11 abril 2021

Há um tiro isolado que ecoa longamente no vale


Combatentes progredindo no terreno, no decurso de uma operação militar na região do Mucondo, norte de Angola, 1972 ou 1973 (Foto: Luiz Macedo)


Episódio ocorrido na região do Mucondo, norte de Angola, provavelmente em fins de 1970:

(...)
Caminhamos num vale com uns cem metros de largura ladeado por montes de pequena altitude cobertos por densa vegetação. O vale é plano. A terra é escura. Há lavras por todo o lado. Milho crescido muito bem tratado, sinal de que nos encontramos em pleno território inimigo. A tensão cresce. Tudo pode mudar de um momento para o outro. Pela primeira vez encontro-me em território claramente assinalado pela presença inimiga. Abandonamos o percurso aberto que trazíamos pelo meio das lavras porque nos expomos demasiado e nos tornamos num alvo fácil. Caminhamos agora mais protegidos pela orla da mata com uma visão perfeita sobre toda a extensão do vale.

Há uma ordem brusca para parar e agachar vinda da frente. Silêncio.

Permanecemos assim por breves momentos que me parecem uma eternidade. Sustenho até a respiração procurando eliminar todos os ruídos que me impeçam de ouvir os sons que vêm da frente. Depois respiro ao de leve, controlando o ruído do ar que me sai e entra lentamente pela boca e nariz. A fila é muito longa. É impossível ver o que se passa bem lá na cabeça da coluna.

Uma informação digital corre célere toda a fila e chega até mim em forma de V.

Vitória? Mas ganhámos o quê? Questiono-me eu num solilóquio absurdo quebrando aquela onda hertziana que me devia atravessar e continuar no militar que me seguia.

— São dois, meu Alferes, são dois turras – esclarece o militar que se me segue, captando a informação e apercebendo-se da minha indecisão. A onda encalhada em mim é restabelecida.

Abano a cabeça na maior censura e tento desculpar-me a mim mesmo com a enorme tensão em que me encontro. Não havia ainda vitória. Eram dois os inimigos que se dispunham a uma derrota contra os cinquenta de nós que os esperávamos acoitados na mata.

Há um ou dois gritos que traduzo de interpelação de alguém vindos da frente e que ecoam no silêncio absoluto do vale. Segundos depois um tiro, outro e um terceiro que restabelece o silêncio, depois de ribombar em ecos que estouram na minha cabeça.

Fico mais perto do chão. Não há notícias. Correm apenas boatos. Dois já ficaram. Parece que ficaram dois.

De repente uma rajada, outra, tiros, muitos tiros, um tiroteio incrível ali a cinquenta, setenta metros à minha frente sem que eu veja o que quer que seja. Mergulho num pedaço de tronco derrubado que encontro à mão e tento perceber o que se passa. Comigo ficam alguns militares que se abrigam esperando que lhes transmita ordens. Não sei quem dispara, não vejo o inimigo, ouço dezenas de tiros que se agrupam num único trovão que dura vinte, trinta segundos e é interrompido a custo pela voz de alguém que grita: pára, pára, pára! Mas os tiros continuam por mais alguns momentos, embora dispersos e isolados.

— Ninguém dispara! Grito para os militares que ficaram comigo.

— Ninguém dispara!

Tenho o dedo trémulo no gatilho supostamente pronto para o uso que for requerido e espreito encolhido tentando descortinar algo que se mexa e nos ameace. A fila fazia uma curva e desaparecia por entre vegetação e pés de milho impedindo de observar o centro dos acontecimentos. Fez-se um silêncio que parecia não ter fim. Um silêncio incerto lentamente transformado em calmaria podre. Olho-me em volta. Sinto-me perdido e vulnerável como um grão de areia no deserto. Reparo que, no meio de todo aquele tiroteio, a minha G3 tinha ficado com a patilha de segurança na posição de travada. Tinha-me esquecido de a destravar. Era assim como ir para um duelo e esquecer de meter as balas na pistola.

— Vais longe! Comento em voz alta para mim mesmo quando dou por ela, perante o olhar interrogativo do militar que está ao meu lado, pensando que o critico. Com a coronha da G3 apoiada no chão e com um joelho em terra, fico por momentos com a cabeça assente no braço que segura a arma, remoendo a minha falha que procuro colocar no cimo da lista das minha preocupações futuras no sentido de não voltar a cometer o mesmo erro.

Há dois elementos do lado inimigo atingidos. Afinal, apenas aqueles dois simbolizados num V de vitória que não lhes sorriu.

Nunca me dei bem com o sangue vertido fosse donde fosse. Nem da galinha que a minha mãe aprontava em menos de nada nos domingos de festa lá da aldeia. Sabia que havia ali bem perto alguém atingido por balas de guerra, terrivelmente perfurantes que deixavam um pequeno orifício de entrada e estraçalhavam tudo à saída. O meu primeiro impulso foi de ficar por ali à espera que tudo passasse e regressássemos às casernas, onde me esperava um papelinho mágico que me mandava de volta a Mafra ao remanso das guerras de brincar.

Há ainda um enorme sentimento de insegurança após aquele tiroteio. Vagueio de um lado para o outro procurando ordenar o meu grupo e mantê-lo vigilante dada a posição desfavorável em que nos encontramos, já perfeitamente localizados pelo inimigo. Disfarço o melhor que posso a luta interior que se trava dentro de mim. Dou por me afastar instintivamente do teatro dos acontecimentos. O mínimo que me esperava no meu futuro militar era pelo menos uma boa meia-dúzia de situações daquelas, onde a morte estaria presente ou deixaria o seu véu sombrio envolver os espíritos de quantos ficavam à sua mercê. Talvez fosse melhor que me habituasse já à sua presença, garantindo o início de uma relação de rotina que nos endurece os sentimentos e nos torna insensíveis à dor, ao medo e aos sofrimentos próprios e dos outros. Há responsabilidades e condutas que me vão ser exigidas. O treino a que me sujeitam não deve cingir-se apenas à aprendizagem do modo de fazer a guerra, mas também à eventualidade das suas consequências ou à desumanidade das suas armas e circunstâncias.

Decido por me obrigar a ir à frente, apontando-me uma baioneta às minhas pernas que ainda trémulas se recusam a caminhar naquela direcção. Há militares que se movimentam de arma em riste procurando garantir a segurança contra um inimigo invisível mas, sem dúvida, presente e pronto para nos aniquilar e vingar os seus. De coração em sobressalto, chego ao local onde a agitação é enorme. No campo de milho estão dois corpos caídos a cerca de trinta metros um do outro. Um de bruços, inerte. O outro, gemendo, apoia-se num cotovelo. Tem as vísceras na outra mão que aconchega no regaço. Olha-nos com distanciamento como quem não espera mais nada além da morte e a deseja. Balbucia palavras que procuro entender mas não alcanço.

Nem sotaque do Norte, nem linguarejar do Sul, ou cantata ondulante das searas alentejanas. São palavras que brotam em sonoridades novas e sentidos ínvios, que se me erguem estranhas naquela terra distante, província desmedidamente maior que a mãe pátria, que não cuidámos de aportuguesar, ao menos na língua, que nos fizesse entender as dores do corpo e da alma ou mesmo os desejos de não querer ser português assim.

O Chagas está algo transtornado e movimenta-se nervoso.

— Não podemos ficar aqui mais tempo. Em minutos caem-nos em cima e estamos totalmente desprotegidos.

À minha chegada o Chagas resume o que se passou na esperança de que, entre todos, encontremos uma solução para a situação criada. Afinal tratava-se de três elementos da população, dois homens e uma criança, que vinham pelas lavras. Traziam às costas utensílios agrícolas que foram confundidos com armas. Foi-lhes dada ordem para pararem à qual não obedeceram e fugiram. Foram abatidos. A criança foi deixada fugir. Deviam vir acompanhados de perto por guerrilheiros porque houve posteriormente disparos vindos da mata que deram origem àquele tiroteio todo. Nem há tempo para ir ver se lá ficou algum ferido ou morto. Temos que sair daqui.

O Chagas movimenta-se nervoso e assustado de um lado para o outro. Tem um ar lívido estampado no rosto, marcado pelo sentimento de responsabilidade de comandar aquela operação. Pela obrigação que lhe cabe de tomar decisões. Decisões que têm a ver com a vida ou a morte. Aquelas que me vão caber num futuro próximo e por mais três longos anos.

— E agora o que faço àquele desgraçado que ali está!? Nem pensar chamar um helicóptero porque a esta hora já não vêm.

Os hélis tinham uma margem de luminosidade de segurança sem a qual não operavam.

— Se fica ali assim vai ser um sofrimento atroz.

Ninguém encontra soluções que possam ser apresentadas de viva voz e em boa consciência. Há trocas de olhares silenciosos e cúmplices que ninguém se atreve a traduzir melhor por palavras. Projecta-se em cada um de nós uma alternativa animal e fria que apenas encontra sentido na insensatez da guerra. Uma solução grotesca de resgate de sofrimento a troco de nada, a não ser por fim a paz apodrecida do silêncio inesperado e o sossego das tormentas da vida. De olhar fixo no chão, deixo também o meu doloroso recado e afasto-me derrotado e miserável. Acenam-me com alguns lenitivos de consciência que procuram vingar a perna do Guia desfeita no Mufuque três meses antes. A memória do Guia não me serve de desculpa nem me fortalece o ânimo. Talvez porque nem cheguei a conhecer o Guia. Talvez porque nunca privei com ele. Tentam colonizar a minha consciência transformando derrotas retumbantes em vitórias que apagam sonhos de futuros de melhor vida e os transformam em pesadelos negros e sem retorno. Mundos de promessas e esperanças sem fim, desmoronando-se em ruínas de pó que nos alucinam e nos peiam a vontade de discernir e libertar de nevoeiros cegos que nos envolvem, teimando em cobrir-nos e escurecer a nossa consciência de navegantes perdidos.

Já fugi do palco da minha derrota.

Há um tiro isolado que ecoa longamente no vale. Um eco que parece não ter fim e que se prolonga nos nossos sentidos. Um tiro a que, de olhos no chão, ninguém responde nem dá sinais de medo ou cuidado, porque transporta uma mensagem de dor ou o fim dela. Um tiro rogado em silêncio pelo próprio derradeiro sopro de vida que o implora. Que me estremece e trespassa a consciência, qual trovão que ensurdece os meus sentidos e me queima toda a razão. Que me sinto atingir em cheio no peito e derrubar o que me sobra de ânimo já de si desfeito. Que me angustia e me deixa por momentos à deriva e sem norte.

Fico em pé enquanto mo permitem os restos de dignidade que em mim ainda campeiam desordenados e sem rumo. Há um silêncio frio e negro de sepulcro que emudece tudo. Um sol exausto que também se deixa abater e cai vencido num horizonte distante de uma vergonha recente mas já podre. Emergem já sombras frias em prenúncio de um escuro fúnebre que se prepara para envolver todo o vale e enredar-nos a consciência.

Há uma vontade enorme de fugir e me esconder, de abraçar e esquecer. Há um “Montijo” que me diz que mesmo que a chuva caia e me mate a sede de dois dias sob sol inclemente não irá à missa porque Deus por vezes descansa quando mais dele precisamos.
(...)


Pedro Cabrita, Capitães do Vento (esgotado), Roma Editora, Lisboa, 2003

Comentários: 2

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Creio ter esgotado 3/4 da minha disponibilidade visual do dia, mas nem por um segundo me arrependo disso.

Obrigada, Fernando.

Abraço

11 abril, 2021 12:20  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Cara Maria João,

Este texto tem tudo para ser verídico. Para começar, parece-me que alguém que não tivesse vivido pessoalmente uma situação semelhante à descrita não seria capaz de a descrever com tanta intensidade emocional, por muita imaginação que possuísse. Não é possível fingir tanta emoção. Seria fingimento a mais.

Além disso, eu próprio tenho razões pessoais para acreditar no que Pedro Cabrita conta, porque eu também participei em operações militares na área do Mucondo, embora tivesse estado aquartelado a várias dezenas de quilómetros de distância, num local chamado Zemba. Não vivi uma situação igual à descrita, mas vivi outras igualmente dramáticas, incluindo uma em que uma mulher se suicidou à frente dos nossos soldados. Há cenas que ficam gravadas a ferro e fogo no nosso espírito até ao fim da nossa vida.

Seja como for, o livro de Pedro Cabrita tem passagens, ainda, em que ele descreve de forma extremamente rigorosa e pormenorizada situações que foram iguais ou muito semelhantes às que eu próprio vivi. Todo o livro parece contar a verdade dos factos por ele vividos, sem fantasias. É o seu livro de memórias da guerra e eu acredito nele.

13 abril, 2021 02:27  

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