19 junho 2010

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José Saramago (caricatura de Sergei)


E porque os antigos deuses haviam morrido por inúteis os homens descobriram outros que sempre tinham existido encobertos pela sua não necessidade

O primeiro de todos foi a montanha porque era ela que no seu mais alto pico sustentava o peso do céu

Aquele mesmo céu que os velhos deuses em tempos idos habitaram e donde de pais para filhos desprezaram os homens porque desprezo fora impor-lhes salvações contra a sua própria humanidade

O segundo deus foi o sol porque ensinara a redescobrir a roda embora houvesse tribos que veneravam a lua pela mesma razão

Essas porém em noites de quarto minguante ou crescente traziam os olhos baixos

Provando assim que sempre cada tribo tem o deus que prefere e não outros

Mas a nova mitologia a isto se resumiu porque um dia houve um homem que subiu ao pico da montanha e por essa maneira se viu que sozinho levantara o céu

E outro pegou nas rodas que haviam sido o sol e a lua e lançou-as para longe onde não brilharam

Definitivamente deus só ficou o rio porque os homens vão mergulhar nele as mãos e o rosto e têm estrelas nos olhos quando se levantam

Enquanto as águas por sua vez transportam ao céu e ao sol se o há a turvidão salgada das lágrimas e do suor

E as plantas verdes que dentro de água vivem estremecem sob o vento que traz aquele cheiro de homem a que a terra ainda não se habituou


José Saramago (1922-2010), in O Ano de 1993, págs. 87-88, Editorial Caminho, Lisboa

Comentários: 3

Blogger Dylan escreveu...

José Saramago não era menos português por não pôr a bandeira à janela na véspera de um evento desportivo. Acima de tudo, a sua essência era ibérica. Convém dizer que só saiu de Portugal devido à ostracização de Sousa Lara, comprovada agora com o episódio político revisionista da não presença de Cavaco Silva no seu funeral. "Viagem a Portugal" é reflexo de amor e do encantamento que sentia pelo país, pela sua beleza e cultura, pela classe trabalhadora, espelhada na sua identidade, mesmo que isso significasse ir contra a ideologia do seu partido, contra a maioria religiosa, contra o politicamente correcto. Para o seu espírito inconformado, a morte é pouco relevante. Como diria Saramago, "o fim duma viagem é apenas o começo de outra".

22 junho, 2010 00:10  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

A mim, parece-me que o patriotismo de José Saramago está completamente fora de causa. Ele era português, sentia-se português e agia como tal. O seu iberismo, que se manifesta de maneira perfeitamente clara em "Jangada de Pedra", por exemplo, em nada diminui o seu patriotismo, porque ele não era português contra os espanhóis, era português com os espanhóis. Isto, que me parece tão claro e foi perfeitamente compreendido pelos próprios espanhóis, não o foi por muitos portugueses de vistas curtas, que precisam sempre de arranjar um inimigo para se dizerem "patriotas", seja esse inimigo espanhol, mouro ou outro.

O livro "Viagem a Portugal" devia ser uma obra de consulta obrigatória por quem queira viajar por Portugal continental (é pena que Saramago não tenha ido às ilhas). É uma obra que complementa exemplarmente o enciclopédico "Guia de Portugal" em 8 volumes, de Raul Proença e concluído por Santana Dionísio. Duvido que os pseudo-patriotas que tanto criticam Saramago, pela sua suposta falta de portuguesismo, conheçam o nosso país tão bem como ele o conheceu, sentiu e viveu.

23 junho, 2010 00:32  
Anonymous Anónimo escreveu...

interessante

23 maio, 2012 16:38  

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