08 junho 2024

A bilha de água


Esta é a bilha da capela de São Jorge (Foto: Rui Pedro da Costa Tirá)

Uma das mais antigas recordações que eu guardo da minha infância diz respeito a uma bilha de barro. Viajava eu do Porto para Lisboa, provavelmente no carro do meu avô materno, quando a meio da viagem alguém, que também ia no carro, apontou para uma bilha que estava num nicho de uma capela situada na beira da estrada e disse: «Aquela bilha está ali desde a batalha de Aljubarrota, cheia de água para matar a sede a qualquer pessoa que vier a passar».

Mais tarde, quando eu já andava na escola primária, encontrei a história da bilha num livro de leitura, já não me lembro de que classe. Associei-a imediatamente à bilha que tinha visto antes, e estava certo.

Os anos foram-se passando e uma vez (já era eu que conduzia o meu próprio carro), ao passar por Aljubarrota, lembrei-me da bilha. Perguntei a um habitante local se a bilha ainda existia. Respondeu-me ele: «Existe, existe. Está em São Jorge, perto daqui. A bilha ainda lá está». Explicou-me como haveria de chegar à bilha e lá fui. São Jorge é uma povoação situada à margem da Estrada Nacional n.º 1, a antiga estrada Lisboa–Porto, mas a capela já não se encontra à face da estrada. Não foi a capela que mudou de lugar, foi a estrada, que agora passa cem metros mais ao lado, deixando a capela livre de trânsito.

A batalha de Aljubarrota chama-se assim, porque certamente Aljubarrota era o nome da povoação que ficava mais próxima do descampado onde se travou a batalha. Em rigor, foi em São Jorge que a batalha aconteceu, e não em Aljubarrota propriamente dita. É por isso que é em São Jorge que está o Centro de Interpretação da Batalha de Aljubarrota e, nas suas proximidades, fica a capela que tem a bilha. Esta capela terá sido mandada construir por D. Nuno Álvares Pereira no exato local onde ocorreu o sangrento confronto, mas poucos vestígios restam nela da sua traça original. Aparentemente, é uma banal capela, idêntica a muitíssimas outras, e sê-lo-ia de facto se não houvesse uma bilha de barro colocada num nicho existente na sua fachada principal. A esta bilha está associada uma lenda, a qual diz o seguinte:

A Batalha de Aljubarrota travou-se em 14 de Agosto de 1385 entre o exército de D. João I de Portugal e o rei de Castela, num dia de calor abrasador.

A batalha tinha sido decidida pelo rei de Portugal e D. Nuno Álvares Pereira, o Condestável, contra a vontade da maioria da nobreza e do exército. A principal razão era a desproporção das forças: trinta mil castelhanos contra sete mil portugueses.

O auxílio esperado de Inglaterra não viria a tempo de evitar um eventual cerco à cidade de Lisboa. Era melhor morrer com honra do que a humilhação da fuga. No dia da batalha encontravam-se os exércitos frente a frente, com o sol a queimar o ar e a sede a começar a torturar os soldados portugueses.

O Condestável temia mais a sede que o exército inimigo e incumbiu Antão Vasques de procurar água, uma tarefa difícil dada a secura dos regatos. Mas por S. Jorge tudo era possível! Antão Vasques em vão procurou água e já desesperado desceu do cavalo e ajoelhou-se na terra poeirenta e pediu ao seu anjo da guarda o impossível.

No mesmo instante, surgiu uma camponesa com uma bilha de água que quanto mais dela se bebia mais de água se enchia como se de fonte inesgotável brotasse. Uma água que saciava a sede e renovava as forças e o espírito.

Os castelhanos atacaram, certos de encontrar os soldados enfraquecidos pela espera e pela sede. Mas os sete mil portugueses aguentaram firmes e para grande surpresa dos castelhanos ripostaram com tal valentia que estes retiraram em debandada nesse dia de vitória para Portugal.

No lugar onde surgiu a jovem camponesa, mandou o Condestável erguer a capela de S. Jorge e ainda hoje lá está uma bilha de água para dar de beber a quem passe e tenha sede. S. Jorge ficou também como padroeiro do exército português.


A capela de São Jorge, com uma bilha de barro no nicho que está à esquerda da porta principal (Foto: Fernando Sebastião)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Comentários: 2

Blogger Isabel escreveu...

Interessante. Creio que já tinha lido algures a lenda, ou sobre ela.
Bom dia:))

12 junho, 2024 09:37  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Cara Isabel,
Há não sei quantos anos, cheguei a ver, na fachada de uma casa situada na rua principal da vila de Aljubarrota, a suposta pá com que a suposta padeira de Aljubarrota matou sete supostos castelhanos, que se teriam escondido no seu suposto forno de cozer o pão. Que grande forno ela tinha! Era tão grande que até cabiam sete homens lá dentro! Ora aqui está uma outra lenda, tão inverosímil ou mais ainda do que a lenda da bilha de água… Mas se não existissem lendas, a vida seria muito mais aborrecida.

13 junho, 2024 02:24  

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