15 junho 2020

ESTE PRETO HE DE AGOSTINHO DE LAFETÁ DO CARVALHAL DE ÓBIDOS





Carvalhais não faltam em Portugal. Uns benfeitos, outros meãos, outros redondos, uns no singular, outros no plural, aí estão a lembrar que houve tempos em que abundavam na terra portuguesa os carvalhos, essas árvores magníficas a que ninguém pedia frutos e a que todos requeriam madeira. O carvalho para ser útil, tinha de morrer. Tanto o mataram, que o iam exterminando. Em alguns lugares não resta mais que o nome: o nome, como sabemos, é a última coisa a morrer.

A este Carvalhal, para o distinguir, acrescentavam-lhe antigamente Óbidos: Carvalhal de Óbidos. Há aqui uma torre a que chamavam dos Lafetás, por assim ser conhecida uma família cremonense vinda a Portugal no final do século XV e que aqui teve esse e outros bens. Quando se diz que veio essa família a Portugal, não se pretende afirmar que viesse toda. Eram banqueiros riquíssimos, poderosa companhia mercantil internacional desse século e do seguinte, com negócios em Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Flandres. Credores de reis, contratadores de pimenta e açúcar, os Affaitati vêm a esta viagem para lembrar que os descobrimentos foram também um gigantesco negócio, e sobretudo por causa de um escravo que neste Carvalhal tiveram. Na torre que aqui está foi em tempos encontrada uma coleira com dizeres gravados, os quais assim rezavam: «Este preto he de Agostinho de Lafetá do Carvalhal de Óbidos.» O viajante [José Saramago] não sabe mais nada do escravo preto, a quem a coleira só deve ter sido tirada depois que morreu. Foi deixada aí pelos cantos, brincaram talvez com ela os filhos de Agostinho de Lafetá e de sua mulher, D. Maria de Távora, e pelo modelo se terão feito as que serviram aos cães e que até hoje se usaram: «Chamo-me Piloto. No caso de me perder, avisem o meu dono.» E depois vem a morada e o número de telefone. E ainda assim houve progressos. Na coleira do escravo de Agostinho de Lafetá nem sequer se mencionava o nome. Como se sabe, um escravo não tem nome. Por isso, quando morre, não deixa nada. Só a coleira, que ficava pronta para servir a outro escravo. Quem sabe, pergunta o viajante fascinado, a quantos escravos teria ela servido, sempre a mesma, enquanto houve pescoço de escravo em que servisse? O viajante tem informação de que a coleira está em Lisboa, no Museu de Arqueologia e de Etnografia. A si mesmo promete, com a solenidade adequada ao caso, que será a primeira coisa que há-de ver quando chegar a Lisboa. Cidade tão grande, tão rica, tão afamada, onde todos os Lafetás de dentro e de fora fizeram os seus muitos negócios, pode ser principiada de muitas maneiras. O viajante começará por uma coleira de escravo.

(…)

Cá está a coleira. O viajante disse e cumpriu: mal entrasse em Lisboa iria ao Museu de Arqueologia e de Etnologia à procura da falada coleira usada pelo escravo dos Lafetás. Podem-se ler os dizeres: «Este preto he de Agostinho de Lafetá do Carvalhal de Óbidos.» O viajante repete uma vez e outra para que fique gravado nas memórias esquecidas. Este objecto, se é preciso dar-lhe um preço, vale milhões e milhões de contos, tanto como os Jerónimos aqui ao lado, a Torre de Belém, o palácio do presidente, os coches por junto e atacado, provavelmente toda a cidade de Lisboa. Esta coleira, é mesmo uma coleira, repare-se bem, andou no pescoço dum homem, chupou-lhe o suor, e talvez algum sangue, de chibata que devia ir ao lombo e errou o caminho. Agradece o viajante muito do seu coração a quem recolheu e não destruiu a prova de um grande crime. Contudo, uma vez que não tem calado sugestões, por tolas que pareçam, dará agora mais uma, que seria colocar a coleira do preto de Agostinho de Lafetá numa sala em que nada mais houvesse, apenas ela, para que nenhum visitante pudesse ser distraído e dizer depois que não viu.


José Saramago (1922–2010), Viagem a Portugal

Comentários: 3

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Depois de lidas estas palavras, não poderão dizer que não sabiam.

Abraço

15 junho, 2020 10:49  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Ninguém pode dizer que não sabia, claro que não, Maria João. Não faltam testemunhos da existência de escravos negros em Portugal. Não os houve só em África e no Brasil. Esta coleira é um desses testemunhos, mas há outros, como o Mercado de Escravos de Lagos. Este mercado, que na verdade é um edifício em cujo rés-do-chão se vendiam escravos, é agora um pequeno museu dedicado ao tema, mas até um bar já foi!

No princípio deste mês, deveria ter tido lugar uma romaria em Gemunde, no concelho da Maia. Esta romaria, que este ano não houve por causa da pandemia, é dedicada à "Campa do Preto" e já foi objeto de um post meu aqui no blog, há 14 anos. Para não ter que me repetir, peço-lhe que tenha a paciência de ler o que sobre esta romaria escrevi, em https://amateriadotempo.blogspot.com/2006/06/campa-do-preto.html.

O «Museu de Arqueologia e de Etnologia» referido por José Saramago chama-se agora Museu Nacional de Arqueologia e fica no Mosteiro dos Jerónimos. É a este museu que pertence a coleira do escravo do Carvalhal de Óbidos. É um museu verdadeiramente digno de ser visitado. O espólio de etnologia que pertencia a este museu passou a pertencer ao (agora chamado) Museu Nacional de Etnologia, que fica acima do Estádio do Restelo e que também merece ser visitado.

17 junho, 2020 01:56  
Anonymous Anónimo escreveu...

Muito interessante. Obrigada.

17 agosto, 2023 11:19  

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