24 agosto 2019

Amazónia em chamas


Discurso do líder indígena brasileiro Ailton Krenak perante o Congresso Nacional em 1988

O índio Ailton Krenak é um dos líderes indígenas mais respeitados do Brasil, apesar de pertencer a um povo com menos de 500 pessoas, que é o povo Krenak, que vive no estado de Minas Gerais. É hábito, entre os indígenas brasileiros, usarem o nome da sua etnia no final do seu próprio nome.

Ailton Krenak ganhou o respeito do Brasil e do mundo graças a uma intervenção sua perante o Congresso em Brasília, quando este discutia a nova Constituição do país em 1988. Nesta intervenção, Ailton Krenak pintou a cara de preto com tinta de jenipapo, que é tradicionalmente usada pelos índios nas suas pinturas corporais, enquanto discursava perante os deputados em defesa da causa dos indígenas do seu país. E venceu.

A tinta obtida a partir dos frutos verdes de jenipapo é tradicionalmente usada em pintura corporal, como o demonstram estas indígenas xinguanas (Foto: Renato Soares)

Ailton Krenak continua a ser uma voz ativa e respeitada aonde quer que vá em qualquer parte do mundo, a par de outros líderes indígenas brasileiros como Raoni Metuktire, do povo Kayapó, Davi Kopenawa, do povo Yanomami, ou Aritana Yawalapiti, do povo Yawalapiti. Há poucas semanas, Ailton Krenak esteve em Lisboa.

As palavras de Ailton Krenak perante a Assembleia Constituinte de 1988 conservam toda a sua atualidade, nesta hora trágica para a Amazónia, que arde por causa de um fogo posto por mãos criminosas. Os melhores defensores da floresta são aqueles que na floresta vivem há milhares de anos e que desde há milhares de anos têm sabido usá-la sem a destruir: os povos originários do Brasil.


Os melhores defensores da Amazónia são os seus habitantes originários (Foto de autor desconhecido)

Que os incêndios da Amazónia são de origem criminosa, não há qualquer sombra de dúvida. Nenhuma floresta tropical húmida se incendeia, esteja ela na Amazónia, em África, no Bornéu ou na Nova Guiné. A floresta tropical húmida é um tipo de floresta que tem demasiada água para que possa arder. A savana arde, o cerrado arde, a floresta tropical seca arde, a floresta das regiões temperadas arde, até a floresta do Ártico arde, mas a floresta tropical húmida não. Eu próprio testemunhei por diversas vezes este facto em África: o fogo, quando chega à orla de uma floresta tropical húmida, não se propaga mais e apaga-se espontaneamente; limita-se a chamuscar as folhas das plantas mais periféricas da floresta. Então, porque é que a floresta amazónica está a arder?


A floresta amazónica não arde espontaneamente (Foto de autor desconhecido)

Para que uma floresta tropical húmida possa arder, é preciso secá-la primeiro, e para que isso se possa fazer, começa-se por desmatá-la, cortando a vegetação que se encontra próxima do solo e deixando somente de pé as árvores de grande porte. É junto ao solo que tende a concentrar-se a humidade da floresta, por ação da gravidade. Cortam-se, portanto, as ervas, os arbustos, as lianas (chamadas cipós no Brasil), as plantas parasitas de diversas espécies, enfim, corta-se tudo o que se puder cortar, com a ajuda de poderosas máquinas. Só ficam de pé, como disse, as árvores de grande porte, enquanto o resto da vegetação morre e seca. A humidade da antiga floresta evapora-se e possibilita a ação do fogo, que só então consegue progredir e consumir o que foi em tempos uma sumptuosa catedral vegetal. A antiga vegetação fica reduzida a cinzas e carvão, abrindo caminho às máquinas que vão finalmente cortar as árvores maiores que, mesmo que tivessem sido queimadas no todo ou em parte, permanecem de pé. Cortadas estas, fica consumada a destruição da floresta.


Quantos tucanos morreram e vão continuar a morrer nos incêndios da Amazónia? (Foto de autor desconhecido)

O apocalipse que está a acontecer na Amazónia neste momento não é, de maneira nenhuma, espontâneo nem fruto do acaso. Foi premeditado. Foi preparado ao longo de meses e meses, primeiro através de um desmatamento feito a uma escala nunca até agora atingida em toda a história da humanidade, até que se esperou pela chegada da estação seca para que o fogo pudesse entrar em ação e consumar a destruição que já tinha sido iniciada. Foi tudo combinado e criminosamente preparado, a um ponto tal que nas redes sociais se anunciou a marcação do dia em que a Amazónia iria arder: o "Dia do Fogo". Foi assim mesmo que este dia foi chamado. Com a chegada do dia marcado, milhares e milhares de incêndios se acenderam simultaneamente ao longo de toda a Amazónia brasileira, num fogaréu tal que o fumo chegou a tapar o sol em São Paulo! E a Amazónia continua a arder no exato momento em que escrevo estas linhas, não só no Brasil, onde tudo começou, mas também no Equador, na Colômbia, no Peru, na Bolívia, etc. E não, não é só a floresta tropical húmida desbastada que arde, mas também e sobretudo o cerrado e outros tipos de vegetação que lhe são contíguos e a prolongam. E isto assusta ainda mais.


(Foto: Barbara Brändli)

Comentários: 4

Blogger Rogério G.V. Pereira escreveu...

Excelente
Como retributo
aqui deixo
https://sustentabilidadenaoepalavraeaccao.blogspot.com/2019/08/amazonia-vira-pasto.html

25 agosto, 2019 23:46  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Amigo Rogério, desculpe o meu atraso na resposta, mas a minha atenção tem sido desviada para outros assuntos.

O que eu queria dizer aqui - além de lhe agradecer a chamada de atenção no seu blog - é que, além da expansão da pecuária, os incêndios na Amazónia também permitem a expansão da cultura da soja. Onde não há boi, há soja. E essa soja serve para quê? - poder-se-á perguntar.

O consumo humano de soja é quase desprezível, quando comparado com a quantidade de soja que é usada no fabrico de rações para gado. Aqui mesmo em Portugal, são consumidas muitas rações para gado. Não me refiro às vacas dos Açores, que se alimentam dos magníficos pastos do arquipélago, nem às da serra da Freita ou às do Barroso, que também pastam nos montes. Estou a pensar nas numerosas vacarias existentes na região da Póvoa de Varzim, por exemplo, onde os animais nascem, crescem e morrem quase sempre confinados e tolhidos nos seus movimentos, para serem usados como máquinas de produzir leite e carne. Estes bois e estas vacas alimentam-se de rações, em cuja composição entra a soja. Também neste caso, e sem nos darmos conta disso, estamos «sob a pata do boi».

28 agosto, 2019 01:51  
Blogger Ricardo Santos escreveu...

Muito bom este post !
O "homenzinho" ainda não sabe o que a Natureza nos vai "castigar" à conta da nossa malvadez ! :((

01 setembro, 2019 00:13  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Obrigado, Ricardo Santos. O "homenzinho" julga-se civilizado (?), mas tem muito que aprender com os povos que convivem com a floresta desde há milhares de anos, sem a destruir.

02 setembro, 2019 00:39  

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