15 fevereiro 2016

O Zambeze

(Foto de autor desconhecido)


O Zambeze é uma larga e majestosa fita de prata que separa a terra do céu. Uma grande cobra que vem de Angola e corre para o mar, para o fim do mundo. Da boca dessa cobra gerações e gerações de antepassados se despediram desta vida e penetraram nas brumas do além amarrados uns aos outros, e ainda bem, porque desta forma, muito juntos nos porões escuros dos barcos, ficava pouco espaço para os seus medos e terrores. E era muito mal feito esse sistema de levar as pessoas para a morte, para o espaço branco além das brumas, quando elas ainda estavam vivas e na força da idade. Melhor seria que as tivessem logo enterrado ali, convenientemente, seguindo os costumes que os deuses prezam. Assim, desta maneira, quantos ficaram órfãos à partida por não terem espíritos protectores dispostos a acompanhá-los naquela grande viagem sem regresso. E os espíritos que ousaram partir, fazendo da ligação aos protegidos um princípio primordial, perderam-se do outro lado das brumas quando os homens se tornaram defuntos, ficando a vogar sem abrigo terreno e sem saber o caminho do regresso. Melhor teria sido que os barcos que retornavam para buscar mais gente aproveitassem o espaço disponível para trazer de volta os espíritos perdidos ao seu lugar. Mas não, esses barcos chegavam vazios e em resultado de tudo isto ficaram os da terra sem ligação ao céu e os do céu a vogar por esse mundo largo, sem ligação à terra.

É o Zambeze essa grande estrada que flui para o mar. E flui com tal força, na sua correnteza, que levou essa gente toda como uma gigantesca carótida que expelisse o sangue todo da terra em golfadas borbulhantes e sucessivas. E ao fazê-lo, espalhou por esse mundo fora as histórias de nobreza desta terra — tornou-a conhecida nos quatro cantos do mundo através da imaginação fantasiosa daqueles que a deixaram. E os ouvintes estrangeiros, crendo ou não nesses delírios de verdade e de saudade, ouviram pelo menos mencionar o nome dessa terra e intrigaram-se.

Por isso, em números crescentes vieram homens brancos do outro lado do mar, contra o fluxo descendente e avassalador, e treparam por ali acima para chegar àquilo que erradamente chamaram o fim do mundo quando afinal não era mais que o princípio desse mesmo mundo: o ponto a partir de onde os mensageiros forçados foram enviados aos quatro cantos da terra a cortar cana (não há como negá-lo) mas, sobretudo, a cantar a sua terra como origem de todas as coisas e mais maravilhosa do que na realidade é, porque é sabido que a ausência e a distância realçam e inventam os méritos e atenuam ou apagam os defeitos.

E subindo o rio os homens brancos continuaram, como se viu, a enviar a carga humana para a foz, e dali para o outro lado do mar. (…)

João Paulo Borges Coelho, escritor e historiador moçambicano, in As Duas Sombras do Rio

Comentários: 1

Blogger Chama a Mamãe! escreveu...

Maravilha!

15 fevereiro, 2016 21:12  

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