05 março 2022

"Se a gente não aprender a pisar suavemente na Terra, o céu cai sobre a nossa cabeça" — Ailton Krenak



O índio brasileiro Ailton Krenak pintou a cara de preto enquanto discursava perante a Assembleia Nacional Constituinte em Brasília, no dia 4 de setembro de 1987, em representação dos povos indígenas do país. Com este seu discurso, Ailton Krenak conseguiu convencer os deputados a inscreverem os direitos inalienáveis dos índios nos artigos 231 e 232 da Constituição brasileira 

Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade. Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo, somos parte do todo. Isso talvez tire um pouco da vaidade dessa humanidade que nós pensamos ser, além de diminuir a falta de reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que fazem essa viagem cósmica com a gente.


Ailton Krenak, na conferência Ideias para adiar o fim do mundo, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 12 de março de 2019


Aqui, do outro lado do rio, há uma montanha que guarda a nossa aldeia. Hoje ela amanheceu coberta de nuvens, caiu uma chuva e agora as nuvens estão sobrevoando seu cume. Olhar para ela é um alívio imediato para todas as dores. A vida atravessa tudo, atravessa uma pedra, a camada de ozônio, geleiras. A vida vai dos oceanos para a terra firme, atravessa de norte a sul, como uma brisa, em todas as direções. A vida é esse atravessamento do organismo vivo do planeta numa dimensão imaterial. A vida que a gente banalizou, que as pessoas nem sabem o que é e pensam que é só uma palavra. Assim como existem as palavras “vento”, “fogo”, “água”, as pessoas acham que pode haver a palavra “vida”, mas não. Vida é transcendência, está para além do dicionário, não tem uma definição.


Ailton Krenak, A vida não é útil, Companhia das Letras, 2020


A proposta de desacelerar nosso uso de recursos naturais pode sugerir a ideia de adiar o fim deste mundo, mas, em alguns lugares, esse fim já aconteceu — ontem, hoje cedo, vai acontecer depois de amanhã. Alguém pode dizer: “Ah, mas isso é muito apocalíptico, ele está apavorando a gente!” Na verdade, estou dando notícias velhas. Inclusive nas religiões dos brancos há uma história de que, nos seus primórdios, essa humanidade se espalhou pelo planeta como uma praga. O Deus deles ficou muito bravo, pois estavam deixando o mundo muito sujo, e o destruiu com um dilúvio. Em seguida criou outro, novinho em folha, mas sua humanidade voltou a se comportar da mesma maneira caótica e predatória. Ou seja, na cosmovisão dos brancos também já houve um fim de mundo, eles olham para nós com estranhamento quando falamos disso porque não têm memória.


Ailton Krenak, A vida não é útil, Companhia das Letras, 2020


Nós estamos, devagarzinho, desaparecendo com os mundos que nossos ancestrais cultivaram sem todo esse aparato que hoje consideramos indispensável. Os povos que vivem dentro da floresta sentem isso na pele: veem sumir a mata, a abelha, o colibri, as formigas, a flora; veem o ciclo das árvores mudar. Quando alguém sai para caçar tem que andar dias para encontrar uma espécie que antes vivia ali, ao redor da aldeia, compartilhando com os humanos aquele lugar. O mundo ao redor deles está sumindo. Quem vive na cidade não experimenta isso com a mesma intensidade porque tudo parece ter uma existência automática: você estende a mão e tem uma padaria, uma farmácia, um supermercado, um hospital.

Na floresta não há essa substituição da vida, ela flui, e você, no fluxo, sente a sua pressão. Isso que chamam de natureza deveria ser a interação do nosso corpo com o entorno, em que a gente soubesse de onde vem o que comemos, para onde vai o ar que expiramos. Para além da ideia de “eu sou a natureza”, a consciência de estar vivo deveria nos atravessar de modo que fôssemos capazes de sentir que o rio, a floresta, o vento, as nuvens são nosso espelho na vida. Eu tenho uma alegria muito grande de experimentar essa sensação e fico procurando comunicá-la, mas também respeito o fato de que cada um tem a sua passagem por este mundo.


Ailton Krenak, A vida não é útil, Companhia das Letras, 2020


O pensamento vazio dos brancos não consegue conviver com a ideia de viver à toa no mundo, acham que o trabalho é a razão da existência. Eles escravizaram tanto os outros que agora precisam escravizar a si mesmos. Não podem parar e experimentar a vida como um dom e o mundo como um lugar maravilhoso. O mundo possível que a gente pode compartilhar não tem que ser um inferno, pode ser bom. Eles ficam horrorizados com isso, e dizem que somos preguiçosos, que não quisemos nos civilizar. Como se “civilizar-se” fosse um destino. Isso é uma religião lá deles: a religião da civilização. Mudam de repertório, mas repetem a dança, e a coreografia é a mesma: um pisar duro sobre a terra. A nossa é pisar leve, bem leve.


Ailton Krenak, A vida não é útil, Companhia das Letras, 2020


Citações retiradas do blog Templo Cultural Delfos, de Elfi Kürten Fenske

Comentários: 3

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Não é a primeira vez que oiço Ailton Krenak, mas nem por isso o ouvi menos atentamente.

Um abraço!

06 março, 2022 10:16  
Blogger Ricardo Santos escreveu...

A completa despreocupação e desrepeito da humanidade pelos povos que vivem (viviam!) em Paz pelo Mundo. O completo esquecimento do planeta Terra e das populações que se limitam a serem felizes com aquilo que a Natureza lhes deu !
Obrigado pelo alerta Fernando

06 março, 2022 12:39  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Portadores de uma filosofia de vida diferente da nossa, os indígenas brasileiros estão na linha da frente do combate à desflorestação da Amazónia e ao agravamento das alterações climáticas. Infelizmente têm vindo a perder esse combate e, com eles, perde a humanidade inteira, cujo futuro fica comprometido.

07 março, 2022 01:05  

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