01 setembro 2023

A morte do capitão


Cortejo fúnebre que antecedeu a trasladação para Portugal dos restos mortais do capitão José Manuel da Costa Martins, comandante da Companhia de Cavalaria 2635 do Batalhão de Cavalaria 2899 ("Ás de Espadas"), morto em combate no dia 27 de fevereiro de 1970, na região de Muié, Luchazes, Moxico, Angola (Foto: Manuel Casal Ribeiro)

Narrativa dos acontecimentos que conduziram à morte do capitão José Manuel da Costa Martins, feita pelo antigo primeiro-cabo enfermeiro Manuel Casal Ribeiro, no seu livro Memórias (na primeira pessoa).



Premonição I

Quando fui chamado pelo Dr. Hasse Ferreira, para me dizer que, no dia seguinte, sairíamos para uma operação em larga escala numa zona de risco (pois esta era, a nível de companhias, a que englobava cerca de 130 homens), eu perguntei-lhe: “Não é melhor levar dois ou três frascos de soro, para o caso de haver feridos?” “Não, não vale a pena, pois a evacuação dos feridos faz-se rapidamente e, quando um ferido não aguenta uma hora, é porque já não vale a pena ser socorrido.”

A flagelação

Saímos nessa madrugada, tomado antes o pequeno-almoço, em direcção ao rio Chicului, local que desconhecíamos totalmente. Andámos várias horas pela picada até chegarmos ao rio, seguindo a descoberto ao longo da margem. Ao entardecer, fomos alvejados, sem consequências. Pouco depois, começava o sol a pôr-se, parámos para passar a noite, em terreno descoberto.

Premonição II

No dia seguinte, o grupo do capitão, em que eu também estava inserido, passaria para a frente, enquanto outro pequeno grupo seguiria pelos lados, naquilo a que nós chamávamos de “bater mato”. Dirigi-me ao capitão e perguntei-lhe se não seria melhor eu mudar de grupo, para ficar mais resguardado, pois era o único enfermeiro: no caso de haver feridos e eu fosse um deles, não poderia valer-lhes. Respondeu-me que não, porque não ia acontecer nada.

O certo é que permanecemos junto ao rio até depois das 10 horas.


A emboscada

Embrenhámo-nos no mato seguindo por um trilho e, cerca de 15 minutos depois, ouvem-se os primeiros tiros. Todos ao chão, e a seguir ouve-se o rebentamento de uma granada, saltei para fora do trilho e, quando levo a G3 à cara e o dedo ao gatilho, noto que há alguns soldados a rastejar na minha direcção. Há gritos a chamarem-me, corro para a frente do grupo e vejo o capitão já a agonizar, pois tinha duas balas no peito, junto ao coração, e uma granada ofensiva que lhe tinha desfeito as partes e as pernas, um G.E. com um pulmão perfurado, feridos mais ligeiros e homens a chorar. Assim que me debruço sobre o capitão, as minhas primeiras palavras foram: “Filha da puta de guerra de interesses, que nunca mais acaba!” Abri o saco dos medicamentos e, enquanto tratava dos feridos, fui dando ordens para improvisarem macas, para o que dei o meu pano de tenda. Gritei ao Cavalinhos para pedir a evacuação dos feridos. Estava a tratar o G.E. — que, a seguir ao capitão, era o que estava em pior estado — quando me apercebi de que ele já tinha morrido. Regressámos de imediato para a clareira junto ao rio para evacuar os feridos nos helicópteros.

A evacuação

Já na clareira, e com a segurança montada, esperámos pelo helicóptero. Constatei, então, e definitivamente, que o capitão já morrera, mas o nosso (já falecido) Alferes Girão veio chamar-me, dizendo que lhe parecia ter visto o capitão mexer-se. Fui com ele, descobri o capitão e disse-lhe: “Ò meu alferes não vê que o capitão está morto?!” Esta cena repetiu-se mais duas ou três vezes, ao Alferes Girão custava-lhe aceitar tão brutal acontecimento. O facto é que as horas foram passando e, de helis, nem ruído. O Alferes Canas disse-me que, quando os helicópteros chegassem, não divulgasse que havia mortos porque, senão, eles não os levariam, pelo que teríamos de carregá-los até ao quartel. Ao fim de quatro horas, um dos G.E.s aproximou-se de mim e disse-me que o G.E. tinha morrido. Fui com ele e constatei que assim era, o desgraçado agonizara mais de quatro horas. Instalou-se em mim uma tal revolta que, quando o heli pousou, eu levantei-me ao mesmo tempo que dele saía o piloto, um tenente, e gritei-lhe:

“Temos dois mortos e três feridos, como é? Só agora é que aparecem?!”

Diz-me ele: “Calma, nós vamos levar os feridos a Serpa Pinto e regressamos para levar os mortos ao quartel.” Como eu já tinha sido avisado pelo nosso Alferes, retorqui-lhe: “Um momento!” Dirigi-me aos nossos dois furriéis — creio que um deles era o Dias Pereira, que era aquele que estava em piores condições — e perguntei se não se importavam de esperar mais, talvez meia-hora, o que eles aceitaram de imediato. Virei-me para o Tenente e disse-lhe:

“Agora vai levar os mortos ao Muié e depois volta aqui para levar os feridos, senão não sai daqui ninguém”.

Foram mais ou menos estas as minhas palavras, que o piloto aceitou — levou o capitão e o G.E. para o quartel e regressou cerca de 30 minutos depois para levar os feridos.

O Cavalinhos

Depois de o helicóptero partir com os feridos, pusemo-nos em marcha, em direcção à picada, que ficava em frente a uma ponte destruída, sobre o Chicului. Parámos já a noite ia longa, para descansar, comer e encher os cantis com água. Estava eu sentado a abrir uma lata de conserva quando o Cavalinhos me vem pedir o cantil; eu disse-lhe que não, que me desse ele os cantis que tinha, pois eu é que devia tratar disso. Ele insistiu e eu entreguei-lhe o meu, e lá foram uns poucos buscar água. Pouco depois, ouviu-se um estrondo, a lata que eu tinha na mão voou para um lado e eu para o outro, à procura da G3, tiroteio infernal em todas as direcções. Eu nem sequer levei a mão ao gatilho, pois não se via nada, tal era a escuridão. Ouviam-se gritos vindos do lado do rio. O Cavalinhos tinha tropeçado numa armadilha e vinha ferido, não era grave, alguns estilhaços nas nádegas, que eu desinfectei como pude, à luz de isqueiros e por baixo de um pano de tenda. Esta situação veio atrasar a nossa saída daquele local, que estava prevista para a meia-noite, em cerca de duas horas. Quando nos pusemos a caminho do quartel, sempre à berma da picada, o Cavalinhos ia à minha frente e eu de vez em quando perguntava-lhe se queria parar para pedir a sua evacuação logo que rompesse o dia. Disse-me sempre que não, aguentando corajosamente as dores, debaixo de uma chuva diluviana. Um verdadeiro herói. Ao chegar à entrada do quartel, o Leonel dirigiu-se-me, perguntando: “Eh Casal, então?” Eu, que até aí me tinha aguentado, desatei num pranto convulsivo. O Leonel abraçou-me e levou-me para o nosso quarto, onde então, mais tarde e mais calmo, lhe contei o que se tinha passado.



Em complemento à narrativa do ex-primeiro-cabo enfermeiro Manuel Casal Ribeiro, acima reproduzida, transcreve-se a seguir o testemunho do antigo alferes miliciano José Reis.


A noite mais longa

Com os mortos e feridos já a bordo do Alouette do Tenente Antolin, que finalmente apareceu ao fim de uma longa espera de 5 horas, não é possível esquecer o desabafo do Furriel Dias Pereira que já a bordo do Helicóptero com uma mão totalmente esfacelada, dizia: - "Meu alferes, ganhe a sua guerra que eu já ganhei a minha!!!"

O rude golpe da morte do Cap. Costa Martins e do nosso guia naquela fulminante emboscada, a longa espera pelo apoio aéreo, deixava-nos uma dura tarefa pela frente por nos encontrarmos a mais de um dia de caminho a pé no regresso ao Muié, agravado pelo facto de estarmos perfeitamente controlados pelo IN ao fim de 5 horas no mesmo local.

A saída do Chicolui tornava-se pois muito perigosa e o perigo de novas emboscadas dava-nos que pensar.

Optámos por subir o rio a caminho da nascente sempre pela margem, com os morteiros afiados, aguardando o anoitecer e dando a ideia que continuaríamos nessa direcção, ao contrário do que seria o caminho natural pela perigosa picada directa para o Muié, que saía perpendicular ao rio.

Logo que anoiteceu, traçámos um plano que consistiu em acamparmos na chana, dando a ideia que ali ficaríamos até de manhã, facto que por certo o IN aproveitaria para nos emboscar na perigosa saída do rio ou mais à frente, sabíamos lá nós onde......

Sobre nós, noite cerrada, desabavam 4 ou 5 trovoadas a toda a volta e uma chuva persistente que não parava de cair. Por vezes parecia fogo de artifício, tornando aquela noite muito dura psicologicamente e uma iluminação sinistra depois de tudo o que se passou, e o que se seguiria.

O plano consistia em abastecermos de água ali mesmo e à meia noite de forma inopinada e fora da picada, mata dentro, subirmos a margem em direcção ao Rio Muié, que verificámos depois, estava a mais de um dia de caminho, caminho longo, onde não era possível abastecer de água.

Cada secção indicou um elemento para em grupo ir ao Rio Chicolui, ali bem perto, abastecer os cantis mesmo debaixo de trovoada, o dia seguinte ia ser muito duro.

Constituído o grupo, este lá foi no escuro trilho abaixo abastecer ao máximo os cantis. O silêncio individual era total por segurança e a atenção era dobrada, ninguém tinha sono, todos aguardavam naquele silêncio, apenas interrompido pela trovoada, que regressasse o pessoal da água.

Repentinamente ouviu-se uma grande explosão, todos “morremos” de preocupação, nem um tiro se ouviu, o silêncio só foi interrompido por um elemento que em corrida informou:

— O Cavalinhos rebentou uma armadilha que estava no trilho!!!

Regressado todo o grupo, debaixo de capas por forma a não sermos localizados, à luz de isqueiros, foram feitos os primeiros socorros, tínhamos perante nós o radiotelegrafista, com as costas crivadas de estilhaços e um longo caminho a percorrer.

Não podíamos ficar ali mais tempo!!!

A meia noite chegou e como previsto, avançámos. O Cabo Cavalinhos estoicamente suportando as dores, incorporou-se na coluna e mata dentro, subindo a margem, aproveitámos a frescura da noite para seguir no mais perfeito corta-mato, contando apenas a direcção da bússola que mais aqui ou ali iria dar ao Rio Muié, mas............ ele estava longe.

O Sol quando apareceu veio fortíssimo, e mesmo com todos os apelos à poupança de água, ao meio dia, já muita gente tinha o cantil vazio, depois, depois... até uma árvore queimada por uma faísca e que tinha água da chuva no tronco, mas... cheia de bichos, serviu para os mais aflitos.

Os comprimidos de cloro trataram os bichos......

O rio Muié, só foi alcançado no dia seguinte e tivemos que acampar ainda outra noite numa mata fechada com toda a gente exausta e onde o colchão foram raízes e mais raízes, a segurança a isso obrigou... FOI A NOITE MAIS LONGA.



GLOSSÁRIO:
G3 — Modelo de espingarda automática
G. E. — "Grupos Especiais", uma força paramilitar africana
Alouette — Marca de helicópteros
IN — Inimigo
Chana — Terreno plano e alagadiço

Comentários: 2

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Fico sem palavras...

Um abraço!

01 setembro, 2023 12:13  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Mesmo sem palavras, a Maria João disse muito. Pois eu tenho muitas palavras a escrever a respeito deste tema, mas muitas ainda ficarão por dizer.

Antes de mais nada, tenho que manifestar a minha maior admiração pelos enfermeiros militares que deram o corpo ao manifesto, como Manuel Casal Ribeiro. Os verdadeiros heróis da Guerra Colonial não foram os comandos, paraquedistas, fuzileiros, militares de Operações Especiais ou outros. Foram os enfermeiros, que partiam para o mato carregados como burros com uma bolsa de enfermagem que pesava como chumbo, porque estava carregada de frascos de soro, desinfetantes, pomadas, instrumentos cirúrgicos, ligaduras, injeções de morfina, soro antiofídico, comprimidos antipalúdicos e muitas coisas mais. Os enfermeiros iam assim carregados por montes e vales, dormiam no chão, comiam rações de combate, calcorreavam quilómetros e quilómetros aos tropeções e aos trambolhões durante dias a fio, juntamente com os seus camaradas operacionais. Arriscavam a sua vida tanto como estes ou mais ainda, porque tinham que tratar os feridos enquanto as balas zuniam e as granadas rebentavam à sua volta. Eles tinham, por exemplo, que estancar a hemorragia, limpar, desinfetar e ligar um coto, onde antes tinha estado um pé, enquanto os seus camaradas mais "valentões" desviavam o olhar para não desmaiarem.

De igual modo, quando, ao fim de uma longa caminhada de horas e horas, através de emaranhadas florestas virgens e de savanas abrasadas pelo sol, os militares em operações paravam para descansar, alimentar-se e dormir, o enfermeiro não descansava. Tratava então as pequenas mazelas dos seus camaradas: os arranhões, as picadas de insetos, as bolhas, as entorses, as distensões musculares, etc. Só depois de todos terem sido devidamente tratados e terem começado a abrir as conservas das suas rações de combate para comer, é que o enfermeiro começava a tratar das suas próprias mazelas, que também as tinha. Ele era o último de todos a descansar e a comer. E quando alguém fazia referência à sua enorme abnegação, o enfermeiro respondia com toda a candura: «Só faço a minha obrigação».

Eu já não tenho paciência para aturar as basófias dos ex-militares que pertenceram às tropas ditas especiais, fossem eles ex-rangers, ex-comandos, ex-isto ou ex-aquilo. Os verdadeiros heróis não foram eles; foram os enfermeiros de campanha.

02 setembro, 2023 18:19  

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