A bicicleta que tinha bigodes
– Os sapos têm alma?
A AvóDezanove sorriu e esperou. A Isaura olhou para ela esperando uma resposta que nunca veio.
– Também queria agradecer o camarada motorista "9", quer dizer, "10", por ter aceitado assim mudar de nome na conta da morte do sapo. E pronto, também isto não é nenhum jogo de futebol – a Isaura sorriu – não precisa demorar 90 minutos. Obrigada a todos.
Escapámos quase bater palmas, mas não se podia. Cada um foi para a sua casa. Ficaram os miúdos. Os miúdos são sempre os últimos a querer ir embora.
– Isaura, se tu quiseres – falou o JorgeTemCalma – um primo meu, de Benguela, mora perto de um rio. Lá tem bué de sapos e são bem grandes. Posso pedir ao meu pai para trazer um de lá. Só não sei se sapo de rio sabe viver aqui na nossa cidade de Luanda...
– Jorge, tem calma e não fales à toa.
– Não fales tu à toa – a Isaura disse. – Obrigado, Jorge, mas acho que não. Aqui em Luanda estão a atropelar muito, é melhor cada sapo ficar na sua província.
O JorgeTemCalma disse que tinha que ir embora porque senão iam lhe ralhar. Olhei de novo para os capins da lagoa: os pirilampos tinham começado a piscar de novo.
– Adoro pirilampos – a Isaura falou.
– Adoro estrelas quando o céu tá todo escuro – eu falei.
– É a mesma coisa.
– Isaura – comecei.
– Diz.
– Desculpa só meter o assunto assim de repente em cima do enterro...
– Podes falar.
– Queria te perguntar se não queres me ajudar a ganhar a tal bicicleta do concurso. Se nós ganhássemos a bicicleta até podia ficar dos dois.
A Isaura sentou no chão.
– Esse concurso da Rádio Nacional?
– Sim, esse mesmo. Inventamos uma estória juntos e ganhamos a bicicleta. Fica dos dois.
– Isso não ia dar problemas?
– Não. A bicicleta fica contigo segunda, quarta e sexta. Depois trocamos, terça, quinta e sábado fica comigo.
– E domingo?
– Domingo fica também comigo.
– Porquê?
– Porque eu sou rapaz.
– E então?
– Nós gostamos mais de bicicletas que vocês.
– Não é verdade, desculpa lá. Eu também gosto de bicicletas.
– Então domingo emprestamos a bicicleta ao tio Rui.
– Boa ideia, ele também gosta de andar de bicicleta.
Sentei-me também no chão ao pé dela. Os pirilampos acendiam e piscavam muito.
– Estes pirilampos aumentaram a potência ou quê?
A Isaura riu.
– Não, acho que tá a ficar mais escuro. Temos de ir para casa.
– Então e a estória?
– Eu não tenho nenhuma boa ideia.
– Mas eu tenho.
– Para a estória? Então podes escrever e ganhar.
– Não, eu tenho uma ideia para conseguirmos uma boa estória.
– Não entendi.
– A caixa do tio Rui – falei baixinho.
– Shiuuu!, já te disse que isso é um segredo, não podes falar a ninguém nisso. Tu tinhas prometido.
– Só estou a falar contigo!
– Nem comigo. Um segredo é uma coisa de pensar, não se diz.
A Isaura levantou-se e foi a correr para a casa dela.
Ondjaki, escritor angolano, in A bicicleta que tinha bigodes, Editorial Caminho, Lisboa
Comentários: 1
Peço desculpa pelo longo lapso de tempo que decorreu desde a minha última postagem, mas estive fora de circulação. Para dizer a verdade, ainda estou. Fui submetido a uma intervenção cirúrgica e encontro-me neste momento a convalescer numa unidade hospitalar. Correu tudo bem.
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