17 novembro 2014

Um notável matemático deixou-nos

Paulus Gerdes (1952-2014), matemático moçambicano (Foto de autor desconhecido)

Muita gente pensará que as expressões "África a sul do Sahara" e "Matemática" são incompatíveis, partindo do princípio de que os povos desta vasta região de África não possuem conhecimentos próprios no domínio da Matemática, assim como nunca contribuíram em nada para esta ciência.

Nada mais errado, como o demonstrou um notável matemático, de seu nome Paulus Gerdes, que investigou de forma aprofundada a matemática subjacente aos desenhos e motivos geométricos feitos pelos povos africanos negros. A obra de Paulus Gerdes, neste domínio, é de referência obrigatória para todos quantos se debruçam sobre o domínio da Etnomatemática. Ele foi uma autoridade de nível mundial neste ramo da ciência.

Paulus Gerdes nasceu em 1952 na Holanda, no seio de uma família holandesa, mas radicou-se em África e em África morreu, com a nacionalidade moçambicana por naturalização. Este europeu pelo nascimento e africano pelo coração faleceu no passado dia 10 de novembro em Joanesburgo, um dia antes de completar 62 anos de idade, e o seu funeral teve lugar na cidade de Maputo.

A obra deixada por Paulus Gerdes é notável, tanto no ensino como na investigação. No campo do ensino e na sua qualidade de professor catedrático, Paulus Gerdes era, à data do seu falecimento, presidente da comissão instaladora de uma nova universidade pública no norte de Moçambique: a Universidade Lúrio, com polos em Nampula, Cabo Delgado e Niassa.

No domínio da investigação científica, para se ficar com uma pequena ideia da qualidade do trabalho desenvolvido por Paulus Gerdes ao longo da sua vida, reproduzo a seguir uma passagem sobre os desenhos na areia sona, que traduzi para português, de uma sua comunicação intitulada "Ethnomathematics as a new research field, illustrated by studies of mathematical ideas in African history", a um congresso denominado "New Trends in the History and Philosophy of Mathematics".

Um exemplo de estudo histórico-etnomatemático é a minha tentativa de analisar e reconstituir a tradição sona. Esta tradição desenvolveu-se entre os Quiocos (Cokwe) do nordeste de Angola e povos relacionados. A cultura quioca é bem conhecida pela sua arte decorativa, que vai desde as esteiras e cestos entrançados, trabalhos em ferro, cerâmica, escultura e gravura em cabaças até às tatuagens, pinturas nas paredes das casas e desenhos na areia chamados "sona" (singular: "lusona"). Durante os ritos de iniciação, cada rapaz aprendia o significado e a execução dos sona mais fáceis. Os especialistas em desenho (akwa kuta sona) transmitiam os sona mais complicados aos seus descendentes do sexo masculino. Estes especialistas em desenho eram ao mesmo tempo contadores de histórias, que usavam os sona como ilustrações, com referência a provérbios, fábulas, jogos, enigmas, animais. Os desenhos são executados da seguinte maneira: depois de limparem e alisarem o chão, os especialistas em desenho marcam primeiro com as pontas dos dedos uma rede de pontos equidistantes; a seguir desenham uma linha que envolve os pontos da rede. Os especialistas executam os desenhos rapidamente. Uma vez traçados, os desenhos são geralmente apagados de imediato.

A figura 1 apresenta alguns exemplos de sona. O tráfico de escravos, a penetração e a ocupação colonial provocaram um declínio cultural e a perda de muitos conhecimentos sobre os sona. Com base numa análise dos sona relatada por missionários, administradores coloniais e etnógrafos, tentei contribuir para a reconstrução dos elementos matemáticos na tradição sona. Como os exemplos da figura 1 sugerem, a simetria e a unilinearidade desempenhavam um importante papel como valores culturais: a maior parte dos sona quiocos são simétricos e/ou unilineares. Unilinear significa composto por uma única linha; uma parte da linha pode cruzar-se com outra parte da linha, mas uma parte da linha não pode nunca tocar numa outra parte.

Figura 1 - Exemplos de sona simétricos e unilineares

Os especialistas em desenho desenvolveram toda uma série de algoritmos geométricos para a criação de desenhos unilineares e simétricos. A figura 2 mostra dois sona unilineares que pertencem à mesma classe, no sentido em que, embora as dimensões das grelhas subjacentes sejam diferentes, ambos os sona são desenhados através da aplicação do mesmo algoritmo geométrico.

Figura 2 - Dois sona desenhados com o mesmo algoritmo geométrico

Os especialistas em desenho também inventaram várias regras para construir sona unilineares. A seguir apresenta-se um primeiro exemplo. A figura 3 mostra três sona unilineares. Eles são semelhantes entre si: cada um deles apresenta um desenho básico de forma triangular. Eu suponho que os especialistas em desenho que inventaram estes sona começaram provavelmente com padrões triangulares e transformaram-nos em padrões unilineares com a ajuda de uma ou mais voltas amplas (ver o exemplo na figura 4). Os padrões unilineares assim obtidos foram topologicamente adaptados (talvez mais tarde por outros especialistas) de maneira a poderem exprimir as ideias que os desenhadores pretendiam transmitir através deles.

Figura 3 - a) Uma águia transportando uma galinha; b) Uma pessoa morta de cansaço; c) Uma ave thimunga voando

Figura 4 - Transformação de um desenho triangular num desenho unilinear

Os especialistas em sona também descobriram várias regras para encadearem sona unilineares uns nos outros, no sentido de formarem sona unilineares maiores. A figura 5 mostra um exemplo do uso de uma regra de encadeamento: indica como o aspeto do desenho unilinear da figura 5c pode ser explicado com base na unilinearidade dos dois padrões da figura 5a e a forma como eles foram encadeados um no outro (ver figura 5 b).

Figura 5 - Exemplos da aplicação de uma regra de encadeamento

A unilinearidade do lusona da figura 6a pode ser explicada com base em outra regra de encadeamento: se nós juntarmos grelhas quadradas (no exemplo: duas grelhas com as dimensões 2x2) a um retângulo cujas dimensões são primas entre si (no exemplo: 3x5), então a grelha resultante permite um desenho unilinear, se aplicarmos o mesmo algoritmo geométrico que foi usado na figura 6b, com uma grelha retangular com as dimensões 3x5 (algoritmo da 'esteira entrançada diagonalmente').

Figura 6 - a) Representação de um macaco-cão; b) Estrutura da grelha

Enquanto analisava e reconstruía elementos da tradição sona, descobri que foram descritos bastantes sona que claramente não se conformam com os valores culturais da simetria e da unilinearidade. Por vezes a simetria ou a unilinearidade foram quebradas com vista a dar ao desenho um significado específico (a figura 7 dá um exemplo).

Figura 7 - Lusona representando 'kilu' ou 'kalamba', o pensador (unilinear, mas não simétrico)

Muitas vezes parece que nos deparamos com enganos ou erros. A figura 8a dá um exemplo de um lusona reproduzido com erros e a figura 8b o desenho reconstruído sem erros. Os especialistas em desenho podem ter cometido alguns destes erros porque já eram idosos quando foram entrevistados. Disseram que quando eram novos tinham sido muito melhores 'akwa kuta sona'. Podemos estar perante erros de transmissão do conhecimento sona de uma geração para a seguinte ou então perante um engano por parte do entrevistador, que pode ter tido pouco tempo para fazer as suas cópias, já que os especialistas apagam os seus desenhos logo que acabam de contar a história. O apagamento era uma forma de proteger o seu saber, a fim de conservar o seu monopólio sobre o saber sona. Também podemos estar perante uma outra razão provável para cometer erros na ilustração dos sona: uma forma de resistência cultural; os especialistas cometeriam erros conscientemente para enganar o entrevistador — o branco, associado ao tráfico esclavagista, à administração colonial e ao cristianismo —, e assim protegerem o seu saber secreto. No caráter secreto e no monopólio da tradição sona está também uma explicação para a sua gradual extinção: logo que um especialista em desenho era capturado como escravo, o saber desaparecia da sua comunidade; um pouco deste saber pode ter sobrevivido de uma forma ou de outra no 'Novo Mundo'. Em 1997, o autor teve a oportunidade de tomar conhecimento da sobrevivência de um desenho do tipo sona nos Estados Unidos da América. A figura 9 apresenta um desenho na areia que me foi feito por uma senhora que cresceu em Greenwood, Mississipi, que fica no Delta, próximo de Greenville. Ela aprendeu este e outros sona com Mary Reaves — de ascendência africana, nascida há quase cem anos — que foi sua enfermeira (Susan Enger, comunicação pessoal, 1997).

Figura 8 - a) Lusona reproduzido, representando uma leoa com as suas duas crias. O desenho não é simétrico nem unilinear; b) Desenho reconstruído simétrico e unilinear (as caudas são acrescentadas no fim)

Figura 9 - Um desenho do tipo lusona — que sobreviveu ao tráfico de escravos — nos EUA

(...)

Vários livros escritos por Paulus Gerdes podem ser descarregados gratuitamente e de forma completamente legal, em formato digital PDF. É a própria editora que os disponibliza. Quem estiver interessado, pode dirigir-se a este endereço: http://www.etnomatematica.org/home/?p=4473.

Comentários: 2

Anonymous Kumbuja escreveu...

Parabéns pelo seu trabalho, fantástico blog.

18 novembro, 2014 06:11  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Muito obrigado pelas suas amáveis palavras. Procuro fazer o melhor que posso e sei. Volte sempre que puder.

19 novembro, 2014 03:05  

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