01 junho 2020

Viena, a Vermelha


Karl Marx-Hof (Foto de autor desconhecido)

Quando alguém nos fala na capital da Áustria, logo nos vêm à mente imagens de fausto e esplendor, palácios e museus, sedas e veludos, pares de dançarinos rodopiando ao som de valsas de Strauss em salões doirados e iluminados por fulgurantes lustres de cristal, etc. É esta, por exemplo, a imagem que Viena dá de si própria ao mundo todos os anos, quando transmite os famosos e apreciados concertos de ano novo pela televisão. É a imagem de uma Viena de príncipes e arquiduques, cheia de sorrisos e de vénias, onde desabrocharam os amores que o cinema celebrizou, entre a bela princesa bávara Elisabeth (Sissi) e o garboso imperador Francisco José.

Este é um cenário cor de rosa, que os vienenses se esforçam por promover a todo o custo, para atrair visitantes e turistas, que abrem a boca de espanto perante a grandiosidade dos jardins do palácio de Schönbrunn, as piruetas dos cavalos da Escola Espanhola de Equitação, a harmonia angelical das vozes dos Pequenos Cantores de Viena e a beleza sem par das mulheres vienenses fazendo das ruas da cidade uma permanente passagem de modelos.

Viena é uma cidade de sonho e magia, que encanta quem a visita, mas não é só isso. É também uma cidade de gente simpática e acolhedora (pelo menos já o foi), que fala um dialeto que ninguém consegue entender e que trabalha para que esta atmosfera de sonho pareça (ou seja mesmo) realidade. Há muito de postiço, mas também há muito de genuíno em Viena, cidade fascinante por excelência.

E depois há uma outra Viena, que na verdade é a mesma, mas que os turistas quase nunca veem. É desta outra Viena que me proponho falar um pouco nas linhas que se seguem.

A Primeira Guerra Mundial foi, predominantemente, uma guerra de impérios e marcou o fim de alguns deles, nomeadamente o Império Austro-Húngaro e a sua dinastia dos Habsburgos. À semelhança dos restantes, este império assentava o seu poder e a sua riqueza na dominação e exploração de vários povos do centro e este da Europa. Estes povos ansiavam libertar-se do jugo que os oprimia e alimentaram uma consciência nacional que legitimava uma resistência que se tornou cada vez mais violenta, até culminar no assassinato do herdeiro do trono imperial, Francisco Fernando, em Sarajevo, no ano de 1914. Por outro lado, os diversos impérios então existentes na Europa também procuravam apoderar-se das possessões uns dos outros, pois é próprio de um império ter uma ambição sem limites e querer dominar tudo e todos. A guerra generalizou-se a toda a Europa, e não só, e atingiu níveis de crueldade até então nunca vistos.

Quando a Primeira Guerra Mundial acabou em 1918, a Europa estava em ruínas e o antigo Império Austro-Húngaro estava desfeito. Viena, que tinha sido a cabeça de um vasto império, ficou limitada à condição de capital grande de um país pequeno e reduzido a escombros, uma cidade a braços com uma numerosa população miserável, esfomeada e a viver em casas arruinadas e sobrelotadas. As doenças, tais como o tifo, a tuberculose, a sífilis e outras, ceifavam incontáveis vidas. Era urgente fazer-se alguma coisa. E fez-se.

Com o fim da Primeira Guerra Mundial e o consequente fim do Império dos Habsburgos, a Áustria (ou o que dela restou) tornou-se numa república. Após as primeiras eleições legislativas, saiu vencedor o Partido Social Cristão, profundamente conservador e estreitamente ligado à Igreja Católica. Isto, na Áustria como país. Porque em Viena os eleitores votaram à esquerda e elegeram o Partido Social-Democrata da Áustria para dirigir os destinos da cidade. Viena tornou-se numa ilha "vermelha" (social-democrata) num mar conservador. Este foi o início de um período histórico que durou cerca de década e meia e que transformou profundamente o tecido social e urbano de Viena, período este a que foi dado o nome de "Viena, a Vermelha".

A tarefa mais urgente a que a vereação social-democrata de Viena deitou mãos, foi a da habitação. O que então se fez, foi verdadeiramente extraordinário. Hoje, de todas as capitais da Europa, Viena é aquela que tem a maior percentagem de habitação social. Toda esta habitação, ou quase, foi construída na década de vinte e primeira metade da década de trinta do séc. XX pela vereação social-democrata de Viena, a Vermelha.

Quem for a Viena e se der ao trabalho de sair dos roteiros turísticos habituais, para visitar as vastas áreas residencias que circundam o centro histórico e monumental da cidade, descobrirá que em quase todas as ruas, em quase todas as praças, em quase todas as vielas, em quase todos os becos e em quase todas as alamedas de Viena existe, pelo menos, um prédio de habitação social, propriedade da Câmara Municipal. São prédios incaracterísticos, quase todos eles, de dois, três ou quatro andares (raramente mais), além do rés-do-chão, em cujas fachadas lisas se abrem algumas janelas. Do ponto de vista arquitetónico, estes prédios pouco ou nada valem. Do ponto de vista social, sim, valem muito, porque eles permitem que vivam, completamente integradas no tecido urbano da cidade, famílias desfavorecidas (muitas famílias de imigrantes, na atualidade), paredes-meias com prédios mais ricos e burgueses. Há milhares de famílias de fracos recursos vivendo nestes prédios camarários espalhados por Viena, sem estarem separadas do conjunto da cidade.

Além dos prédios acabados de referir, a vereação de Viena, a Vermelha, fez construir alguns grandes complexos habitacionais, também para as classes desfavorecidas, que, estes sim, têm grande interesse arquitetónico e um não menor interesse sociológico. Estes complexos habitacionais passaram a marcar de forma indelével o caráter de Viena, sem os quais a capital austríaca não seria a cidade que agora é. Depois deles, nunca mais Viena voltou a ser a mesma.

Os grandes complexos habitacianais construídos pela Câmara Municipal de Viena, a Vermelha, receberam o nome de Höfe, plural de Hof. A palavra Hof pode ser traduzida por pátio, mas esta palavra "pátio" tem que ser tomada como significando uma comunidade local autónoma, de vizinhos que convivem entre si e que partilham alguns espaços comuns, à semelhança dos habitantes dos pátios das cidades antigas.

Vários Höfe foram construidos em Viena entre 1920 e 1934, mas o maior e mais representativo de todos é o Karl Marx-Hof, situado na zona norte de Viena, perto do Rio Danúbio. Como o Partido Social-Democrata da Áustria era marxista (embora não fosse leninista), não admira que o nome de Karl Marx tenha sido dado ao Hof mais emblemático de todos. Quando nós nos encontramos diante de um tão grande empreendimento, que tem mais de um quilómetro de extensão, não podemos deixar de nos sentir um tanto ou quanto intimidados pelo seu aspeto, que faz lembrar uma fortaleza. Talvez tenha sido de propósito. Talvez o Karl Marx-Hof tenha sido projetado para ser visto como um reduto da classe operária.

A ação da vereação social-democrata de Viena durante a Primeira República Austríaca não se limitou ao alojamento de centenas de milhares de pessoas em apartamentos minimamente dignos, com rendas reduzidas que rondavam os 4% do rendimento familiar. A Câmara Municipal de Viena, a Vermelha, também desenvolveu um vasto programa de apoio social, para que, por exemplo, cada recém-nascido «não tivesse que ser envolvido em papel de jornal» quando viesse ao mundo. Creches, centros de dia, ginásios, spas e muitos outros espaços de cultura e de lazer foram então criados em Viena para os desfavorecidos. Um vereador da época afirmou: «O que gastarmos em alojamentos para jovens será poupado em prisões; o que gastarmos na proteção às grávidas e lactentes será poupado em hospitais psiquiátricos». No que respeita à cultura, a Câmara Municipal impulsionou fortemente as artes e a literatura. Fizeram-se então em Viena algumas das experiências mais radicais alguma vez registadas no domínio da cultura europeia, como por exemplo a música dodecafónica, criada por Arnold Schönberg e continuada pelos seus discípulos Alban Berg, Anton Webern e outros. Também Sigmund Freud se estabeleceu na cidade e nela abriu o seu consultório.

Viena renasceu durante o governo da sua vereação "vermelha", e até se tornou numa cidade próspera, enquanto o resto da Áustria continuava mergulhado no atraso e na pobreza. Em 1934, no entanto, teve lugar uma guerra civil no país, da qual o Partido Social-Democrata saiu derrotado e em resultado da qual emergiu um poder pró-nazi, que pôs um ponto final a todas as aventuras revolucionárias que Viena tinha estado a viver. Em 1938 a Áustria acabou por perder mesmo a sua independência, para se tornar numa espécie de "Alemanha" de segunda categoria, apesar de o chanceler alemão, Adolf Hitler, ser ele mesmo austríaco também. Uma nova tragédia se abateu sobre a Europa e sobre o Mundo, com a chegada da Segunda Guerra Mundial. Viena também lhe sofreu as consequências, mas isto já é outra história.


Engelshof, assim chamado em homenagem a Friedrich Engels (Foto: Thomas Ledl)


Bebelhof, assim chamado em homenagem a August Bebel, dirigente do Partido Social-Democrata Alemão (Foto: Thomas Ledl)


George Washington-Hof (Foto: Bwag)


Viktor Adler-Hof. Residi numa rua próxima deste complexo habitacional (Foto: Bwag)

Comentários: 5

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

A bela Viena Vermelha...

Abraço!

03 junho, 2020 09:29  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Vermelha ou não, Viena é uma cidade fascinante, que nunca mais se esquece. Por exemplo, é uma cidade cheia de vida e de movimento, mas sem stress absolutamente nenhum. É mesmo verdade.

Eu morava na 10.ª circunscrição, chamada Favoriten, quase no extremo sul de Viena. Para me deslocar para o meu local de trabalho, apanhava o metro para o centro da cidade, primeiro, e a seguir tomava um autocarro até às proximidades do porto fluvial de Viena, nas margens do Rio Danúbio. Num dos primeiros dias de trabalho, um colega meu, que era português de Caneças, exclamou, pouco depois de termos entrado numa carruagem do metro:

- Eu não percebo! São sete e meia da manhã, estas pessoas vão todas para o trabalho... E vão alegres como se fossem para uma festa! Em Lisboa, a esta hora, as pessoas vão com uma cara tal, que parece que querem bater em todo o mundo...

E era absolutamente verdade. A carruagem do metro estava cheia (mas não apinhada) de pessoas sorridentes e que conversavam animadamente umas com as outras, exatamente ao contrário do que se costuma ver nos transportes públicos em Portugal à mesma hora, cheios de pessoas sonolentas e resmungonas.

Este ambiente descontraído que se observa em Viena, qualquer que seja a hora do dia ou da noite, talvez se deva ao facto de os vienenses não se levarem muito a sério. Os vieneneses tendem a levar as coisas para a brincadeira, numa atitude desportiva perante a vida, dando um exemplo que talvez devesse ser seguido por todos.

Poderá a Maria João perguntar se Viena não tem defeitos. Claro que tem. A meu ver, tem pelo menos dois.

O primeiro defeito de Viena é o clima, que é péssimo. Depois de um mês de julho escaldante, que me levou até às margens do Danúbio aos fins de semana, onde dei alguns mergulhos (por vezes rodeado de cisnes!), em agosto o tempo pôs-se extraordinariamente frio e chuvoso. Disseram-me os meus colegas austríacos:

- E pronto, acabou o verão!

- Como assim, "acabou o verão"? - admirei-me eu. - Ainda estamos em agosto, o verão ainda vai a meio...

- Não, não - reponderam-me. - O verão já acabou. Agora só para o ano. Aqui é assim!

Pensei:

- Socorro! Tirem-me deste filme. A esta hora está toda a gente na praia em Portugal, e eu aqui à chuva e cheio de frio!

Eu passava pelas montras das lojas e vias as coleções de outono/inverno expostas, com grossos casacões para o frio e enormes botifarras para a neve à venda. E contudo estávamos em agosto!

O segundo defeito de Viena é a grande distância a que se encontra do mar. É verdade que Viena tem extensas praias fluviais ao longo de um canal do Danúbio, chamado Neue Donau (Novo Danúbio), cuja água é tratada e desinfetada, para que as pessoas possam tomar banho nela sem perigo, porque o Danúbio propriamente dito é poluidíssimo. Viena tem vários quilómetros de excelentes praias fluviais, uma boa parte das quais reservada à prática de nudismo, que está legalizada mas não é obrigatória; só faz nudismo quem quer. Tudo isto é muito bom, mas para quem, como eu, se habituou à proximidade do mar e passou todas as férias da sua infância à beira-mar, estar numa praia fluvial não é o mesmo que estar numa praia marítima. Falta o cheiro da maresia, falta o sabor salgado da água, faltam as ondas, falta muita coisa. Senti imensas saudades do mar em Viena.

Resumindo: gostei imenso de Viena, cidade que nunca mais se esquece, mas gosto muito mais de viver em Portugal.

04 junho, 2020 18:00  
Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Outros pequenos mundos... :)

Obrigada pela sua extensa resposta, Fernando. Não há bela sem senão, não é verdade?

Sou uma daquelas raras pessoas que criam fortíssimas raízes e vivem de dentro para fora. Não digo que seja uma virtude... é apenas uma característica minha. Sou portuguesa e não deixaria Portugal por nada deste mundo... nem do outro, caso exista :)

Penso que seja uma coisa circunstancial. Se tivesse nascido e crescido em Viena, provavelmente diria que não deixaria Viena por nada de mundo nenhum.

Abraço

06 junho, 2020 11:15  
Blogger Ricardo Santos escreveu...

Infelizmente não conheço Viena de Áustria, mas daquilo que sei é uma cidade maravilhosa. De histórias de quem lá esteve e visitou !

07 junho, 2020 15:54  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Amigo Ricardo Santos,
Estive empregado numa empresa portuguesa que foi comprada e absorvida pela Siemens. Nestas circunstâncias, trabalhei durante algum tempo em Munique e em Viena. Fiquei a conhecer um pouco de ambas as cidades. É claro que Munique tem muito que ver, não tem só a BMW e o Bayern! Munique tem mesmo muito que ver. Mas Viena... Ah, Viena! Que cidade! É um mundo!

08 junho, 2020 01:31  

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