Conversa à luz das estrelas
«Deitar-se sobre o capim seco a olhar as estrelas é privilégio das gentes do campo. Nas cidades não existe esta possibilidade. Falta lugar cómodo e sobram as luzes que tiram nitidez ao firmamento. E a culpa é do homem que maltrata o chão onde pisa e tão pouco tem cuidado com o céu para onde olha. Devoro todas as notícias sobre a conquista do espaço e temo que algum dia até as estrelas se vão sujar ou vão desaparecer.
Está em execução o grande projeto de engenharia espacial que contempla a construção de um satélite artificial de grandes proporções, formado por módulos unidos entre si. Quando estiver terminada a Estação Espacial Internacional – ISS, teremos no espaço, sobre as nossas cabeças, uma pequena Lua artificial. Milhões de pessoas nunca ouviram falar disso e milhões não ligam importância ao assunto. Também há milhões que não têm, sequer, tempo para olhar para o Céu a observar as estrelas. Que pena. O espetáculo é belo e grátis.
Milhões de estrelas desfilam pelo firmamento, comandadas pelo Sol e pela Lua. Sei disto há muito tempo, desde a época em que o meu finado amigo Pedro Chimuko me explicou que a Lua é mais importante do que o Sol. Soba do Capoco, sanzala grande e antiga que faz parte da minha terra do Huambo, no interior de Angola, Pedro Chimuko era um filósofo amante da lógica e de raciocínios profundos: «A Lua – dizia – a Lua é muito mais importante do que o Sol, porque a Lua aparece de noite. Aparece quando faz mais falta, porque não há luz e as estrelas não chegam para alumiar o caminho».
Nesse tempo, no tempo destas conversas tranquilas de falar só por falar, tínhamos tempo para sentar-nos junto à fogueira do velho Sachitota Sacalumbo, o guarda-noturno da loja do siô Gomes da Xipipa. O guarda-noturno era uma instituição de segurança, garantida pelo porrinho, pouco sono, um kisanje e muita coragem. Sacalumbo era irmão do soba e era amigo do meu amigo Senhor Neves, o Neves e Sousa pintor, que o pintou em 1960, estampando a sua figura num belo quadro sobre tela, a que chamou «Quissange – Saudade Negra», retomando o título de uma poesia de Tomaz Vieira da Cruz:
«Não sei, por estas noites tropicais,
o que me encanta...
Se é o luar que canta
Ou a floresta aos ais.
Não sei, não sei, aqui neste sertão
De música dolorosa,
Qual é a voz que chora
E chega ao coração...
Qual é o som que aflora
Dos lábios da noite misteriosa!...
.................
Sentados sobre um tronco ou numa pedra ou até no chão, petiscávamos, com bolinhas de pirão enroscadas nos dedos, lascas de carapau seco, chamuscado nas brasas. Nesse tempo, as noites escuras eram, seguramente, mais escuras que hoje. Também as estrelas eram mais, muito mais numerosas do que agora e brilhavam com maior fulgor, porque o ar era transparente e puro, sem reflexos de contaminação.
De vez em quando, quando a conversa impunha uma pausa lógica e apetecida, o velho Sachitota agarrava no kisanje para dedilhar temas que improvisava, cantando em surdina qualquer lengalenga que o arrastava para longe, talvez para as estrelas. E todos nós, os que compartilhávamos esses serões de natureza e tranquilidade, seguíamos a melopeia e, com ela, o voo errante de alguma fagulha mais duradoira que se escorria da fogueira. Os olhos atrás dela terminavam, também, fixando o céu, a festejar as estrelas, vagueando pelo espaço como elas, cada um voando, mergulhando em secretos pensamentos.
Quando, surpreendente e veloz, uma estrela fugaz riscava a noite, calavam-se as vozes do kisanje e do tocador. Despertávamo-nos da magia da música e contemplávamos no céu esse rasto de luz, dominados pelo deslumbramento do espetáculo celeste. Era apenas um instante, o suficiente para devolver-nos ao mundo da nossa realidade simples e quotidiana. Unanimemente, reconhecíamos que já era tempo de dormir. Era tempo de despedir... – «fica bem.... estamos juntos...» – e partíamos, levando nos olhos pedacinhos de céu, para que se recostassem connosco, acompanhando-nos em sonhos inocentes e puros.
Sozinho, responsável pela sua missão de vigília, apostado em não dormir, o velho Sacalumbo acendia o cachimbo e com ele apertado nos lábios e nos dentes, retomava o kisanje e dedilhava a sua melopeia, infindável e seca, como o ruído seco das teclas de ferro do seu instrumento.
Cada um regressava a casa para dormir. A imagem do céu ajudava a preparar esse repouso dos homens. Não era como agora em que o céu já não é o céu de Deus e dos Anjinhos, do Sol, da Lua e das Estrelas, conspurcado como está de poeiras, fumos, lixos e satélites espias. Tenho a certeza de que se eu pudesse voltar a esse tempo, para sentar-me junto à fogueira e contar aos meus amigos Chimuko e Sacalumbo, acerca destas mudanças ditadas pela civilização, não me acreditariam. Seria uma conversa impossível. Chimuko ficaria calado de raiva e Sacalumbo já não teria matéria de inspiração para cantar, preocupados ambos com a vigilância dos satélites espiões, essa vigilância invisível mas inquietante, oculta durante o dia pelo Sol radioso, disfarçada na noite pelas estrelas semiapagadas.
Sei que não teria forma de convencê-los de que pés humanos haviam pisado alguma vez a Lua, visivelmente mais pequena do que os próprios pés humanos e sem poder mostrar-lhes, a olho nu, as pegadas que teriam deixado aí arriscados viajantes de estranhas máquinas voadoras. Pior ainda seria, de poder voltar a esse tempo e a esse lugar, sentar-me junto à fogueira e tentar explicar-lhes que existem homens corajosos, astronautas que caminham no espaço e que instalam entre a Terra e a Lua uma estação orbital, gigantesca, onde podem viver os cientistas, pessoas, enfim.
A pergunta deles seria tão lógica como a da importância da Lua que ilumina os caminhos nas noites escuras... - «Como é que caminham no ar, em cima de quê? Em cima do ar ou em cima das nuvens?» Seria ofensivo para eles e vergonhoso para mim, contar-lhes tanta mentira, tantas barbaridades sobre o que faz o homem atual, como, por exemplo, isso de caminhar no espaço e encher o Céu de lixo e de satélites, pequenas luas que nos espiam, que nos veem a toda a hora e que contam tudo o que veem...»
Falar-lhes da assombrosa tecnologia deste tempo atual não seria apenas acentuar as diferenças entre dois mundos. Essa verdade contada hoje à roda de uma fogueira no seio de África, seria tão inverosímil como há meio século atrás, uma inaceitável conversa à luz das estrelas. Porque, para todos, seria uma criminosa interferência no milenário diálogo entre os Sábios e os Astros e seria, sobretudo, subestimar o real e visível poder do Sol e da Lua sobre o Universo. Seria... seria uma falta de respeito. Seria menosprezar a sabedoria dos Mais Velhos que ainda hoje conversam à luz das estrelas...
AUXILIAR DE LEITURA
Kisanje – ou «quissange» - Instrumento musical africano. Piano primitivo.
Lengalenga – Repetição interminável das mesmas frases ou palavras.
Pirão – Papa dura de farinha de milho ou de mandioca.
Porrinho – Cacete com uma bola na ponta. Pau de atirar.
Sanzala – ou «senzala». Cidade. Aldeia africana.
Soba – Chefe africano. Cacique. Chefe de aldeia. Autoridade tradicional.»
Sebastião Coelho (1931-2002), jornalista angolano
A Estação Espacial Internacional (ISS), tal como foi fotografada pela tripulação do Endeavour em 30 de Maio de 2011 (Foto: NASA)
Comentários: 2
Maravilha de crônica! Tela linda! Primor de post, Fernando.
Girassóis nos seus dias.
Beijo
Cara Celina Dutra,
Esta e outras crónicas de Sebastião Coelho estão disponíveis em Mukandas do Kota Kandimba ("Cartas do Mais-Velho Coelho").
A Estação Espacial Internacional (ISS) é perfeitamente visível daqui da superfície do planeta Terra, ao princípio da noite, desde que ela esteja a passar por cima das nossas cabeças, o que nem sempre acontece. É um ponto muito brilhante que se desloca lentamente pelo céu. A ISS é o "astro" mais luminoso que há no céu noturno, a seguir à Lua. É mais luminoso ainda do que o planeta Vénus.
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