14 dezembro 2023

Eros e Psique


Psique e o Amor, pintura de François Gérard (1770–1837). Museu do Louvre, Paris, França
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Esta é uma história de amor que acaba bem. Foi pela primeira vez publicada por Apuleio, escritor e filósofo romano do séc. II, na sua obra Metamorfoses, à qual Santo Agostinho chamou O Asno de Ouro. Apuleio não inventou a história; limitou-se a passar a escrito um mito greco-romano previamente existente. Este mito, que ficou famoso a partir de então, é uma lição de amor, que serviu de inspiração a muitos artistas plásticos e ficou materializada em obras de arte cheias de doce sensualidade.

Psique (a quem os romanos chamavam Alma, em latim Anima) era uma jovem mortal, a mais nova e mais bela de três irmãs. A sua beleza era tanta, que vinham pessoas de muito longe para admirar a sua beleza e lhe traziam oferendas que, de outro modo, teriam sido deixadas nos templos dedicados a Afrodite (Vénus na mitologia romana), a mais bela de todas as deusas. Vendo que a beleza de Psique superava a sua própria, Afrodite ficou cheia de inveja e resolveu vingar-se da jovem.

Afrodite chamou o seu filho Eros (Cupido para os romanos), cujas setas douradas tinham o condão de provocar o amor em quem acertassem. Afrodite queria que Eros fizesse Psique apaixonar-se por um monstro. Eros partiu e encontrou Psique adormecida. Quando tentava atingi-la com uma das suas setas, Eros espetou-se numa delas por acidente. Logo ficou apaixonado por Psique.

Eros e Psique, escultura de Bertel Thorvaldsen (1770–1844). Thorvaldsens Museum, Copenhaga, Dinamarca
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Por outro lado, nenhum dos muitos admiradores de Psique se atrevia a pedi-la em casamento, que assim permanecia solteira. Com o intuito de lhe arranjar um marido, os pais dela consultaram então o oráculo existente no templo de Apolo em Delfos. O deus Apolo, falando pela boca do oráculo, respondeu-lhes que Psique iria casar, sim, mas com um horrendo monstro. Recomendou que vestissem Psique como se fosse para um funeral e a abandonassem num alto rochedo, onde o seu futuro marido a iria encontrar. Tudo indicava, portanto, que Psique iria casar com um monstro.

Antes que o monstro chegasse ao rochedo para levar Psique como sua esposa, o deus do vento oeste, Zéfiro, soprou e levou Psique pelos ares até um determinado lugar, onde ela adormeceu. Quando acordou, Psique viu‑se no interior de um rico palácio, cheio de ouro e pedras preciosas, e ouviu uma voz dizendo-lhe que todas aquelas riquezas também eram suas. Esta voz era do dono do palácio, que acrescentou que ela não poderia ver o seu rosto nem saber o seu nome, sob pena de tudo perder, incluindo ele próprio, o seu esposo. Psique tomou um banho e comeu lautamente, enquanto uma lira invisível tocava belas melodias para ela. À noite, Psique foi visitada pela primeira vez pelo seu marido, que a tratou de modo imensamente gentil e carinhoso e fez com ela tudo o que fazem os amantes, mas sempre às escuras.

Decorreram algumas semanas. Psique passava os dias sozinha no palácio, rodeada de música e de variadas diversões, mas aspirava pela chegada da noite, em que se encontraria de novo com o seu terno mas desconhecido esposo. Para combater a solidão em que passava os dias, Psique pediu-lhe para ver as suas irmãs. Estas foram levadas ao palácio e ficaram com inveja de Psique por vê‑la rodeada de tantas riquezas. Quando as irmãs lhe perguntaram quem era o seu abastado marido, Psique acabou por reconhecer que nunca tinha visto o rosto dele e não sabia sequer o seu nome. As irmãs convenceram então Psique de que estava casada com um monstro e não com um homem normal. Incentivaram-na a verificar com os seus próprios olhos que espécie de monstro era ele.

Nessa noite, segurando uma candeia, Psique entrou no quarto onde o seu marido dormia para ver quem ele era. Ao aproximar-se da cama, picou-se numa seta, o que lhe provocou um movimento brusco. Uma gota de azeite ardente saltou da candeia e caiu sobre o corpo adormecido do marido. Este acordou e Psique descobriu então que estava casada com o próprio deus do amor, o belo e jovem Eros, filho de Afrodite, e não com um qualquer monstro. Ficou perdidamente apaixonada por ele, porque se tinha picado numa das suas setas.


Amor e Psique, pintura de Giuseppe Maria Crespi (1665–1747). Galerias dos Ofícios, Florença, Itália
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Como Psique não tinha cumprido a obrigação que lhe impusera, Eros partiu voando em direção à sua mãe, enquanto o palácio e todas as outras riquezas desapareciam por completo. Psique achou-se no meio de um campo, nas proximidades da casa onde as suas irmãs viviam. Psique contou a estas o que lhe tinha acontecido. As irmãs fingiram estar solidárias com Psique, mas tentaram repetir o que ela tinha feito, para que Eros também as tomasse como esposas. Subiram ao mesmo rochedo onde Psique tinha estado e saltaram, na expectativa de serem arrebatadas por Zéfiro e levadas para junto do deus do amor. Contudo, Zéfiro não soprou e elas morreram despedaçadas na base do penhasco.

Psique passou a vaguear pelo mundo enlouquecida, procurando em toda a parte o seu amado sem o conseguir encontrar. Condoída da sua sorte, a deusa Deméter (Ceres na mitologia romana) aconselhou Psique a dirigir-se à própria Afrodite, para lhe pedir perdão. Porém, em vez de lhe perdoar, Afrodite chicoteou-a, torturou-a e, a seguir, entregou-lhe alguns barris cheios de grãos de várias espécies de cereais misturados, impondo-lhe a obrigação de repartir os grãos em montes separados até ao fim daquele mesmo dia. Uma formiga ouviu o que Afrodite tinha exigido a Psique e, com pena desta, mobilizou todo o formigueiro para fazer a separação dos grãos por ela. Quando Afrodite verificou que a impossível tarefa tinha afinal sido cumprida a tempo, mais enraivecida ficou e impôs uma nova tarefa a Psique.

A nova tarefa imposta por Afrodite requeria que Psique se aproximasse de um rebanho de carneiros com lã de ouro, mas famosos pela sua violência, e tosquiasse a sua lã, que deveria ser entregue à deusa. Desesperada, em vez de cumprir a ordem de Afrodite, Psique lançou-se a um rio próximo para se afogar. O deus desse rio rejeitou-a e depositou-a suavemente na margem coberta de relva, enquanto lhe disse para esperar que os carneiros acalmassem e que o tempo arrefecesse, até poder tosquiá‑los sem correr muito perigo. E a tarefa foi cumprida.

Enraivecida, Afrodite impôs a Psique uma terceira tarefa. Desta vez, Afrodite entregou a Psique uma taça de cristal e encarregou-a de encher a taça com a negra água do rio Estige, um rio que atravessa o mundo inferior. Para conseguir chegar ao rio, Psique tinha que trepar uma escarpa muito perigosa, mas Zeus (chamado Júpiter pelos romanos) apiedou-se dela, mandou uma águia recolher a água do Estige e entregou a taça cheia a Psique. Psique levou a taça a Afrodite, que ficou ainda mais furiosa.

Afrodite concebeu então a tarefa que iria determinar a morte de Psique, tarefa esta que consistia em enviá-la ao Hades, o mundo dos mortos, de onde nunca pessoa alguma tinha voltado. Para isso, Afrodite ordenou a Psique que fosse ao Hades e trouxesse de lá um pouco da beleza de Perséfone (a quem os romanos chamaram Prosérpina), a deusa que presidia ao reino dos mortos, também ela muito bela. Sabendo que uma tal ordem significava a sua própria morte, Psique decidiu suicidar‑se, subindo a uma alta torre para se atirar lá do alto. Já que ela iria morrer, mais lhe valia morrer já.

A torre falou para Psique, aconselhou-a a não se matar e disse-lhe que havia um meio de ir ao Hades e voltar com vida. Para o conseguir, Psique teria que levar duas moedas e um pedaço de pão molhado com hidromel. As moedas destinavam-se a pagar a Caronte, o barqueiro que transportava os mortos para o Hades; uma moeda seria paga na ida e a outra no regresso. O pão molhado em hidromel seria dado a Cérbero, o cão de três cabeças que guardava a entrada no mundo dos mortos; metade do pedaço de pão seria dado à entrada e o restante seria dado à saída.

Para que Psique pudesse executar a sua tarefa, Afrodite tinha-lhe entregue uma caixa de ouro destinada a guardar o pedaço de beleza de Perséfone, caixa esta que deveria ser devolvida com o conteúdo pretendido no seu interior. Já no Hades, para surpresa de Psique, Perséfone aceitou de bom grado meter na caixa um pedaço da sua própria beleza e recomendou a Psique que nunca deveria abrir a caixa, fosse em que circunstância fosse. No entanto, a curiosidade foi mais forte e Psique abriu a caixa. Do interior desta, em vez do pedaço de beleza de Perséfone, saiu uma espécie de nuvem, que envolveu Psique numa grande escuridão e a fez adormecer tão profundamente, como se estivesse morta.

Cupido e Psique, pintura de Antoon van Dyck (1599–1641). Royal Collection, Londres, Reino Unido
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Enquanto tudo isto acontecia, Eros soube que era incansavelmente procurado por Psique e arrependeu-se de a ter abandonado. Partiu em sua busca e encontrou-a adormecida. Enternecido, deu-lhe um beijo e Psique acordou. Ambos levaram a caixa de ouro a Afrodite, que reconheceu que o amor de Psique era mais forte do que tudo no mundo e se arrependeu do que lhe tinha feito. Eros e Psique foram a seguir visitar Zeus, o mais poderoso de todos os deuses, que ordenou a Hermes (Mercúrio para os romanos), o deus mensageiro, que convocasse todos os deuses para uma assembleia no Olimpo. Reunida a assembleia, Zeus deu a beber a Psique uma taça de ambrósia, que é a bebida dos deuses, e Psique tornou-se uma deusa também. Ficou a ser a deusa da alma.


Primeira versão da escultura Psique Despertada pelo Beijo de Cupido, de Antonio Canova (1757–1822). Museu do Louvre, Paris, França
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Segunda versão da escultura Psique Despertada pelo Beijo de Cupido, de Antonio Canova (1757–1822). Museu do Hermitage, São Petersburgo, Rússia
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