(de um quadro de Malangatana)
Povo, de ti canto o movimento
teu nome, canção feita de fronteiras
lua nova, javite ou lança
tua hora, quissange em trança
Do longo longe do tempo
arde minha flecha, meu lamento
minha bandeira de outro vento
aurora urdida nos lábios de Zumbi
De ti guardo o gesto
as conversas leves das árvores
a fala sábia das aves
o dialeto novo do silêncio
e as pedras, as palavras do medo
os olhos falantes da mata
quando a onça posta a sua arte
nos fita, guardada em sua mágoa.
De ti amo a denúncia felina
das tuas mãos quebradas ao presente
a dança prometida do sol
nascer um dia a Oriente
David Mestre (1948-1997), poeta angolano
Comentários: 4
"De ti guardo o gesto
as conversas leves das árvores"
Muito belo. (e chega-nos tão poucos poemas desse lado)
Caro Rogério Pereira,
Muito obrigado pela sua visita. O poema é muito belo, sem dúvida.
Eu estive uma vez pessoalmente com David Mestre, há muitos anos já. Tivemos uma longa conversa, que durou várias horas, juntamente com mais duas ou três pessoas. A impressão que ele me deixou foi a de que ele era um homem dotado de um enorme idealismo e de uma extraordinária generosidade. Por exemplo, David Mestre combateu pela sua pátria contra as tropas sul-africanas invasoras. De tal modo o fez que um jornal de Lisboa chegou a publicar uma notícia sobre a sua suposta morte no sul de Angola. David Mestre (que tinha nascido em Loures, mas fora para Angola com menos de um ano de idade) respondeu à "notícia" com o seguinte poema:
Portugal Colonial
Nada te devo
nem o sítio
onde nasci
nem a morte
que depois comi
nem a vida
repartida
pelos cães
nem a notícia
curta
a dizer-te que morri
nada te devo
Portugal
colonial
cicatriz
doutra pele
apertada
Encontrei ainda no blogue Ma-schamba o seguinte poema, que o grande José Craveirinha escreveu e lhe dedicou:
Delito
(Ao David Mestre)
O delito
imperdoável dos genuínos poetas
é não serem amordaçáveis
Porque
mesmo depois do seu homicídio
o defeito deles é terem na poesia
a bater os pulsos em cada verso
a verdadeira pátria insilenciável
em vez da vida.
Belíssimo poema! Ricas explicações com mais lindos poemas. Obrigada!
Girassóis nos seus dias. beijos.
Muito obrigado por mais esta sua visita, cara Celina.
O poema de José Craveirinha pode dar a impressão de que foi escrito após a morte de David Mestre e que este teria sido assassinado. Tal não é verdade. O poema foi escrito quando David Mestre ainda estava vivo. A sua morte deveu-se a um acidente vascular cerebral, se não me engano.
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