Mãe Preta
Mãe Preta é uma canção que surgiu no Brasil na década de 30 do século passado, sobre o drama pungente de uma ama negra no tempo da escravatura. Com música composta por "Caco Velho" (Matheus Nunes) e letra de "Piratini" (António Amabile), Mãe Preta chegou a Portugal nos primeiros anos da década de 50 pela voz da fadista Maria da Conceição. Esta versão portuguesa foi um êxito colossal, que as rádios tocavam sem cessar e que as pessoas cantarolavam e assobiavam por todo o lado. Até que, de repente, a Mãe Preta deixou de se ouvir nas rádios. E as pessoas interrogavam-se sobre este silêncio subitamente instalado:
-- O que é que aconteceu à Mãe Preta, que nunca mais ouvi no rádio?
-- Não sabe? O Salazar proibiu.
-- Oh, que pena! Era tão bonita!
Entretanto, novos êxitos musicais foram surgindo, nas vozes de Amália Rodrigues, Maria de Lourdes Resende, Francisco José e outros. Mesmo assim, a Mãe Preta continuava presente na memória dos portugueses, com as suas palavras que a ditadura pretendeu calar:
Pele encarquilhada, carapinha branca,
gandola de renda caindo na anca,
embalando o berço do filho do sinhô,
que há pouco tempo a sinhá ganhou.
Era assim que Mãe Preta fazia.
Tratava todo o branco com muita alegria.
Enquanto na sanzala Pai João apanhava,
Mãe Preta mais uma lágrima enxugava.
Mãe Preta, Mãe Preta!
Enquanto a chibata batia no seu amor,
Mãe Preta embalava o filho branco do sinhô.
Poucos anos depois, tirando partido das saudades que as pessoas conservavam da canção Mãe Preta, Amália Rodrigues gravou um fado chamado Barco Negro, com um poema de David Mourão-Ferreira sobre a música da Mãe Preta. Este fado, que tem como tema o amor de uma mulher por um homem morto num naufrágio, foi um dos maiores êxitos de toda a carreira de Amália. Foi um êxito tão grande, que a letra original da Mãe Preta acabou mesmo por cair no esquecimento em Portugal.
Barco Negro, por Amália Rodrigues
Seria de esperar que, depois da queda da ditadura em 25 de Abril de 1974, a Mãe Preta reaparecesse em Portugal com a sua letra original, cantada por uma das novas vozes saídas após a Revolução. Porém, tal quase não aconteceu. O que aconteceu foi que as novas fadistas voltaram a cantar o Barco Negro, que Amália Rodrigues cantara, e não a original Mãe Preta, que Maria da Conceição tinha popularizado. Foi o que fez Mariza e foi o que fez, mesmo, o brasileiro Ney Matogrosso. No meio das várias vozes que cantaram de novo o Barco Negro, uma voz, pelo menos, se fez ouvir com a "velhinha" Mãe Preta: a de Dulce Pontes.
Mãe Preta, por Dulce Pontes
Comentários: 18
Olá, amigo. Excelente postagem, como sempre. Barco Negro é minha canção portuguesa preferida. Soa mais mediterrânea, mais solar.
Saudações!
Amigo Daniel,
Obrigado pelas suas palavras. A música de Caco Velho é belíssima, sem qualquer dúvida. A mim, ela soa-me profundamente africana, como algo que tem as suas raízes bem enterradas na cultura ioruba. Para sentir esta impressão, talvez eu seja inconscientemnte influenciado pela letra da Mãe Preta.
Quanto ao Barco Negro, ele beneficia de uma letra que é incomparavelmente superior, de um ponto de vista exclusivamente literário, à da Mãe Preta. Não foi por acaso que o seu autor, David Mourão-Ferreira, foi um dos mais destacados poetas portugueses do séc. XX. A interpretação de Amália, por seu lado, é simplesmente sublime. Ao calor natural da sua voz, que por si só já é extraordinário, Amália acrescenta o calor de um intenso sentimento.
Eu hesitei muito em colocar aqui um vídeo de Dulce Pontes a servir de contraponto ao de Amália Rodrigues. Dulce Pontes é uma cantora que tem uma voz verdadeiramente fabulosa, a que acrescenta uma técnica irrepreensível (que Amália também tinha), mas falta-lhe algum sentimento. Cantar não é só emitir uma bela voz, é também sentir (ou fingir sentir) o que se canta. Deste ponto de vista, Dulce Pontes perde irremediavelmente para Amália.
Pesando os prós e os contras, o meu coração vai, apesar de tudo e sem hesitações, para a Mãe Preta. A letra de Piratini é um poema muito simples e direto, sem floreados nem intelectualismos, apesar de encaixar de forma deficiente na música de Caco Velho. Prefiro a Mãe Preta, e foi por isso que lhe dei um maior destaque no título e no texto deste artigo.
Meu caro, eu conhecia a Mãe Preta cantada pela Dulce Pontes, mas nem imaginava que houvesse tanta história por trás!
Até fui ouvir hoje no YouTube algumas versões brasileiras da canção original, uma delas a de Rolando Boldrin, esse grande conhecedor e divulgador do nosso patrimônio musical caipira.
Também acho que soa algo semelhante a uma ou outra canção de Clementina de Jesus. Remanescências de um Brasil profundo do passado...
Graças à sua postagem, vou "remoer" também a Mãe Preta durante muito tempo...
Concordo plenamente consigo sobre as qualidades estéticas tanto da Amália como da Dulce. Desta última, só escuto de vez em quando algumas interpretações, como a Canção do Mar e outras em que ela canta com um coral alentejano. Mas tenho uma atração especial e quase que sem restrições pela voz da Amália.
Caro Daniel,
Se não for um abuso da minha parte, convido-o a escutar mais uma versão do "Barco Negro", que acabei de descobrir. É uma versão diferente de todas as outras, interpretada por uma fadista de Goa (!) chamada Sonia Shirsat. É fado com o bom sabor das especiarias da Índia:
http://www.youtube.com/watch?v=xG12Aryiwmw
Incrível, Fernando! Obrigado por partilhar. Pelo que vi por alto, é pena que haja pouca música de Goa no YouTube (há uma certa cantora chamada Lorna, mas não me atrai muito). Da antiga Índia Portuguesa tenho um material musical e literário comigo para divulgar aos poucos, fornecido por um amigo goês. Discos do grupo Gavana, em especial. Para mim algumas de suas músicas são simplesmente maravilhosas. No meu imaginário esse é ainda um mundo fantástico...
Caro Daniel,
Nos discos dos Gavana devem constar, certamente, alguns exemplares de mandó, que é um género musical de Goa, dolente e em tom menor.
O mais famoso de todos os mandós, chamado "Adeus Korchea Vellar" em concanim (o concanim é a língua de Goa; é uma língua ariana e pertence, portanto, à grande família das línguas indo-europeias, à qual também pertencem o português e as restantes línguas latinas) pode ser ouvido no seguinte vídeo, numa interpretação dos fadistas portugueses Maria Ana Bobone e Miguel Capucho, a quem se junta, a dado momento, Sónia Shirsat:
http://www.youtube.com/watch?v=0iBj0Of_5Ns
A versão original deste mandó pode ser ouvida no vídeo que se segue, que o jornalista goês Frederick Noronha acabou de colocar no Youtube, interpretada por ocasião do lançamento de um livro sobre o mandó, precisamente:
http://www.youtube.com/watch?v=p4u2uApUQRQ
Voltando a Sónia Shirsat, podemos ouvi-la ainda no seguinte vídeo, que Frederick Noronha também colocou no Youtube:
http://www.youtube.com/watch?v=3ZWVHsvVJk4
Todos aqui falam na Mãe Preta cantada pela Dulce Pontes mas chamo a atenção para um disco da ANA FARIA ("Brisa do Sul") gravado em 1989 que inclui a Mãe Preta, do Caco Velho e do Piratini. A primeira vez que a ouvi na telefonia pela voz da M.ª da Conceição foi no início do ano de 1953. Poucos meses depois deixou de se ouvir, por ter sido proibida.
Caro/a anónimo/a,
Muito obrigado pela sua intervenção. Desconhecia completamente a interpretação da Mãe Preta por Ana Faria. Acabei agora mesmo de a ouvir e francamente gostei. Para mim, Ana Faria era um nome que sempre associei à música popular portuguesa, primeiro, como vocalista de um grupo de cujo nome não me recordo, e à música para crianças, depois, sobretudo como intérprete de Brincando aos Clássicos. Nunca me passou pela cabeça que ela pudesse ter cantado a Mãe Preta.
Sou da Madragoa ,estou fora de Portugal depois de 1965 assim que sai da tropa.A grande Amália ouvia-a cantar no Bettencourt na rua das Trinas,
na esquina da calçáda do castélo picão com rua Viçente Borga ouviamos o filho do Alfredo Marceneiro entre; ás 2\3 horas da manhã.
O Fádo eu tinha nascido com ele!!
Mas, caro senhor Fernando Ribeiro o que eu tenho aprendido depois que o encontrei na rêde!!
Ah, a Madragoa, encostada à Rua das Trinas e à Rua do Quelhas! Gosto muito dela. É, sem sombra de dúvida, um dos bairros mais autênticos de Lisboa. Antigamente era um bairro habitado sobretudo por varinas e por ardinas, não é verdade?
Obrigado por me ter respondido!! Ao prencipio éra um bairro habitado por Africanos,mais tarde começou a se expandir por habitantes da zona de Aveiro,Murtosa mais tarde começou a se "monarquelisar",Mousinho de Albuquerque,O'rei D'Antunes, Embaixada de França,e vàrios outros foi de là que apareseram as varinas os pescadores,o Fado foi por volta de 1700 que apareceu ,seria como um queixume do pobre povo foi pérto da Madragoa em Alcantara que nasceu a grande Amalia Rodrigues!!Estava justamente a ouvir os antigos pregões das varinas da Madragoa no Youtube, calorosos cumprimentos para si de um ademirador do hymisfério Norte
cumprimentos d
Valha-me Deus! Eu não mereço ter admiradores! Porque haveria de tê-los? Sou apenas um curioso que gosta de partilhar os seus interesses, mais nada. E agora, como é que eu fico?
Ao ler a sua afirmação de que a Madragoa tinha começado por ser habitada por africanos, lembrei-me de ter lido isso mesmo em qualquer lado. E lembrei-me de ter lido também que se chamava Mocambo por isso mesmo. O nome Madragoa só terá vindo depois, talvez como referência às freiras do convento das Trinas, a quem chamariam Madres de Goa, não me lembro porquê.
Se for verdade o que alguns entendidos dizem, que o fado surgiu a partir de uma dança africana chamada lundum, então é lógico que ele tenha nascido na Madragoa e não noutro sítio qualquer, por muito que isso custe à Mouraria, o bairro onde viveu a Severa.
Muito obrigado pelas suas explicações.
Obrigado, Fernando!
Eu sabia parte desta historia, mas me faltava muito. Faze muito tempo que a musica e as palavras tão bellas me encantam. Pois eu desconhecia o mais interessante, e dezir, sua historia interessante. Oxala me perdone e me entiende, quase não falo a lingua bela de voçes e agora e a primeira vez que intento escriver asím. Espero que o meu espantugues não espante se! Bueno... de novo, obrigado por nos contar tudo iso.
Abraços.
Brian D
Reno, NV, EEUU
Prezado Brian D,
Muito obrigado pelas suas simpáticas palavras. Não se preocupe com o seu "espantuguês". O que importa é que conseguiu fazer-se entender.
Um abraço
Lindo demais. Tanta história. A verdade nem sempre está por trás do que ouvimos e vemos; é mais complexa do que o aparente. É preciso conhecer as entranhas. ´...e quanto mais nos aprofundamos, mais valoriza-se o belo!!! Grata. abraços!
Prezada Maria de fatima romao,
É tal e qual como diz. Quanto mais aprofundamos, mais se descobre e mais ficamos a gostar.
Caro Fernando estou deveras apaixonada por esse meio de informação, quando à quase vinte anos atrás conheci uma guitarra portuguesa sem siquer saber o que era O FADO..., e minha VIDA de lá para cá, aliás até hoje em se tratando de música, a preferência está neste gênero incomparável O FADO. Por tão apaixonada aqui no Brasil Estado de Santa Catarina, na cidade de Itajaí me ponho a interpretar justamente com mais frequência de pedidos a MÃE PRETA e BARCO NEGRO. FADISTA CELIA PEDRO site e CÉLIA PEDO face. Beijinhos
Cara Celia Pedro, obrigado pela sua mensagem. Sabe bem fazer uma coisa de que gostamos, não é verdade? O fado está atualmente em grande, sobretudo desde que foi classificado Património Mundial Imaterial pela UNESCO.
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