30 março 2025

O pinto borrachudo


(Foto de autor desconhecido)


Era duma vez um pinto borrachudo que andava a gravetar em um monte de terra e achou lá uma bolsa de moedas e disse: — «Vou levar esta bolsa ao rei.»

Pôs-se a caminho com a bolsa no bico, mas como tivesse de atravessar um rio e não pudesse, disse:— «Oh rio! arreda-te para eu passar.» Mas o rio continuou a correr e ele bebeu a água toda.

Foi mais para diante e viu uma raposa no caminho e disse-lhe:— «Deixa-me passar.» Como a raposa se não movesse, comeu-a.

Foi andando e encontrou um pinheiro e disse-lhe:— «Arruma-te para eu passar.» Como ele não se arrumasse, engoliu-o.

Mais adiante encontrou um lobo e comeu-o; depois encontrou ainda uma coruja e fez-lhe o mesmo.

Chegado ao palácio do rei, disse que lhe queria falar e entregou-lhe a bolsa das moedas e o rei ordenou logo que o metessem na capoeira das galinhas e que o tratassem muito bem. O borrachudo, logo que ali se viu, começou a cantar:

— «Qui qui ri qui,
Minha bolsa de moedas
Quero para aqui.»

E como visse que lha não levavam, lançou a raposa que tinha comido, e ela comeu as galinhas todas.

Foram dar parte a el-rei do sucedido e ele ordenou que metessem o borrachudo dentro da copeira. Cumpriram-se as ordens, mas o borrachudo continuou sempre a cantar:

— «Qui qui ri qui, etc.»

Depois como lhe não levassem o dinheiro, lançou o pinheiro e os copos da copeira foram todos quebrados.

Então o rei ordenou que metessem o borrachudo na cavalariça, e ele sempre cantando:

— «Qui qui ri qui, etc.»

Lançou fora o lobo e o lobo comeu os cavalos.

O rei mandou então que o metessem no pote do azeite, mas ele lançou lá a coruja e ela bebeu o azeite.

Então o rei, não sabendo já o que havia de fazer, mandou que aquecessem o forno e que metessem lá o borrachudo; mas ele, mesmo dentro do forno começou a gritar:

— «Qui qui ri qui, etc.»

E foi lançando o rio que tinha bebido e já o palácio do rei estava quase a afundar-se quando o rei ordenou que fossem levar a bolsa de moedas ao borrachudo e o mandassem embora, antes que ele lançasse o rio todo.

E lá se foi embora outra vez o borrachudo com a bolsa de moedas no bico.



Conto popular recolhido em Coimbra por Adolfo Coelho (1847-1919)

28 março 2025

O primeiro faraó


As duas faces da chamada Paleta de Narmer, placa egípcia de siltito com formato de escudo, gravada com baixos-relevos em ambas as faces. Datada dos séculos XXXI ou XXXII antes de Cristo, mais século, menos século. Museu do Cairo, Egito
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A paleta de Narmer é uma placa de siltito (uma rocha sedimentar, cuja granularidade se situa entre a do arenito e a da argila) que contém, em ambas as faces, baixos-relevos egípcios datados de há cerca de 5100 anos!

Segundo a maioria dos egiptólogos, Narmer foi o primeiro faraó que reinou sobre todo o Egito, depois de fazer a unificação do Alto Egito, que vai desde Assuão até ao delta do Nilo, com o Baixo Egito, que corresponde à região do delta. A seguir a Narmer, sucederam-se dinastias e mais dinastias de faraós, até à conquista do Egito por Alexandre o Grande no séc. IV A.C.

O nome deste faraó, Narmer, está inscrito em carateres hieroglíficos em ambas as faces da paleta, no topo, entre duas cabeças de bovino, o que não deixa qualquer margem para dúvidas sobre quem é o homenageado. Numa face da paleta, Narmer está representado como soberano do Alto Egito (a figura maior na face reproduzida à esquerda) e na face oposta como soberano do Baixo Egito. As "coroas" correspondentes, que ele ostenta na cabeça, devem significar isto mesmo.

A paleta de Narmer é de uma extraordinária violência, apesar da sua inquestionável qualidade artística. No baixo-relevo da esquerda, vê-se Narmer a preparar-se para desferir um golpe na cabeça de um homem que, aparentemente, agarra pelo cabelo. Trata-se, certamente, da morte de um rei inimigo às mãos do novo faraó.

Na face contrária da paleta, que se vê à direita, a violência é ainda maior. Na verdade, ela chega a ser arrepiante. Ao cimo e à esquerda, vê-se Narmer com a "coroa" do Baixo Egito na cabeça, avançando para a direita, no que parece ser um desfile em sua honra, porque à sua frente seguem vários homens segurando em altos paus o que poderemos interpretar como uma espécie de estandartes. Ainda mais à direita, e aparentemente sem relação com o desfile, vemos dez corpos deitados e sem cabeça! Observando melhor, as cabeças deles estão lá, mas representadas entre as pernas dos corpos!

Narmer foi o primeiro faraó do Egito, numa longuíssima lista de muitos mais faraós. Esta paleta, feita em sua honra, mostra-nos que as suas conquistas e o seu poder foram feitos à custa da morte de outras pessoas. Na verdade, todos os impérios se ergueram à custa da morte de muitas pessoas. Foi assim há mais de 5000 anos e é assim agora: todos os impérios assentam sobre uma pilha de cadáveres.

As paletas eram placas de pedra originalmente usadas no Egito para conterem cosméticos, à semelhança das paletas dos pintores, que contêm tintas de várias cores e permitem a mistura das tintas. A paleta de Narmer, porém, não parece ter sido feita com este fim, mas sim como placa votiva ou ritual. É uma das mais antigas obras da arte egípcia de sempre e está magnificamente bem conservada. Foi encontrada no Alto Egito no séc. XIX e encontra-se presentemente no Museu do Cairo.

21 março 2025

Sousa Pinto


O Barco Desaparecido, 1890, óleo sobre tela de Sousa Pinto (1856–1939). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa
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Rapaz com um Barco, c. 1920, pastel sobre papel de Sousa Pinto (1856–1939). Museu Nacional Soares dos Reis, Porto
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No Campo, 1892, óleo sobre tela de Sousa Pinto (1856–1939). National Gallery of Victoria, Melbourne, Austrália
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O Estio, 1904, óleo sobre tela de Sousa Pinto (1856–1939). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa

Em 15 de setembro de 1856, nasceu em Angra do Heroísmo um menino a que foi dado o nome de José Júlio de Sousa Pinto. Este menino veio a ser um dos mais importantes pintores naturalistas portugueses.

Aos 14 anos de idade, Sousa Pinto mudou-se dos Açores para o Porto, onde frequentou a Academia Portuense de Belas Artes. Depois de concluir o seu curso com brilhantismo, em 1880 Sousa Pinto seguiu com uma bolsa de estudo para Paris, na companhia de Henrique Pousão, outro notável pintor português.

Na capital francesa, Sousa Pinto frequentou a Escola de Belas-Artes da cidade e o atelier de Alexandre Cabanel. Acabou por se estabelecer definitivamente em França, mas vinha com frequência a Portugal. Os seus quadros refletem, por isso, pessoas e paisagens de ambos os países. As pinturas feitas em França (a maioria na Bretanha) são mais sombrias e melancólicas; as pinturas feitas em Portugal são mais vívidas e luminosas. Faleceu em Pont-Scorff, na Bretanha, em 1939.

19 março 2025

Zeus ou Poseidon?


Deus do Cabo Artemísio, c. 460 A.C., bronze de autor desconhecido. Museu Arqueológico Nacional de Atenas, Grécia
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A forma de representar os deuses ditos pagãos varia extraordinariamente de cultura para cultura. Neste aspeto, a fascinante religião hindu, sobretudo, é extremamente exuberante na forma como representa os seus deuses: Brama com várias faces, Vishnu com vários braços, Ganesh com cabeça de elefante, etc. etc.

Na mitologia da Grécia antiga, muito pelo contrário, quase todos os deuses eram representados como homens e como mulheres, ainda que tivessem a capacidade de se transformar em outros seres. Por exemplo, Zeus transformou-se em águia para raptar o jovem Ganimedes e transformou-se em cisne para seduzir Leda. No entanto, na sua representação "normal", Zeus era mostrado com a forma de um homem.

Os deuses gregos não só eram mostrados com uma forma humana, mas também eram imaginados como tendo todos os defeitos e qualidades dos humanos. Eles não eram representados como seres infinitamente perfeitos, como acontece com o Deus único das religiões monoteístas. Zeus (mais uma vez), apesar de ser o mais poderoso de todos os deuses do Olimpo, era libidinoso, outros deuses eram vingativos, outros ainda invejosos, etc. Toda a gama de defeitos, de qualidades e de paixões dos humanos estava também presente nos deuses gregos. O que os distinguia dos humanos eram os seus poderes sobrenaturais e a sua imortalidade.

Como foi que os escultores gregos conseguiram representar deuses que eram humanos na forma, mas que apesar de tudo também eram divinos? Conseguiram-no, por um lado, pelo tamanho das estátuas que os representavam e que tinham dimensões superiores às de um ser humano. Por outro lado, conseguiram-no pela nudez total das suas esculturas masculinas, mas só das masculinas. As deusas, pelo contrário, quase nunca foram representadas completamente nuas. As poucas que o foram, como a Afrodite de Cnidos, foram representadas com uma mão a tentar pudicamente encobrir o sexo. A célebre Vénus de Milo também só se apresenta despida da cintura para cima.

Salvo no caso dos atletas, dos ferreiros e poucos mais, os homens da Grécia Antiga não andavam nus, ao contrário do que se possa pensar. Eles vestiam uma túnica curta no seu dia-a-dia. Já que assim era, então os deuses e os heróis gregos do sexo masculino não podiam ser representados da mesma forma, porque eles não eram homens comuns. Foram quase sempre representados em estado de total nudez, o chamado nu heroico.

O nu heroico serviu para realçar, em toda a sua plenitude, o poder, o vigor e a beleza do deus ou herói representado, mostrando-o como sendo alguém que estava acima do homem comum. Isto mesmo está expresso na admirável estátua acima reproduzida, que foi descoberta em 1926 no fundo do Mar Egeu perto do Cabo Artemísio, na ilha grega de Eubeia, e que representa um deus grego. É uma estátua de bronze, com cerca de 2,09 metros de altura, datada de 460 A.C., aproximadamente, e cujo autor se desconhece. Ela reflete, de modo incomparável, a determinação, a confiança e o vigor que só um deus ou um herói podia ter.

Mas afinal que deus é que esta estátua representa? Não se sabe. Tudo depende do que a sua mão direita se preparava para lançar, e que se perdeu. Se a sua mão direita tivesse um tridente, então a estátua representaria Poseidon, o deus dos mares. Se a sua mão direita empunhasse um raio, então a estátua seria de Zeus, o deus do raio e do trovão. A maior parte dos especialistas inclina-se para a possibilidade de esta estátua representar Zeus, mas ninguém tem a certeza de nada.

11 março 2025

Terras raras


Óxidos de terras raras em pó. A partir do montículo mais escuro (atrás, ao centro) e seguindo no sentido dos ponteiros do relógio, estão os óxidos de praseodímio, de cério, de lantânio, de neodímio, de samário e de gadolínio (o mais claro) (Foto: Peggy Greb)

As terras raras têm sido nos últimos tempos motivo para acaloradas discussões nas redes sociais e órgãos de comunicação. Há quem lhes chame "minerais raros", "materiais raros", "substâncias raras" e até já houve quem dissesse que eram "terrenos"! Há quem chame terras raras ao lítio, ao magnésio, ao titânio ou a qualquer outro elemento que julgue ser raro na Natureza ou que tenha importância estratégica.

A fim de ajudar a esclarecer esta questão, reproduz-se em seguida um texto explicativo do Prof. Galopim de Carvalho, publicado no blog Sorumbático.


Terras-raras é hoje um tema actualíssimo no discurso a circular nos media, sem que muitos dos que falam e escrevem e muitos mais dos que ouvem e lêem, tenham conhecimento do que são. Podia não ser assim, mas lamentável e tristemente é esta a nossa realidade. Há décadas que a nossa escola tem vindo a dar diplomas, nas não deu e continua a não dar cultura, seja humanística, seja a científica. É claro que há excepções, mas é da generalidade que estou a falar.

Acontece que, em finais do século XVIII, quer para os químicos como para os mineralogistas, os óxidos da maioria dos metais constituíam um grupo então designado por “terras”, “jorden”, para os suecos, “Erde”, para os alemães, “earth”, para os ingleses, e “terre”, para os franceses. Nós, os portugueses, continuávamos distraídos e já, nessa altura, éramos um povo atrasado, na cauda da Europa.

Face ao qualificativo “raras”, toda a gente será levada a pensar que se trada de substâncias que ocorrem em quantidades ínfimas, mas não é o caso. Por serem de difícil separação e por serem apenas conhecidos em minerais oriundos da Escandinávia, foram então (estamos a falar de finais do século XVIII, nos alvores da Química e da Mineralogia) considerados "raros", qualificação ainda hoje utilizada, apesar de alguns deles serem relativamente abundantes na crosta terreste. Todos eles são mais abundantes do que metais como a prata e o mercúrio, por exemplo.

Os metais destas “terras”, ou seja, destes óxidos, são, de acordo com o que a Química nos ensina, um grupo de 17 elementos da Tabela Periódica dos Elementos Químicos, dos quais, 15 pertencem ao grupo dos chamados lantanídeos, isto é, os que ali vão do lantânio ao lutécio, aos quais se juntam o escândio e o ítrio, todos eles elementos que ocorrem nos mesmos minérios e apresentam propriedades físico-químicas semelhantes.

As principais fontes com interesse económico para serem exploradas são alguns minerais relativamente raros (cujos nomes, para quem quiser saber, se indicam no final do texto) e certas argilas ricas em óxido de ferro, qualificadas de lateríticas.

Apesar da sua abundância relativamente elevada, como se disse atrás, os minerais das terras-raras são mais difíceis de explorar do que os minerais de metais como o cobre, o chumbo, o zinco e muitos outros. Esta dificuldade torna os metais das terras-raras relativamente caros, pelo que o seu uso industrial foi limitado até serem desenvolvidas técnicas de separação de alto rendimento, tais como, cristalização fraccionada, troca iónica, em meados do século XX.

As terras-raras têm aplicação em grande variedade de modernas tecnologias de ponta, mais que evidente interesse económico, justificativo duma procura que ressalta nos noticiários de todos os dias.

Para os geólogos, as terras-raras ajudam a conhecer as fontes magmáticas de certas rochas, permitem datar alguns minerais, entre os quais, certas granadas, através da abundância relativa do par neodímio/samário. Mas o seu interesse científico não fica por aqui. Alarga-se a determinados campos da Biologia, da Medicina e outros.

Estima-se que grande parte das terras-raras esteja localizada na Ásia, com especial destaque para a China.

Cientistas de finais do século XVIII, a que se refere o texto acima:

Karl Wilhelm Scheele, (1724-1786), químico sueco;

Torbern Olof Bergman (1749-1817), químico e mineralogista sueco;

John Lukas Woltersdorf (1721-1772), mineralogista alemão;

Joseph Priestley (1733- 1804), químico inglês);

Antoine Lavoisier (1743.1794,) químico francês.

Principais minerais com elementos da terras-raras:

monazite, bastnasite, xenothyme e loparite. Se quiser saber o que são, procure facilmente na net.

O grupo das terras-raras inclui os seguintes elementos químicos:

Lantânio, Cério, Praseodímio, Neodímio, Promécio,

Samário, Európio, Gadolínio, Térbio, Disprósio,

Hólmio, Érbio, Túlio, Itérbio, Lutécio, Escândio e Ítrio.

Nota: A Tabela Periódica é uma disposição sistemática de pouco mais de uma centena de elementos químicos, iniciada pelo químico russo Dmitri Mendeleev, em 1869.


A. M. Galopim de Carvalho


Tabela Periódica dos Elementos
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Permitam-me que acrescente algumas notas complementares ao texto do eminente Professor Galopim de Carvalho, acima transcrito.

O lítio, que é usado sobretudo para fabricar baterias de todos os tamanhos e feitios, não é uma terra rara. Se olharmos para a Tabela Periódica dos Elementos, veremos que o lítio está no canto superior esquerdo da tabela, logo abaixo do hidrogénio. É o metal mais leve que existe, mas não aparece em estado puro na Natureza, porque reage com a água e a atmosfera. É alcalino, tal como os outros metais situados na mesma coluna da Tabela Periódica: sódio, potássio, rubídio, césio e frâncio.

As terras raras ocupam a terceira coluna da Tabela Periódica e possuem propriedades muito diferentes do lítio. São terras raras o escândio, o ítrio e uma série de elementos chamados lantanídeos, já identificados pelo Prof. Galopim de Carvalho. Os actinídios (de entre os quais o urânio e o plutónio são os mais conhecidos) são elementos radioativos e, embora também figurem na terceira coluna da Tabela Periódica, não costumam ser chamados terras raras.

As aplicações que se podem fazer das terras raras são muitas e variadas, o que justifica plenamente o seu valor económico. Só para dar um punhado de exemplos, refiramos que o itérbio é usado no fabrico de lasers empregues nas redes óticas de telecomunicações; o érbio é utilizado no fabrico de amplificadores óticos, nomeadamente nos cabos óticos submarinos; o praseodímio e, sobretudo, o neodímio têm propriedades magnéticas extraordinárias e sem eles a mobilidade elétrica não seria possível; o neodímio, além do mais, é usado no fabrico de lasers; etc. Não admira, por isso, que as terras raras sejam objeto de enorme cobiça.

As terras raras não são raras; o que elas estão, é mal distribuídas pelo mundo. Por si só, a China detém mais terras raras do que todos os outros países do planeta somados! Podemos dizer, sem exagero, que neste domínio o mundo está praticamente dependente da China. A busca por fontes alternativas de terras raras que façam diminuir a dependência da China é, por isso, da maior importância. Os países devem diversificar as suas fontes de fornecimento seja do que for, para que não fiquem dependentes de um só país, por muito amigo que este país seja, mas este é um assunto que já é do domínio da geopolítica e não da ciência.

Produção global de matérias-primas críticas e estratégicas. Dados de 2023, de acordo com Sveriges Geologiska Undersökning, da Suécia. As terras raras estão identificadas com as iniciais HREE e LREE
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07 março 2025

Ah! Se pudésseis aqui ver poesia que não há!

Um retângulo oco na parede caiada Mãe

Três barras de ferro horizontais Mãe
Na vertical oito varões Mãe
Ao todo
vinte e quatro quadrados Mãe
No aro exterior
Dois caixilhos Mãe
somam
doze retângulos de vidro Mãe
As barras e os varões nos vidros
projetam sombras nos vidros
feitos espelhos Mãe
Lá fora é noite Mãe
O Campo
a povoação
a ilha
o arquipélago
o mundo que não se vê Mãe
Dum lado e doutro, a Morte, Mãe
A morte como a sombra que passa pela vidraça Mãe
A morte sem boca sem rosto sem gritos Mãe
E lá fora é o lá fora que se não vê Mãe
Cale-se o que não se vê Mãe
e veja-se o que se sente Mãe
que o poema está no que
e como se vê, Mãe
Ah! Se pudésseis aqui ver poesia que não há!

Mãe
aqui não há poesia
É triste, Mãe
Já não haver poesia
Mãe, não há poesia, não há
Mãe

Num cavalo de nuvens brancas
o luar incendeia carícias
e vem, por sobre meu rosto magro
deixar teus beijos Mãe, teus beijos Mãe

Ah! Se pudésseis aqui ver poesia que não há!

António Jacinto (1924–1991), poeta angolano e antigo prisioneiro do "Campo de Trabalho de Chão Bom", Tarrafal, Santiago, Cabo Verde

Pormenor de um portão de entrada para as celas do campo de concentração do Tarrafal, Cabo Verde (Foto: Jorge Jacinto)

04 março 2025

Concerto Os Amantes Borboletas


Concerto para violino e orquestra Os Amantes Borboletas, dos compositores contemporâneos chineses He Zhanhao e Chen Gang, interpretado pelo violinista chinês Lü Siqing e pela Orquestra Sinfónica Yomiuri Nippon, de Tóquio, dirigida pelo maestro Jian Wenbin, de Taiwan

Os Amantes Borboletas é o nome de um concerto para violino e orquestra sinfónica composto por He Zhanhao (autor do tema de abertura) e Chen Gang (autor do desenvolvimento do tema), quando ainda eram alunos do Conservatório de Música de Xangai, na China. A obra foi escrita na escala pentatónica chinesa, foi estreada em 1959 e, após ter estado proibida durante a Revolução Cultural (porque alegadamente promovia valores burgueses, ao fazer a exaltação de um amor individual), acabou por se tornar famosa e passou a ser tocada em toda a China e pelo mundo fora.

O nome do concerto, Os Amantes Borboletas, refere-se a uma lenda chinesa sobre o amor trágico de dois jovens apaixonados, Liang Shanbo e Zhu Yingtai. Os progenitores da jovem Zhu, contra a vontade desta, tinham combinado o seu casamento com um rico mercador. Sabendo disto, o enamorado Liang sente o seu coração destroçado, adoece e acaba por morrer. No dia aprazado para o casamento de Zhu com o mercador, um vento muito forte obriga a comitiva que conduz a noiva a parar diante do túmulo de Liang, que ficava no caminho. Zhu abandona a comitiva, chega junto do túmulo do seu falecido amado e manifesta o desejo de que o túmulo se abra. O túmulo abre-se com o estrondo de um trovão e Zhu lança-se para o seu interior, a fim de se juntar a Liang. As almas de Zhu e Liang emergem finalmente do túmulo sob a forma de duas borboletas, que voam para nunca mais se separarem.

No concerto Os Amantes Borboletas, a jovem Zhu Yingtai é simbolizada pelo violino e o seu amado Liang Shanbo pelo violoncelo.

02 março 2025

José Júlio


Paisagem, 1958, óleo sobre tela de José Júlio (1916–1963). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
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José Júlio Andrade dos Santos, ou simplesmente José Júlio, foi um pintor autodidata nascido em Lisboa em 1916 e falecido na mesma cidade em 1963. Licenciado em Matemática e Ciência Geofísica pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, José Júlio foi docente de Matemática e Desenho no Liceu Francês Charles Lepierre, em Lisboa. No que respeita ao Desenho, talvez possamos concluir que as aulas por ele ministradas fossem de Geometria Descritiva, dada a sua formação académica em Matemática.

José Júlio tornou-se pintor para ajudar o seu filho mais velho nos estudos. Para isso, José Júlio aprofundou os seus próprios conhecimentos e desenvolveu a sua prática pessoal de pintura. Participou em diversas exposições individuais e coletivas, além de ter desenvolvido uma intensa atividade na área da promoção das Artes Plásticas junto dos jovens, assim como nas do associativismo e cooperativismo. Foi membro da direção da Sociedade Nacional de Belas-Artes e um dos fundadores da Cooperativa Gravura.