20 outubro 2006

Os primeiros escravos da era dos Descobrimentos

O que se vai ler a seguir é o relato da venda dos primeiros escravos trazidos de África pelas caravelas, que teve lugar em Lagos, no Algarve, no ano de 1444, e à qual assistiu o próprio Infante D. Henrique. O relato é do cronista Gomes Eanes de Zurara.


CAPITULO XXV

COMO O AUTOR AQUI RAZOA UM POUCO SOBRE A PIEDADE QUE BA DAQUELAS GENTES, E COMO FOI FEITA A PARTILHA

Tu, celestial Padre, que com tua poderosa mão, sem movimento de tua divinal essencia, governas toda a infinda companhia da tua santa cidade, e que trazes apertados todolos eixos dos orbes superiores, distinguidos em nove esferas, movendo os tempos das idades breves e longas, como te praz!

Eu te rogo que as minhas lagrimas nem sejam dano da minha consciencia, que nem por sua lei daquestes, mas a sua humanidade constrange a minha que chore piedosamente o seu padecimento. E se as brutas animalias, com seu bestial sentir, por um natural instinto conhecem os danos de suas semelhantes, que queres que faça esta minha humanal natureza, vendo assim ante os meus olhos aquesta miseravel companha, lembrando-me de que são da geração dos filhos de Adão!

No outro dia, que eram VIII dias do mês de agosto, muito cedo pela manhã por razão da calma, começaram os mareantes de correger seus bateis e tirar aqueles cativos, para os levarem segundo lhes fora mandado; os quaes, postos juntamente naquele campo, era uma maravilhosa cousa de ver, que entre eles havia alguns de razoada brancura, fremosos e apostos; outros menos brancos, que queriam semelhar pardos; outros tão negros como etiopes, tão desafeiçoados assim nas caras como nos corpos, que quasi parecia, aos homens que os esguardavam, que viam as imagens do hemisfério mais baixo.

Mas qual seria o coração, por duro que ser podesse, ti que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela companha? Que uns tinham as caras baixas e os rostros lavados com lagrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo mui dolorosamente, esguardando a altura dos ceus, firmando os olhos em eles, bradando altamente, como se pedissem acorro ao Padre da natureza; outros feriam seu rostro com suas palmas, lançando-se tendidos no meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra, nas quaes, posto que as palavras da linguagem dos nossos não podesse ser entendida, bem correspondia ao grau de sua tristeza.

Mas para seu dó ser mais acrecentado, sobrevieram aqueles que tinham cargo de partilha e começaram de os apartarem uns dos outros, a fim de poerem seus quinhões em igualeza; onde convinha de necessidade de se apartarem os filhos dos padres, e as mulheres dos maridos e os dos irmãos dos outros. A amigos nem a parentes não se guardava nenhuma lei, somente cada um caía onde o a sorte levava!

Ó poderosa fortuna, que andas e desandas com tuas rodas, compassando as cousas do mundo como te praz! E sequer põe ante os olhos daquesta gente miserável algum conhecimento das cousas postumeiras, por que possam receber alguma consolação em meio de sua grande tristeza! E vos outros, que vos trabalhaes desta partilha, esguardae com piedade sobre tanta miseria, e vede como se apertam uns com os outros, que apenas os podeis desligar!

Quem poderia acabar aquela partição sem mui grande trabalho? Que tanto que os tinham postos em uma parte, os filhos, que viam os padres na outra, alevantavam-se rijamente e iam-se para eles; as madres apertavam os outros filhos nos braços e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, por lhe não serem tirados! E assim trabalhosamente os acabaram de partir, porque alem do trabalho que tinham com os cativos, o campo era todo cheio de gente, assim do lugar como das aldeias e comarcas de arredor, os quaes leixavam em aquele dia folgar suas mãos, em que estava a força do seu ganho, somente por ver aquela novidade.

E com estas cousas que viam, uns chorando, outros departindo, faziam tamanho alvoroço, que poinham em turvação os governadores daquela partilha.

O Infante era ali em cima de um poderoso cavalo, acompanhado de suas gentes, repartindo suas mercês, como homem que de sua parte queria fazer pequeno tesouro, que de RVI 3 almas suas aconteceram no seu quinto, mui breve fez delas sua partilha, que toda a sua principal riqueza estava em sua vontade, considerando com grande prazer na salvação daquelas almas, que antes eram perdidas, E certamente que seu pensamento não era vão, que, como ja dissemos, tanto que estes haviam conhecimento da linguagem, com pequeno movimento se tornavam Cristãos; e eu que esta história ajuntei em este volume, vi na vila de Lagos moços e moças, filhos e netos daquestes, nados em esta terra, tão bons e tão verdadeiros Cristãos como se descenderam de começo da lei de Cristo, por geração, daqueles que primeiro foram bautizados.

(Gomes Eanes de Zurara, in Crónica dos Feitos da Guiné)


O antigo mercado de escravos de Lagos, Algarve

Comentários: 5

Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

É verdade que pode ser considerada racista a seguinte afirmação de Gomes Eanes de Zurara: "(...) outros tão negros como etiopes, tão desafeiçoados assim nas caras como nos corpos, que quasi parecia, aos homens que os esguardavam, que viam as imagens do hemisfério mais baixo". Mas também é verdade que o cronista afirma que todos os cativos "(...)são da geração dos filhos de Adão", independentemente da cor da sua pele.

20 outubro, 2006 18:49  
Blogger Terra escreveu...

Como outros, este texto tem de ser descodificado tendo em conta um contexto específico.
Obrigada, Denudado, por este blog onde se encontram tantas coisas diferentes e todas elas tão inesperadas como interessantes.
Bjs.

21 outubro, 2006 01:01  
Blogger inominável escreveu...

Não acho que o comentário deste cronista (de Mangualde ou terras próximas segundo estou recordada) seja racista... Acho até de muito relativismo cultural, numa altura em que a Antropologia era bastante diferente da actual... e temos que recordar, como se disse no comentário anterior, o contexto em que aquelas palavras foram produzidas... e creio que o resto do texto é bastante esclarecedor em relação ao humanismo de Zurara...

23 outubro, 2006 14:28  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Note-se que eu escrevi que a afirmação de Zurara "pode ser considerada racista", não escrevi que é racista. O próprio cronista escreveu "que quasi parecia, [não a ele, mas] aos homens que os esguardavam, que viam as imagens do hemisfério mais baixo". O "hemisfério mais baixo" é o inferno, na concepção medieval do universo, a qual atribuía a cor negra ao diabo.

24 outubro, 2006 14:35  
Anonymous Anónimo escreveu...

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15 março, 2013 11:56  

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