domínio da música em Portugal, seja como compositor, seja como pianista. Espalhou o seu enorme talento por diversos géneros musicais, com destaque para a música contemporânea e o jazz. A peça que aqui se ouve é uma das suas composições mais populares. Chama-se "Tom Waits" e é dedicada ao músico e poeta norte-americano Tom Waits.

03 maio 2020

O que se odeia no índio

O que se odeia no índio
não é apenas o ocupado espaço.
O que se odeia no índio
é o puro animal que nele habita,
é a sua cor em bronze arquitetada.
A precisão com que a flecha voa
e abate a caça; o gesto largo
com que abraça o rio; o gosto de
afagar as penas e tecer o cocar;
O que se odeia no índio
é o andar sem ruído; a presteza
segura de cada movimento; a eugenia
nítida do corpo erguido
contra a luz do sol.
O que se odeia no índio é o sol.
A árvore se odeia no índio.
O rio se odeia no índio.
O corpo a corpo com a vida
se odeia no índio.
O que se odeia no índio
é a permanência da infância.
E a liberdade aberta
se odeia no índio.

Reynaldo Jardim (1926–2011), poeta e jornalista brasileiro



Índio brasileiro de etnia Kuikuro (Foto: Karla Freitas)