Natal de camuflado
Natal em zala, Natal de camuflado e arma
ao alcance da mão, Natal com as constela-
ções voltadas ao contrário por cima da ca-
beça, Natal na grande catedral verde da
floresta com todas as portas abertas.
Natal de uma aliança a pesar toneladas
na mão esquerda, de vinte mil cordas aper-
tando lentamente a garganta, de uma gui-
tarra a não sei quantos biliões de anos-dor.
Natal transparente e puro e frágil como
os olhos de minha mãe, como as lágrimas
de minha mãe, como a recordação de minha
mãe.
Natal de uma senhora de presépio que eu
fiz, daquele mesmo pó que me entrou tantas
vezes nos pulmões, e era preciso molhar to-
dos os dias uma data de vezes, ir afagando
sempre com os dedos, para que não estalasse
antes do Natal.
Senhora que voltou a ser pó, pó na pista
de zala, no morro das pedras, em s. sebas-
tião, pó na picada de nambuangongo, a en-
trar nos pulmões de outros homens, também
de camuflado e arma ao alcance da mão,
cada um com vinte mil cordas apertando
lentamente a garganta, e uma guitarra, com
unhas de raiva, fazendo eco num poço sem
fundo dentro do peito.
José Correia Tavares, in Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial, de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi (Org.), Edições Afrontamento, Porto, 2011
Um recanto de Zala, quartel do Exército Português no coração da Guerra Colonial no norte de Angola, em julho de 1974 (Foto: Alberto Nogueira) |
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