Páscoa na Guerra Colonial
Eu não sei quem foi o autor deste filme, feito em 1971, porque o blog de onde o repesquei (CCav2692 - SUS! A ELES!) não diz, mas presumo que tenha sido alguém ligado aos serviços de fotocine do Exército. Os browsers, em geral, conseguem mostrar os vídeos do Blogger diretamente a partir da fonte, sem necessidade de uma interface do Youtube, Vimeo ou Dailymotion, e neste caso costumam encher o ecrã todo com as suas imagens. Portanto, talvez este filme também possa ser visto em tamanho grande, apontando diretamente para aqui
Eu peço imensa desculpa por publicar um post com um vídeo tão desinteressante como este, mas pessoalmente este vídeo diz-me muito. Perdoe-se-me o egoísmo. É um pequeno filme sobre o embarque de tropas para uma operação militar helitransportada na Guerra Colonial, em Zemba, norte de Angola, no ano 1971.
Quando eu vi este filme pela primeira vez, dei um salto na cadeira, pensando: «Eu estou ali!» Não, não estava, mas as cenas que nele estão retratadas são exatamente iguais às que eu próprio vivi dois anos depois, naquele mesmo lugar e naquelas mesmas circunstâncias, tal e qual. O quartel do mato, quase todo constituído por barracões de madeira cobertos de chapa de zinco, era exatamente o mesmo. A pista de aviação era exatamente a mesma. Os montes em volta eram exatamente os mesmos. As florestas que os cobriam eram exatamente as mesmas. A neblina que se dissipava pela manhã era exatamente a mesma. Até os helicópteros pareciam ser exatamente os mesmos. Só os participantes não eram os mesmos: no filme só se veem europeus, enquanto a minha companhia tinha bastantes africanos nas suas fileiras. Só no meu grupo de combate, apenas 50% dos soldados eram portugueses, pois os restantes eram angolanos, que foram as pessoas mais fantásticas que conheci em toda a minha vida. Morro de saudades deles. Não os esqueço, nunca.
Na minha qualidade de alferes miliciano atirador de Infantaria, fui encarregado de comandar o grupo de assalto a uma base de guerrilheiros da FNLA, no decurso de uma operação helitransportada. Esta foi a única operação militar que a minha companhia fez de helicóptero, e não a pé como todas as outras, e o seu comando foi entregue logo a mim, apesar de eu não estar minimamente preparado para tal. Mas isto é outra questão.
A "minha" operação teve o seu início na Sexta-Feira Santa (20 de abril) e terminou no Domingo de Páscoa (22 de abril) de 1973. Apesar de ter uma certa importância estratégica, a base atacada era bastante pequena, não justificando um tão grande poder de fogo por parte da Força Aérea, que mobilizou aviões a jato e um avião a hélice, todos a dispararem foguetes, além de um helicanhão, que era um helicóptero com uma metralhadora pesada a bordo. A base da FNLA foi tomada sem resistência, pois os guerrilheiros que a guarneciam puseram-se em fuga antes de entrarmos nela, "dissolvendo-se" na floresta envolvente.
Recolhido o espólio e destruída a base, empreendemos um patrulhamento pelas redondezas. Na beira de um caminho, a uma certa distância da base, deparamo-nos com uma mulher morta, sem metade da cara. Era evidente que ela tinha sido abatida pelo apontador do helicanhão. A metralhadora pesada montada nesta aeronave costumava ser municiada com balas dotadas de ponta explosiva. Um bala deve ter atingido a mulher na cara e abriu-lhe um horrendo buraco de ossos estilhaçados e sangue. A mulher deve ter tido morte imediata.
Um dos meus soldados angolanos, chamado Domingos Cangúia, que era do Cuanza Norte e era de uma pureza e generosidade inigualáveis, chorou longa e convulsivamente a morte gratuita daquela mulher, exclamando entre soluços:
— Que mal é que esta mulher fez a quem a matou? Porque foi que ele a matou? Certamente ela tinha filhos pequenos. O que vai ser agora dos filhos?
E chorava, chorava, chorava.
Eu, por minha parte, fiquei a pensar em como era fácil matar alguém lá do alto, como quem dispara para um boneco numa barraca de tiro de uma feira ou como quem caça um coelho ou uma perdiz. Talvez o apontador do helicanhão se julgasse um anjo castigador, encarregado de punir todos aqueles que tivessem escolhido o lado "errado" (para ele) da guerra. Se tivesse encarado aquela mulher de frente, de olhos nos olhos, teria tido ele, mesmo assim, o atrevimento de matá-la?
Há cenas que ficam gravadas na nossa memória como ferro em brasa. Para mim, esta foi uma delas.
Desde que terminei o meu serviço militar, nunca mais peguei numa arma, nem sequer numa fisga.
Comentários: 3
Nunca nos poderemos esquecer da Guerra Colonial. Aquela que em tempos dictatoriais do nosso País, fomos semear a guerra, fora do nosso País e não tivemos, mais uma vez políticos inteligentes que tivessem percebido que teria sido bem melhor "desolonizar" e continuarmos nessas colónias, em Paz, e a tentar desenvolvê-las e não destruí-las. Mais que uma geração nossa e deles, países que designamos hoje de PALOPS, sofreram à conta, não sei de quem.
As guerras só servem para criar miséria, embora comercialmente sejam benéficas para alguns :((( !
Fico sem palavras para lhe deixar, Fernando. Limito-me a deixar-lhe o abraço de sempre.
Não havia Páscoa na Guerra Colonial em Angola. Não havia mesmo. O domingo de Páscoa era um dia de guerra igual a qualquer outro. Eu regressei desta operação num domingo de Páscoa, mas militares de uma outra companhia entravam nesse mesmo dia em operações. O único dia do ano em que parava a guerra era o dia de Natal.
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