06 agosto 2021

Três poemas de Namibiano Ferreira


Recebi notícias frescas de Namibiano Ferreira, pseudónimo literário de um poeta angolano vivendo na diáspora. A falta de saúde fê-lo passar por maus momentos, mas Namibiano Ferreira "renasceu" para anunciar que lançou (finalmente!) um livro de sua autoria. O livro chama-se "Ondjira — A Rota do Sul" (a palavra
Ondjira significa "Caminho" na língua herero) e acaba de ser publicado pela Chiado Books. Custa 12 Euros em papel e pode ser adquirido online em https://www.chiadobooks.com/livraria/ondjira-a-rota-do-sul.

Para se fazer uma ideia da qualidade da obra poética de Namibiano Ferreira e avaliar o seu mérito, seguem-se três criações suas, extraídas do seu blog Ondjira Sul.



ONDE O VENTO PASSA

A minha pátria é onde o vento passa
onde o vento manso ou furioso traça
serpentes de mar sobre o areal e a duna.
A rosa-dos-ventos florindo, afortuna
o chão árido, ouro do sul inteiro
silvando um grito hirto, certeiro
para na minha sede a saudade matar
nesse grito alto: meu Namibe,
eterno deserto que ainda não sei cantar.


O PERFUME DAS CHUVAS

Para Midori, a minha neta!

Que faz hoje 4 anos.


Quase no final das chuvas e eu choro os desbarulhos da saudade das chuvas futuras que hão-de vir depois do comprido cacimbo.

Em África, as chuvas recriam a vida como se caissem no primeiro dia do Génesis. A cada ano, quando tamborilam as primeiras chuvas, há uma musicalidade mística que habita a alma das gentes. As chuvas trazem um sentido virgem e puro como se o Mundo acabasse de ser inventado.

Aqui, na Europa, as chuvas são simplesmente chuvas, água sem alma, caindo morta e sem um sentido profético de renovação. Não há aquele odor vivo, incaracterístico das chuvas a beijar o chão seco e quente no início de cada estação. A chuva não casa com a terra.

Em África, quando o sémen dos Deuses chove sobre a terra, liberta-se um perfume fresco e telúrico de fartura cozinhada que se come, que se bebe e se respira como se cada pessoa fosse moldada no barro húmido da terra.


MARIA GRAZIELA

Para a minha irmã de criação que não sei viva ou morta.

Lembro o crespo sentir
da tua carapinha dura,
os teus olhos doces de gazela
o teu nome Maria Graziela,
os lábios pequenos, pétalas
suaves de uma flor inominável
e a tua pele, ébano-cetim
onde o sol deixava indelével
beijos cegos de luminosas esferas
sobre o relevo macio do teu rosto.

Maria, tu foste tu és tu serás
a minha irmã, a mana mais velha
a irmã que nunca tive tenho terei...

Foi logo no burburinho inicial
dos ferros e das armas de fogo
quando nos perdemos um do outro.
Disseram-me tinhas ido no Huambo
seguindo a militância dos dias
eu fiquei no Namibe... esperando
vi os karkamanos chegar e partir
porém, só tu nunca vieste...
se por acaso fores viva, ainda,
que o sol te beije por mim
todos os dias a todas as horas;
se já viveste teu komba, então
que os anjos celestes te beijem
e ponham por mim pequeninas
esferas de luz divina em teu rosto.

Tu és a mana mais velha...
a irmã que eu queria voltar a ter.

cacimbo — estação seca

karkamanos
— militares do regime racista da África do Sul que invadiram Angola em 1975

komba — em sentido lato, óbito


No Curoca Norte, Namibe, Angola (Composição de fotos: Pedro Klecius)

Comentários: 1

Blogger NAMIBIANO FERREIRA escreveu...

Obrigado pelo apoio.
Saudações

06 agosto, 2021 18:06  

Enviar um comentário