Um atentado ao património
"O Basto" (Foto: Maurício Abreu)
Esta estátua é chamada "O Basto" e está na vasta praça principal de Refojos, que é a sede do concelho de Cabeceiras de Basto. É preciso procurá-la, pois está num local pouco visível.
Originalmente, esta estátua, que foi esculpida por volta do séc. I a.C., representava um guerreiro celta vestindo uma curta túnica e segurando um escudo à frente da barriga, à semelhança de algumas outras estátuas da mesma época, existentes em Portugal e na Galiza.
Em 1612 e mais tarde em 1892, porém, alguém resolveu brincar com a estátua, introduzindo-lhe alterações. Melhor do que eu seria capaz de fazer, José Saramago descreve da seguinte forma como ela ficou, no seu livro "Viagem a Portugal":
«Data, tem a de 1612, e mais parece um rapazito de bigodes pintados e calções curtos do que o rústico batalhador de antigas eras. Tem na cabeça uma barretina das invasões francesas, e para não falhar a primeira comparação parece usar umas meias bem puxadinhas por mandado de sua mãe ou avó. Dá vontade de sorrir.»
Dá realmente vontade de sorrir esta figura que é tão patusca, que não sou capaz de me zangar com os actos de vandalismo que a tornaram assim...
Comentários: 5
Conheço essa estátua desde os meus 8 anos. Vinda de Angola, nessa altura tudo me parecia escuro, tenebroso. Das casas às pessoas... foi um choque que nunca esqueci.
Essa estátua foi das únicas coisas engraçadas e que me fascinou. Talvez por incongruente! Algo me dizia que "não batia a bota com a perdigota". Só mais tarde, quando li sobre ela, fiquei a perceber o que havia acontecido.
Apesar disso, concordo consigo. Pelo menos merecia um lugar de maior visibilidade em Cabeceiras de Basto.
Um abraço
De facto...
E eu a pensar que só em Angola é que se trasformava um belo e arejado, de grandes varandas, edifício como o da Fazenda (na Mutamba)em micro-ondas (sim, alguém teve a ideia de o envidraçar com vidros fumados)...
ou deitavam abaixo casinhas dos sécs XVIII e XIX, algumas mesmo do séc. XVII, na cidade alta... ou construiam torres de 20 andares, em vidro (sempre o maldito, quente e gastador de energia vidro) em plena baixa Luandense com arquitectura de traça colonial característica.
Será herança ruim, mesmo, ou coincidência apenas?
Cangonja, muito obrigado pela sua visita.
Eu não sou retornado e, por isso, não sei avaliar convenientemente o que foi que as pessoas sentiram quando viram a sua vida desmoronar-se e tiveram que rumar para uma terra que era a sua, mas que não as queria, só com a roupa que traziam no corpo e pouco mais.
Devem ter sido tempos tenebrosos, como a Cangonja escreve. O choque sentido no contacto com uma sociedade muito mais fechada e muito mais conservadora (no interior do Minho, então...) que, em vez de os receber de braços abertos, como irmãos, os acolheu com indiferença, nuns casos, com manifesta frieza, noutros casos, e até com aberta hostilidade, noutros casos ainda. Chegaram a ser chamados de "fascistas", "reaccionários", "exploradores", etc. "Vocês estiveram em África a explorar os pretos e agora vêm-nos explorar a nós!", diziam-lhes.
E o que foi que eles fizeram? Secaram as lágrimas, arregaçaram as mangas e recomeçaram as suas vidas a partir do zero, quase sempre. Trabalharam, criaram empregos e integraram-se na sociedade portuguesa.
Portugal viu então surgirem novas pequenas empresas, novos estabelecimentos comerciais, muitos deles ostentando nomes que continuavam a evocar África. Nomes como os que se seguem, foram reais e apareceram aqui na zona do Porto: Tabacaria Welwitschia, Pronto-a-Vestir Zuata (zuata significa "veste-te" em quimbundo), Minimercado Mutamba, Auto Namibe, Restaurante Kilumba (kilumba quer dizer "rapariga" em quimbundo), etc. Isto para não falar nas inúmeras churrascarias a fornecerem "frango de churrasco à angolana". Alguns destes estabelecimentos ainda existem.
Ainda está por escrever a história do drama dos retornados. Se fosse nos Estados Unidos, não faltariam os filmes a tratar o assunto das mais variadas maneiras.
Phwo, é claro que não é só em Angola que existem atentados ao património. Portugal é muito fértil nesse tipo de coisas.
Aqui mesmo no Porto assistiu-se há pouco tempo ao perpretar de um atentado desse género: a transformação da "sala de visitas" da cidade (a Avenida dos Aliados) num gelado e soturno deserto cinzento. Para cúmulo, o autor do atentado foi o mais consagrado dos arquitectos portugueses, Álvaro Siza Vieira! Perdi-lhe o respeito.
Se achas que eu exagero, dá então uma vista de olhos a este post do blog "A Cidade Surepreendente", de Carlos Romão. Das flores, não ficou nem uma pétala; da relva, não ficou nem uma folhinha. Foi tudo pavimentado de alto a baixo com granito cinzento... importado da China! Isto admite-se?!
Denudado
Não invalidando o que escreveu sobre a chegada dos "retornados" (termo de que não gosto), os tempos tenebrosos a que me refiro são mais antigos. Lá pela década de 1960, em que tudo era tenebroso: na aparência e na essência! Voltarei!
Cangonja, volte sempre que quiser.
A década de 60 foi, de facto, um tempo tenebroso, em que Portugal (a Metrópole, como então se dizia) perdeu um décimo da sua população, em resultado da emigração em massa para a Europa que nessa década se produziu. As condições de vida nas aldeias eram terríveis, a guerra colonial veio agravar ainda mais a situação e muitos dos homens válidos atravessaram então a fronteira clandestinamente, para irem trabalhar para fora. Os jovens eram mobilizados para as guerras em África e nas aldeias praticamente só ficavam as mulheres, quase sempre vestidas de preto, a trabalharem sozinhas os campos, enquanto esperavam que os seus maridos e filhos as chamassem para se lhes juntarem em França e na Alemanha. Imagino que nas Terras de Basto este ambiente se notasse com particular intensidade.
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