Se eu de ti me não lembrar, Jerusalém
(Gadamael Porto, Guiné, 1973)
Nos gritos silenciados
Pelos esgares multiplicados desta metralha horrenda,
Se eu de vós me não lembrar, meu monte e meu rio sagrados,
Que a minha língua se prenda,
Que a minha língua se prenda!
Junto ao Rio de Cacine me sentei chorando,
Com saudades consagradas
Ao meu chão;
Nos palmares do chão manjaco desfiando
Um rosário de granadas
De mão.
Partem de Kandiafara mísseis Strela em demanda da minha vida,
Quando eu demando a minha terra da promissão:
Tão longe está o doce favo da partida,
A cama desfeita, os olhos embaciados amarrados ao vulcão.
Não é este o Rio que eu desejo engrossar com as lágrimas salgadas
Desta saudade tamanha;
Jazem a harpa e a G3, dependuradas
No tarrafe da bolanha.
Não é este o rio das bogas, dos barbos, das enguias e dos mexilhões
Que eu demando. Este rio não é
O rio que eu desejo. O rio Cacine tem candambas, tem bicudas, tubarões,
Nasce e morre em quatro horas de maré.
Aqui as bajudas balançam com altivez os chalavares dos camarões
E os flamingos parecem levitar num golpe d'asa;
Mas a água do meu rio, como o fogo dos vulcões,
É ferro em brasa.
O meu Tâmega sagrado foi rasgado com um grito,
Marcado pelo lume que a profecia diz,
Um pássaro de fogo voando no infinito,
Doce cicatriz.
Junto ao Rio de Cacine me sentei chorando,
Com saudades consagradas
Ao meu chão;
Nos palmares do chão manjaco desfiando
Um rosário de granadas
De mão.
Nos gritos silenciados
Pelos esgares multiplicados desta metralha horrenda,
Se eu de vós me não lembrar, meu monte e meu rio sagrados,
Que a minha língua se prenda,
Que a minha língua se prenda!
Luís Jales de Oliveira, Corre-me um Rio no Peito, edição de autor, Mondim de Basto, 2010
Pelicanos no Rio Cacine, Guiné-Bissau (Foto: Pedro do Vale)
Em primeiro plano o Rio Tâmega e em último plano o Monte Farinha, Mondim de Basto, Portugal (Foto: Movimento Cidadania para o Desenvolvimento no Tâmega)
GLOSSÁRIO
Chão manjaco - território habitado pelo povo manjaco da Guiné-Bissau
Kandiafara - localidade na República da Guiné (Guiné-Conacri)
Mísseis Strela - mísseis terra-ar com sensores de infra-vermelhos, que podiam ser disparados a partir do ombro de um atirador
Vulcão - alusão ao Monte Farinha, nas proximidades de Mondim de Basto, que não é um vulcão, embora pareça; no seu cume não existe qualquer cratera, mas sim um santuário dedicado a Nossa Senhora da Graça
Tarrafe - o mesmo que tamargueira ou tramagueira, árvore de pequenas dimensões
Bolanha - extensão de terreno alagadiço na Guiné-Bissau
Bajudas - jovens do sexo feminino
Chalavar - instrumento de pesca dotado de rede camaroeira, usado para apanhar marisco
Comentários: 3
"Não é este o Rio que eu desejo engrossar com as lágrimas salgadas"
Todos nós temos um rio que queremos salvar!
Dê um abraço ao autor do poema, mesmo se não o conheça!
Não conheço o autor, mas gostaria.
O título do poema mostra que Jales de Oliveira se inspirou no episódio bíblico da conquista dos reinos de Israel e de Judá pelo rei Nabucodonosor, que levou os seus habitantes cativos para Babilónia. O exílio então vivido pelos israelitas tem vindo a ser uma inesgotável fonte de inspiração para muitos escritores e artistas ao longo dos séculos. Por exemplo, Luís de Camões escreveu as conhecidas redondilhas Sôbolos rios que vão e o compositor italiano Giuseppe Verdi compôs uma ópera sobre o tema, chamada Nabucco, que inclui o famoso Va pensiero, que o Rogério ainda recentemente publicou no seu blog.
Neste poema, Jales de Oliveira compara o seu próprio exílio nas margens do Rio Cacine ao exílio dos judeus nas margens dos rios de Babilónia.
Toda eu sou um rio, meu amigo. Toda eu.
Forte abraço
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