02 dezembro 2023

Pauliteiros


Lhaço Padre António, pelos grupos de pauliteiros do Orfeão Universitário do Porto e da Associação dos Antigos Orfeonistas da Universidade do Porto

Quando entrei para a Universidade, inscrevi-me no Orfeão Universitário do Porto. Além do coro, que era a própria razão de ser daquela instituição académica, o Orfeão Universitário do Porto incluía uma tuna, uma orquestra de tangos(!) e vários grupos de danças regionais portuguesas. Se não me falha a memória, houve também quem quisesse criar um coro de cante alentejano, mas a ideia não foi posta em prática, não sei porquê.

Um dia, fui abordado por um colega do grupo de pauliteiros do Orfeão, que me pediu encarecidamente para aderir a este grupo, porque eles precisavam urgentemente de um elemento suplente e eu poderia ser esse elemento. Eles eram oito no total, que era o número mínimo de membros que um grupo de pauliteiros poderia ter, e se algum deles faltasse por qualquer motivo, o grupo inteiro não teria condições para atuar em público. Eu poderia então substituir o faltoso. Depois de muita insistência da parte deles, acabei por aceder.

No primeiro ensaio em que participei, os meus receios de levar umas pauladas nos dedos confirmaram-se, e de que maneira! Quando vemos um grupo de pauliteiros a atuar, não fazemos ideia da força que eles aplicam aos paulitos. Parece que estes só são encostados uns aos outros, mas não é nada assim. Eles são batidos com toda a força.

As danças dos pauliteiros (chamadas lhaços) são danças viris, com origem certamente em danças guerreiras ancestrais, e não simples "folclore". Nos lhaços, os paulitos são agarrados com toda a firmeza e batidos uns nos outros com a máxima força que for possível. Se, por azar nosso, algum colega falhar a pancada e nos acertar nos dedos, as dores que sofremos são verdadeiramente lancinantes. Vemos as estrelas, mais os planetas, as galáxias e sobretudo os buracos negros… Com a mão a latejar, ficamos com a nítida sensação de que nos partiram um ou mais dedos.

Está-se mesmo a ver o que aconteceu: no primeiro ensaio, alguém acertou nos meus dedos. Larguei os paulitos, agarrado à mão, e disse que nunca mais me apanhavam lá. Que arranjassem outro, que eu não estava no Orfeão para ficar com os dedos partidos. Era só o que faltava. Responderam-me que se eu me viesse embora, o grupo de pauliteiros do Orfeão corria sério risco de acabar, porque ninguém queria entrar nele. De uma maneira geral, os orfeonistas queriam ir para os grupos de danças do Minho, da Madeira, do Algarve e não sei de onde mais, mas para os pauliteiros ninguém queria ir. Afinal, acrescentaram os meus colegas, eu também lhes acertava nos dedos e eles aguentavam. A custo, mas aguentavam.

Vim-me embora com os dedos inchados e também com os pulsos desengonçados, por causa da força aplicada aos paulitos, a que eu não estava habituado. Porém, naquela idade, as mazelas passam depressa e… no ensaio seguinte apresentei-me de novo ao grupo. Se os meus colegas suportavam as pauladas nos dedos sem se queixarem, eu também haveria de ser capaz de suportar. Se, por um azar, algum deles me partisse um dedo, eu só tinha que atravessar a rua, pois a Urgência do Hospital de Santo António ficava mesmo em frente ao Orfeão! Os meus colegas fizeram uma grande festa por me verem lá de novo e fiquei no grupo de pauliteiros do Orfeão até ao fim do ano letivo, mas sempre como suplente, nunca tendo atuado perante o público, nem uma vez sequer! Sofri tantas dores para nada…

O vídeo que encima este post mostra, não um, mas dois grupos de pauliteiros atuando em simultâneo (o do Orfeão Universitário do Porto e o da Associação dos Antigos Orfeonistas da Universidade do Porto) e dançando um lhaço chamado "Padre António", que eu também ensaiei, ainda que em vão. Portanto, o que se observa no vídeo não são pauliteiros verdadeiros, dos de Miranda do Douro, mas sim "pauliteiros" à moda do Porto, como as tripas.

A coreografia destes "pauliteiros", idêntica à que eu próprio ensaiei, pode parecer correta, mas o que não estava correto, de maneira nenhuma, era a coreografia dos pés, que pura e simplesmente não existia. O ensaiador nunca nos ensinou o que teríamos que fazer com os pés e, por isso, andávamos de um lado para o outro sem preocupações de qualquer espécie a respeito dos pés.

Ora os lhaços mirandeses são danças e, por isso, os pés desempenham neles um papel muito importante, como em qualquer dança. No vídeo seguinte podemos observar o mesmo lhaço, "Padre António", mas dançado como deve ser, por pauliteiros a sério, neste caso os de Palaçoulo, localidade situada a 3 ou 4 km da vila de Sendim e onde se fabrica cutelaria de altíssima qualidade. Note-se que os pés dos pauliteiros de Palaçoulo estão mais tempo no ar do que no chão e saltam todos ao mesmo tempo. A leveza da dança dos pauliteiros de Palaçoulo contrasta manifestamente com os pés de chumbo dos "pauliteiros" do Porto.

Lhaço Padre António, pelo grupo de pauliteiros de Palaçoulo, Miranda do Douro

Eu naquele tempo tinha 17 anos, no máximo 18, e nunca tinha ido a Miranda do Douro, nem sabia como Miranda era. No entanto, aceitei fazer-me pauliteiro, ainda que falhado. Só muitos anos mais tarde é que visitei Miranda do Douro pela primeira vez e apaixonei-me logo pela cidade e pela sua região, talvez por conta das cacetadas que levei nas mãos… Voltei lá várias vezes, percorri a Terra de Miranda desde S. Martinho de Angueira e Constantim até Bemposta e Algoso, comi a famosa posta mirandesa no restaurante da Gabriela, bebi o excelente vinho Pauliteiros que por aqui não se encontra à venda em lado nenhum, etc. Os mirandeses que me desculpem. Não tenho quaisquer laços familiares com Miranda do Douro, mas sinto-me um pouco mirandês também.

Comentários: 2

Blogger Isabel escreveu...

Gosto muito de ver os Pauliteiros, e ao vivo deve ser bem mais bonito.

Fartei-me de rir a bom rir, com a sua descrição da sua tentativa (falhada) de ser pauliteiro! É que foi mesmo cómico a contar!

Valeu a pena vir aqui, ver os pauliteiros e ler a sua história, contada de forma engraçadíssima.

Uma boa semana:))

03 dezembro, 2023 18:14  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Cara Isabel,

Muito obrigado pela sua visita. Ainda bem que gostou. O que mais me admira, ainda hoje, é o facto de eu ter conseguido passar a suportar as dores causadas pelas ocasionais pauladas nos dedos. Parece que o nosso cérebro consegue fazer um milagre, quando fazemos algo de que gostamos muito. «Quem corre por gosto não cansa», diz o povo. Não é completamente verdade, sempre "cansa" qualquer coisa, mas o que é um facto é que aguenta muito mais do que aguentaria se não gostasse do que faz. Nós vemos os pauliteiros dançar, notamos que eles gostam de fazer aquilo e, em resultado disso, permanecem impávidos durante o tempo todo, como se nunca os magoassem.

06 dezembro, 2023 02:11  

Enviar um comentário