06 abril 2020

Povo que lavas no rio

Povo que lavas no rio
E talhas com o teu machado
As tábuas do meu caixão
Pode haver quem te defenda
Quem compre o teu chão sagrado
Mas a tua vida não.

Fui ter à mesa redonda
Beber em malga que esconda
Um beijo de mão em mão
Era o vinho que me deste
A água pura em fruto agreste
Mas a tua vida não

Aromas de urze e de lama
Dormi com eles na cama
Tive a mesma condição
Povo, povo, eu te pertenço
Deste-me alturas de incenso
Mas a tua vida não

Povo que lavas no rio
E talhas com o teu machado
As tábuas do meu caixão
Pode haver quem te defenda
Quem compre o teu chão sagrado
Mas a tua vida não

Pedro Homem de Mello (1904–1984)



Povo que lavas no rio, por Amália Rodrigues (1920–1999). Música de Joaquim Campos para um poema de Pedro Homem de Mello

Comentários: 11

Blogger Ricardo Santos escreveu...

Embora a achasse uma excelente intérprete com uma excelente voz, nunca foi minha fadista preferida, no entanto a Amália foi das poucos a ser conhecida mundialmente e com a sua voz e fados levou o nome de Portugal além fronteiras, o que é sempre importante para um País pequeno como é o nosso !
Abraço Fernando

06 abril, 2020 18:21  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Pois então estamos em desacordo, caro Ricardo! Amália foi uma das pouquíssimas fadistas que gostei e gosto de ouvir, a par de Maria Teresa de Noronha, e também de Carlos do Carmo e, claro, de Alfredo Marceneiro. Atualmente não há um ou uma só fadista que me agrade. Nem Mariza, nem Camané, nem ninguém. Para mim, o fado morreu.

Neste "Povo que lavas no rio" conjugam-se as sensibilidades de duas personalidades completamente distintas e, até, opostas. A do poeta Pedro Homem de Mello, de origem aristocrática, e a da fadista Amália Rodrigues, de origem plebeia e bem plebeia. Amália cantou o próprio povo a que pertencia de corpo e alma, e isso sente-se na força como o cantou. Pedro Homem de Mello evocou o povo a que não pertencia pela sua condição social, mas ao qual se esforçou por pertencer e que foi a sua própria razão de existir.

06 abril, 2020 19:05  
Blogger Valdemar Silva escreveu...

Pedro Homem de Melo viveu na Quinta de Cabanas, em Afife (Viana do Castelo), e está lá sepultado no cemitério da terra.
Tem muitos poemas escritos sobre Afife e em vários azulejos colocados em muros isolados pelos Caminhos da Freguesia..
O 'Povo que lavas no rio' é dedicado às gentes daquela terra.
Julga-se que o 'dormi com eles na cama...tive a mesma condição' foram nas noites passadas na Romaria de São João de Arga.
Num dos vários azulejos:
ETERNIDADE
As águas são para o mar,
As folhas são para o vento.
Só as fragas se não mudam!
Nelas fica o pensamento...
Pedro Homem de Melo
Cabanas, 14-08-1939

Valdemar Queiroz

07 abril, 2020 02:38  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Caro Valdemar,

Poucos meses antes de morrer, Pedro Homem de Mello organizou um encontro de poetas no mosteiro de Cabanas, a que chamou, salvo erro, "Festa da Poesia". Quis ele juntar durante uma semana vários poetas de várias correntes e de várias sensibilidades, para discutirem os caminhos futuros da poesia e, sobretudo, para poetarem enquanto permanecessem naquele lindíssimo recanto do Alto Minho. Pelo que me pareceu, o encontro foi um êxito, tendo comparecido bastantes poetas, no que poderá ser considerada uma iniciativa pioneira, que antecedeu em muitos anos outras iniciativas semelhantes, como as "Correntes d'Escrita" ou a "Escritaria".

Eu posso estar a interpretar mal a razão de tal encontro, mas parece-me que Pedro Homem de Mello quis, de certa forma, obter um reconhecimento público que lhe fora negado a seguir ao 25 de Abril, sobretudo como poeta. Para a generalidade das pessoas, Pedro Homem de Mello era, sobretudo, um folclorista que no tempo da "outra senhora" apresentava na televisão alguns ranchos folclóricos. A sua maneira arrastadíssima de falar, quando apresentava o "Raaaaaancho de Santa Marta de Portuzelooooooooo", por exemplo, fez dele alvo de piadas e graçolas. Ele era visto pelo grande público como um homem do fascismo e como um poeta medíocre — que não era, de maneira nenhuma, nem uma coisa nem outra.

A encerrar a tal "Festa da Poesia" de Pedro Homem de Mello, teve lugar no castro de Afife um serão musical, que foi animado pelo maestro António Victorino de Almeida, que tinha — e ainda deve ter — casa em Moledo do Minho. Além do próprio maestro, participaram nesse serão os Trovante, estando também prevista a participação do grande guitarrista Carlos Paredes. Mas Carlos Paredes não compareceu, por causa da sua enorme e proverbial timidez. O descaramento que faltava a Carlos Paredes tinha António Victorino de Almeida de sobra, o qual preencheu, inspiradíssimo, o resto do serão, no que acabou por ser uma noite memorável.

07 abril, 2020 17:30  
Blogger Valdemar Silva escreveu...

Caro Fernando Ribeiro
Ainda bem que é conhecedor de tudo isso que acaba de descrever.
Realmente o poeta foi muito mal visto a seguir ao 25 de Abril. Sem razão.
Em Afife, terra de estucadores-artistas, sempre foi muito bem acolhido, quer na aldeia, quer na sua casa no Convento de Cabanas. A via principal que atravessa toda a aldeia, antiga Estrada Nacional, tem o nome de Estrada Pedro Homem de Melo.
As gentes de Afife, que ao longo dos tempos sempre foi amante de teatro, talvez pela razão dos seus estucadores trabalharem fora da terra e conhecerem essa realidade artística cedo arranjaram maneira da construção de um Teatro em que eles próprios eram os artísticas homens/mulheres. Anos depois conseguiram arranjar capital para edificar o Casino Afifense, não para o fins de jogo ou dancing de espanholas, mas para grandes récitas de poesia e teatro. É um acontecimento muito interessante numa aldeia, embora com belas praias, ser essencialmente rural-agrícola com uma pequena actividade de pedreiras.
Ficaram celebres os encontros do Casino promovidos pelo poeta.
Realmente, depois do 25 de Abril o poeta foi mal tratado mas já antes o haviam 'torturado' por causa do «dormi com eles na cama..tive a mesma condição». É porque nunca o conheceram, dizia a minha mãe.
Eu nasci em Afife, feita a 4ª. classe há-la trabalhar para Lisboa. Só 36 anos depois lá voltei e, porque estrada principal de passagem mudou de trajecto, praticamente tudo estava igual. Foi fascinante visitar todos os lugares e caminhos por onde tinha passado em criança.
Valdemar Queiroz

08 abril, 2020 01:01  
Blogger Valdemar Silva escreveu...

O 'há-la' não está correcto, talvez por influência dos vizinhos.
Queria dizer: ala que se faz tarde

08 abril, 2020 13:56  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Prezado Valdemar,

Antes de ser chamado para a tropa, tive um colega na faculdade que era de Afife. Chamava-se Décio Baganha e era muito melhor aluno do que eu. Não fomos propriamente amigos mas, como colegas que éramos, falámo-nos muitas vezes.

09 abril, 2020 03:54  
Blogger Valdemar Silva escreveu...

Prezado Fernando Ribeiro
Do Décio Baganha não me lembro do nome. Eu nasci em 1945, se formos da mesma idade com toda a certeza que andamos na mesma Escola Primária.
É interessante o nome de Décio. Um meu segundo primo também se chamava Décio (Ramos) e foi enfermeiro no Sanatório da Gelfa. E a minha tia chamava-se Medeia.
Afife, pese embora a sua ruralidade, foi sempre terra de gente de elevado nível cultural.
Dizia-se por haver grandes mestre estucadores, que trabalhando fora da terra em edifícios de gente abastada foram adquirindo outros níveis culturais, que depois incutiam/influenciavam a todos os níveis o ambiente da terra.
O caso mais conhecido é o da família dos Meiras, que desde o século XIX foram sendo reconhecidos como grandes mestres estucadores e criaram a famosa 'escola dos estucadores de Afife', ou 'Os Afifanos'
São obra do grande mestre Meira, alguns tectos do Palácio da Pena, em Sintra, do Palácio Foz, nos Restauradores-Lisboa, e em vários Conventos da região norte. Eu ainda me lembro do Sr. Meira, filho do grande mestre, e julgo que alguns tectos que conheci em prédios nos Restauradores-Lisboa são de autoria de mestre Meira ou de seus correlegionários.
Como curiosidade e ainda sobre o Décio Baganha, em 1921 faziam parte da Comissão de Honra da Club Afifense para decoração do Salão e do Palco do Club entre vários os srs. António e Cesário Gonçalves Baganha (conf. Monografia do Centenário d' As Associações Sócio-Culturais e Recreativas de Afife, edição do Casino Afifense 1985).

E como diria o poeta... e agoooora lá vaiiii o poema:
Ai! esta palavra - Afife- !
(volto, ao murmurá-la, atrás -)
Lento moinho de vento
Feito de espaço e de tempo...
Quanta saudade me faz!
Oh! casa das mil janelas,
Minhas noites estreladas!
Berço de longas estradas...
Poeta, fiei-me nelas.
Oh! abismos da lonjura,
Reflexos de pedraria!
Porque parti à procura
Daquilo que não havia?
Era aqui, aqui somente
Que eu devia ter ficado,
Afife de toda a gente
Que baila e canta a meu lado.
Pedro Homem de Melo
Cabanas, Abril de 1959

09 abril, 2020 17:21  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Caro Valdemar,

Só encontrei uma única referência ao seu conterrâneo Décio Baganha na Net. Pelos vistos, fez tropa na Marinha, como segundo-tenente da Reserva Naval (equivalente a alferes miliciano), e é o militar de óculos e bigode que se vê na segunda imagem desta página: http://www.reservanaval.pt/cforn20/dircforn20.html.

Mesmo que o tenha conhecido em criança, é natural que não o reconheça como adulto e ainda por cima de bigode. Ele falava-me bastante do Pedro Homem de Mello, dizendo, por exemplo, que ele costumava ser visto a passear de bicicleta pelos caminhos de Afife e Carreço.

Quando fui a Afife pela primeira vez (há tantos anos!), fiquei surpreendido pela existência do Casino Afifense. Um casarão daqueles, e ainda por cima chamado casino, sugere que Afife terá sido uma estância de veraneio para uma burguesia abastada. Neste aspeto, deve ter feito concorrência a Âncora e a Moledo.

Um abraço

10 abril, 2020 20:03  
Blogger Valdemar Silva escreveu...

Caro Fernando Ribeiro
Resolvido o arranjo ao meu PC, cá estou de novo n'A Matéria do Tempo' a comentar sobre Afife.
Realmente, pelas fotografias não consigo recordar-me do Décio Baganha.
Eu, também, me recordo do Pedro Homem de Melo, quando ele vinha à Estação esperar alguém ou receber os Jornais que vinham de Viana e como a Estação estava junta da Escola, muitas vezes a nossa professora nos dizia 'venham ver o poeta'.
O Casino Afifense não foi edificado, como parece, para ser estância de veraneio para uma burguesia abastada. Nada disso.
O Casino Afifense foi edificado (início da construção 1930) para reunir num só a 'Sociedade de Theatro Affifense', de 27-02-1859, e o 'Club Affifense', de 02-0-1899, existentes, que se dedicavam a actividades de Intrução, Recreio e Socorros Mútuos, em salas alugadas, com gente da terra.
O Casino Afifense nunca teve a actividade de casino de veraneio e apenas era autorizada a entrada aos sócios e seus familiares e a alguns convidados especiais nos dias de récitas, espectáculos de teatro ou bailes. As senhoras só podiam entrar no Casino devidamente acompanhadas por sócios familiares.
Como curiosidade, a gente de Afife sempre foi muito 'prá frente' nunca havendo, que eu tenha a certeza, grandes conflitos políticos/partidários. Interessante, para aquelas paragens, as primeiras eleições após o 25 de Abril serem ganhas pelo MDP/CDE.
Finalizo com parte do relatório da Assembleia Geral da Sociedade Recreativa Afifense, de 19-01-1921, em que o Presidente da Mesa, Simão Pinto Moreira, historia a vida da Sociedade e afirma que «ela foi criada não só para recreio e instrução dos seus sócios, mas também para dar combate à reacção obedecendo ao sentir liberal dos seus componentes».

Um abraço

17 abril, 2020 15:46  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Caro Valdemar,

Pois então fui enganado pelo nome da instituição! Porque será que lhe puseram o nome de Casino, então?

Eu supunha que Afife era uma estância de veraneio, mas não de praia, claro. De campo. A praia de Afife, ainda que puríssima e despoluidíssima como nenhuma outra, tem o inconveniente das nortadas. Já a povoação fica muito mais abrigada do vento norte e, como fica perto de Viana do Castelo e de Caminha, poderia atrair a burguesia mais friorenta destas e de outras localidades. Afife alia as belezas do campo ao cheiro da maresia. Se não foi uma estância de veraneio, poderia sê-lo.

Tenho uma recordação do Pedro Homem de Mello, mas aqui no Porto. Durante dois ou três anos, o Pedro Homem de Mello frequentou o mesmo café que eu, o Café Estrela d'Ouro, situado na Rua da Fábrica, nas imediações da Avenida dos Aliados e da Praça da Liberdade, e que é agora restaurante. Na prática, o Café Estrela d'Ouro era mais uma sala de estudo com serviço de cafetaria do que um café propriamente dito. Estava sempre cheio de estudantes, entre os quais eu próprio, que estudavam que se fartavam. O Estrela era o café dos alunos estudiosos, enquanto o Piolho era o café dos cábulas. Havia no Estrela uma coisa que em mais nenhum café havia: uma caixa de correio, dos CTT, embutida numa parede dentro do próprio estabelecimento.

Durante bastantes meses, o Pedro Homem de Mello entrava diariamente no Estrela e dirigia-se à tabacaria do estabelecimento, onde comprava uma molhada de cartas, com os envelopes e os respetivos selos. Sentava-se a uma mesa e, enquanto bebia um café, escrevia cartas, umas atrás das outras. Escrevia, escrevia, escrevia. No fim, fechava as cartas, colava os selos e ia deitar as cartas ao correio, tudo sem sair do café! Voltava para a sua mesa e punha-se a ler um livro até à hora de regressar a casa, ou então punha-se a corrigir pontos, pois ele era professor de português na Escola Industrial Infante D. Henrique.

Um abraço

21 abril, 2020 02:09  

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