16 março 2021

O príncipe que foi correr sua ventura


(Foto de autor desconhecido)

Havia numa terra um rei que tinha um filho, que não fazia senão pedir-lhe para ir correr o mundo; o rei por fim não pôde mais ter mão, e deu-lhe um grande saco de dinheiro para a partida. Depois de ter andado muito, foi dar a uma estalagem onde encontrou um outro viajante. Conversaram, mas o viajante perguntou ao príncipe se não gostava de jogar; daí a instante já estavam ferrados ao jogo. O viajante ganhou-lhe o saco de dinheiro, e não tendo mais que lhe ganhar, propôs-lbe que jogassem mais uma vez, e no caso do príncipe ganhar tornava a dar-lhe o saco de dinheiro, e no caso de perder o príncipe ficaria preso por três anos naquela casa, e o serviria como criado por mais outros três. O príncipe aceitou a proposta, jogou e perdeu. O viajante tomou conta dele, prendeu-o em uma loja, e deu-lhe pão e água de um dia para três anos.

O príncipe chorava a sua má cabeça; ao fim de três anos vieram soltá-lo, e ele pôs-se a caminho para ir para casa do viajante, que era rei, servi-lo como criado. Depois de ter andado muito, encontrou uma mulher com uma criancinha ao colo a chorar com fome. O príncipe ainda levava o resto de uma codinha de pão e um escorropicho de água e deu tudo à mulher. Ela em agradecimento disse-lhe:

— Olhe, santinho, vá você sempre andando, e quando lhe vier um cheiro muito grande, é porque está perto de um jardim que está no caminho; entre para dentro, e vá-se esconder ao pé do tanque. Então hão de vir três pombas tomar banho, e à última que se despir tire-lhe o vestido de penas e não lho torne a dar senão em troca de três cousas que ela lhe der.

Aconteceu tudo como a mulher lhe tinha dito; apanhou o vestido de penas da pombinha, e ela para o tornar a ter deu-lhe um anel, um colar e uma pena, dizendo-lhe:

— Quando te vires em alguma aflição e disseres: — «Valha-me aqui a pomba», hei de te acudir; eu sou a filha do rei que vás servir, que tem uma grande raiva a teu pai; e que te ganhou tudo ao jogo para dar cabo de ti.

O príncipe apresentou-se em casa do rei, que lhe deu logo esta ordem:

— Toma este trigo, este milho e esta cevada para semeares, contanto que eu amanhã coma pão destas três qualidades.

O príncipe ficou espantado, mas o rei não quis saber de explicações; foi ele para o seu quarto todo atrapalhado da sua vida, e pega na pena dizendo:

— Valha-me aqui a pomba!

A pomba apareceu, e ficou sabendo tudo; e ao outro dia trouxe-lhe as três qualidades de pão para o príncipe ir entregar ao rei. Quando o rei viu cumpridas as suas ordens, disse-lhe:

— Pois bem; já que foste capaz disto, vai agora ao fundo do mar buscar o anel que a minha filha mais velha lá perdeu.

Voltou o príncipe para o quarto e tornou a chamar pela pombinha; ela acudiu:

— Olha, amanhã vai para a praia e leva uma bacia e uma faca e mete-te num barco.

Assim fez; a pomba meteu-se com ele no barco e foi por esses mares fora. Já tinham andado muito, quando ela disse que lhe cortasse a cabeça, de modo que não caísse uma gota de sangue no chão, e a atirasse para o mar. Seguiu tudo à risca. Passado pouco tempo saiu do mar uma pomba com um anel no bico, largou-o na mão do príncipe e foi lavar-se no sangue que estava na bacia; tornou-se na cabeça de uma bela donzela e depois tornou a desaparecer. O príncipe foi entregar o anel ao rei, que ficou mais desesperado, e lembrou-se de lhe dar um maior trabalho:

— Hoje de tarde hás de sair no meu poldro, para o ensinares.

O príncipe foi para o seu quarto e tornou a chamar pela pombinha, que lhe respondeu:

— Olha, o meu pai quer ver se te mata por algum feitio; porque o poldro é ele mesmo, o selim é minha mãe, minhas irmãs são os estribos, e eu sou o freio. Não te esqueças de levar um bom cacete porque podes consolar-te com uma carga de pau neles.

O príncipe montou no poldro, moeu-o com pancadas, e tais coisas fez que quando recolheu a casa e foi dar parte ao rei que o poldro estava manso, achou o rei de cama todo em panos de vinagre, a rainha feita numa salada, as filhas derreadas, menos a mais nova. Nessa noite foi ela ter com o príncipe e disse-lhe:

— Agora, que estão todos doentes é que é boa ocasião de fugirmos; vai à cavalariça e apronta o cavalo mais magro que lá achares.

O príncipe caiu na asneira de aprontar o mais gordo. Quando se puseram a caminho, e ela viu o cavalo gordo ficou muito contrariada, porque este cavalo andava como o vento, e o magro andava como o pensamento. Mas sempre fugiram. De noite o rei precisou da filha para o virar, e chamou por ela; nada. A rainha, que era refinada bruxa, pescou logo que a filha tinha fugido com o príncipe, e disse ao marido que saltasse já fora da cama e que os fosse apanhar. O rei levantou-se a gemer com dores, foi á cavalariça e quando viu o cavalo magro ficou seguro de pilhá-los. Montou e partiu. A filha, que ia sempre desconfiada que dessem pela falta dela, avistou de longe o pai, e de repente transformou o cavalo em uma ermida, a si em uma santa e o príncipe em um ermitão.

Chegou o rei ao pé da capelinha, e perguntou se não tinha visto passar por ali uma menina com um cavaleiro. O ermitão levantou os olhos do chão e disse que por ali não passara viva alma. O rei foi-se embora aborrecido, e foi dizer à mulher que só tinha encontrado uma ermida com uma santa e um ermitão.

— Pois eram eles, disse a velha desesperada; se me tivesses trazido um bocadinho do vestido da santa ou um bocadinho de caliça da parede, tinha-os agora aqui em meu poder.

E tornou a fazer partir o velho no cavalo mais ligeiro que o pensamento. O velho foi avistado ainda de longe pela filha, que fez do cavalo um terreno, de si uma roseira carregadinha de rosas, e do príncipe o hortelão. Repetiu-se a mesma coisa; o velho virou para trás, mas a velha bruxa azoinava-o:

— Se me tivesses trazido uma rosa dessa roseira, ou um punhadinho de terra, já cá os tinha em meu poder. Mas deixa estar, que desta vez vou eu também.

Quando a menina avistou a mãe sentiu um grande medo, porque sabia o poder que tinha; apenas teve tempo de fazer do cavalo um poço fundo, de si fez uma eiró, e do príncipe um cágado. A velha chegou à borda do poço, e conheceu-os logo. Perguntou à filha se não estava arrependida, e se quizesse voltar para casa que lhe perdoava. A eiró dizia com o rabo que não. A velha disse ao marido que atirasse uma bota ao poço para trazer uma gota de água, porque só com isso ficava com poder para agarrar a filha. Quando o rei tirava a bota cheia de água, o cágado saltou para dentro dela e entornou-a toda; com a outra bota deu-se o mesmo caso.

Então a rainha muito zangada rogou ao cágado a praga que ele se esquecesse da princesa. Continuaram o seu caminho, mas a menina sempre muito triste. E quando o príncipe lhe perguntava o motivo da sua tristeza, ela respondia:

— É porque tenho a certeza de que me hás de esquecer.

Chegaram por fim à terra donde o príncipe era natural; deixou a menina em uma estalagem, e foi pedir ao pai licença para lhe apresentar a sua noiva. Com a alegria que teve de ver a família esqueceu-se da menina. O pai tratou de lhe fazer o casamento; quando a menina soube disto teve uma grande aflição e gritou:

— Valham-me aqui minhas irmãs.

Apareceram-lhe. A mais velha disse:

— Não te aflijas; tudo se há de arranjar. — E deu ordem à estalajadeira que quando passasse algum criado do rei a comprar aves, que fosse ao quarto da irmã e vendesse três pombinhas que estariam lá. Assim foi; o criado do rei comprou as três pombinhas, e como eram muito lindas foi mostrá-las ao príncipe.

O príncipe estava admirado, e quando ia pegar nelas uma saltou para cima da janela, e disse:

— Quando nos ouvir falar, ainda mais admirado há de ficar.

Outra saltou para cima de uma mesa, e disse:

— Vai falando, vai falando, que ele se irá recordando.

A pombinha que lhe tinha ficado na mão saltou-lhe para cima do ombro e perguntou-lhe:

— Veja, príncipe, se este anel lhe serve.

O príncipe viu que sim. Depois deu-lhe um colar, e também servia. Por fim deu-lhe a pena, e só quando leu o nome da pomba é que se tornou a lembrar, e então casou com ela.


Conto popular recolhido no Algarve. Contos Tradicionais do Povo Português, por Teófilo Braga (1843–1924)

Comentários: 2

Blogger Ricardo Santos escreveu...

Este conto popular obriga pelo menos a duas leituras, por ser um pouco confuso. É um conto de Teófilo Braga com muito imaginação e já pertence à ficção, digo eu !

19 março, 2021 20:49  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Eu posso estar muito enganado, mas parece-me que Teófilo Braga não terá feito mais do que coligir um vasto número de contos tradicionais portugueses e publicá-los em livro. Não terá sido ele quem os recolheu localmente. Quando muito, Teófilo Braga terá reescrito alguns, com vista a torná-los mais inteligíveis e/ou gramaticalmente corretos.

22 março, 2021 02:18  

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