21 fevereiro 2021

Se eu de ti me não lembrar, Jerusalém


(Gadamael Porto, Guiné, 1973)

Nos gritos silenciados
Pelos esgares multiplicados desta metralha horrenda,
Se eu de vós me não lembrar, meu monte e meu rio sagrados,
Que a minha língua se prenda,
Que a minha língua se prenda!

        Junto ao Rio de Cacine me sentei chorando,
        Com saudades consagradas
        Ao meu chão;
        Nos palmares do chão manjaco desfiando
        Um rosário de granadas
        De mão.

Partem de Kandiafara mísseis Strela em demanda da minha vida,
Quando eu demando a minha terra da promissão:
Tão longe está o doce favo da partida,
A cama desfeita, os olhos embaciados amarrados ao vulcão.

Não é este o Rio que eu desejo engrossar com as lágrimas salgadas
Desta saudade tamanha;
Jazem a harpa e a G3, dependuradas
No tarrafe da bolanha.
Não é este o rio das bogas, dos barbos, das enguias e dos mexilhões
Que eu demando. Este rio não é
O rio que eu desejo. O rio Cacine tem candambas, tem bicudas, tubarões,
Nasce e morre em quatro horas de maré.

Aqui as bajudas balançam com altivez os chalavares dos camarões
E os flamingos parecem levitar num golpe d'asa;
Mas a água do meu rio, como o fogo dos vulcões,
É ferro em brasa.

O meu Tâmega sagrado foi rasgado com um grito,
Marcado pelo lume que a profecia diz,
Um pássaro de fogo voando no infinito,
Doce cicatriz.

        Junto ao Rio de Cacine me sentei chorando,
        Com saudades consagradas
        Ao meu chão;
        Nos palmares do chão manjaco desfiando
        Um rosário de granadas
        De mão.

Nos gritos silenciados
Pelos esgares multiplicados desta metralha horrenda,
Se eu de vós me não lembrar, meu monte e meu rio sagrados,
Que a minha língua se prenda,
Que a minha língua se prenda!


Luís Jales de Oliveira, Corre-me um Rio no Peito, edição de autor, Mondim de Basto, 2010


Pelicanos no Rio Cacine, Guiné-Bissau (Foto: Pedro do Vale)

Em primeiro plano o Rio Tâmega e em último plano o Monte Farinha, Mondim de Basto, Portugal (Foto: Movimento Cidadania para o Desenvolvimento no Tâmega)

GLOSSÁRIO

Chão manjaco - território habitado pelo povo manjaco da Guiné-Bissau

Kandiafara - localidade na República da Guiné (Guiné-Conacri)

Mísseis Strela - mísseis terra-ar com sensores de infra-vermelhos, que podiam ser disparados a partir do ombro de um atirador

Vulcão - alusão ao Monte Farinha, nas proximidades de Mondim de Basto, que não é um vulcão, embora pareça; no seu cume não existe qualquer cratera, mas sim um santuário dedicado a Nossa Senhora da Graça

Tarrafe - o mesmo que tamargueira ou tramagueira, árvore de pequenas dimensões

Bolanha - extensão de terreno alagadiço na Guiné-Bissau

Bajudas - jovens do sexo feminino

Chalavar - instrumento de pesca dotado de rede camaroeira, usado para apanhar marisco

Comentários: 3

Blogger Rogério G.V. Pereira escreveu...

"Não é este o Rio que eu desejo engrossar com as lágrimas salgadas"

Todos nós temos um rio que queremos salvar!

Dê um abraço ao autor do poema, mesmo se não o conheça!

21 fevereiro, 2021 12:30  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Não conheço o autor, mas gostaria.

O título do poema mostra que Jales de Oliveira se inspirou no episódio bíblico da conquista dos reinos de Israel e de Judá pelo rei Nabucodonosor, que levou os seus habitantes cativos para Babilónia. O exílio então vivido pelos israelitas tem vindo a ser uma inesgotável fonte de inspiração para muitos escritores e artistas ao longo dos séculos. Por exemplo, Luís de Camões escreveu as conhecidas redondilhas Sôbolos rios que vão e o compositor italiano Giuseppe Verdi compôs uma ópera sobre o tema, chamada Nabucco, que inclui o famoso Va pensiero, que o Rogério ainda recentemente publicou no seu blog.

Neste poema, Jales de Oliveira compara o seu próprio exílio nas margens do Rio Cacine ao exílio dos judeus nas margens dos rios de Babilónia.

22 fevereiro, 2021 03:15  
Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Toda eu sou um rio, meu amigo. Toda eu.

Forte abraço

23 fevereiro, 2021 12:01  

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