07 maio 2021

O rei D. Sebastião


O Rei D. Sebastião, óleo sobre tela de Cristóvão de Morais, pintor português que teve atividade conhecida entre 1551 e 1571. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal

Este retrato do rei D. Sebastião é da autoria de Cristóvão de Morais, que foi um excelente pintor português do séc. XVI. Cristóvão de Morais foi, com toda a certeza, um dos melhores pintores maneiristas portugueses. Ao olhar para este quadro, não posso deixar de notar que ele é um bom retrato de um mau rei, porque mal aconselhado: o rei de Portugal D. Sebastião. Não vale a pena insistir no facto de que D. Sebastião trouxe a desgraça para Portugal quando se fez matar na batalha de Alcácer Quibir, no norte de África, em 4 de agosto de 1578.

Como seria de esperar, a batalha de Alcácer Quibir vem referida nos livros de História de Marrocos. Não é todos os dias que um rei é morto num campo de batalha, seja em Marrocos ou seja onde for. O que é surpreendente é o modo como os marroquinos reagem diante de um interlocutor português, quando o assunto é abordado, e lhe dizem: «Sim, é verdade que nós ganhamos, mas a batalha de Alcácer Quibir foi somente uma batalha entre muitas que houve entre as nossas duas nações. Nós ganhamos algumas, vocês também ganharam algumas, mas o que importa é que agora estamos todos em paz e somos todos amigos». Fica a sensação de que esta desvalorização da importância da batalha de Alcácer Quibir por parte dos marroquinos é apenas uma manifestação de gentileza. Os marroquinos são um povo gentil, atencioso, tolerante e acolhedor. E, o que é mais importante, não nutrem qualquer rancor ou ressentimento para com os portugueses. Isto mesmo eu verifiquei pessoalmente em diversas ocasiões.

Efetivamente, quando eu disse uma vez a um marroquino que era português, ele soltou uma sonora gargalhada e exclamou: «É português? Então somos grandes inimigos! Ahahahahah!» Por momentos julguei que ele me iria dar um grande abraço, o abraço do reencontro de dois "grandes inimigos". Mais tarde, fiquei a pensar.

No ano 711, os mouros atravessaram o Estreito de Gibraltar, vindos do Norte de África, e rapidamente se apoderaram da Península Ibérica, com exceção das Astúrias, conquistando o fraco Reino dos Visigodos, que não era mais do que uma frágil federação de senhores feudais. Começou assim um ciclo de conquistas e reconquistas, invasões e recuos, grandes batalhas e pequenas escaramuças, tanto em solo ibérico como em solo norte-africano, entre mouros e cristãos, que, no caso português, se prolongou até ao ano 1769, ano em que Portugal abandonou a sua última posição em terras de Marrocos, a fortaleza de Mazagão. Por determinação do Marquês de Pombal, os ocupantes da fortaleza foram então transferidos para a foz do Rio Amazonas, onde fundaram uma povoação também chamada Mazagão.

Agora, como dizia António Guterres, «é só fazer as contas». Estas contas revelam que, ainda e só no caso português, se passaram 1058 anos entre o primeiro acontecimento e o último. Foram 1058 anos de ódios e de guerras, em que cristãos e muçulmanos se esquartejaram mutuamente, enquanto gritavam, uns contra os outros, «Morte aos infiéis!». Foram 1058 anos com montanhas e montanhas de mortos, rios e rios de sangue, milhões e milhões de órfãos e de viúvas, uma dor incomensurável e lágrimas sem fim. 1058 anos. Tudo isto para quê? Para que alguém, na viragem do séc. XX para o séc. XXI, se ria e graceje: «É português? Então somos grandes inimigos! Ahahahahah!» O ódio e o fanatismo, que tanto mal causaram, apagaram-se e converteram-se em anedota. Valeu a pena ter havido tantos mortos?

Comentários: 2

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Obrigada pelo interessante texto histórico e não só.

Nesse específico caso, o riso tomou o lugar do ódio, mas há sempre ódios que se reacendem, aqui e ali. Infelizmente não são poucos e continuam a causar muitas mortes.

Abraço!

07 maio, 2021 11:20  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Completamente de acordo, Maria João. Quando julgamos que os ódios estão mortos, logo aparece alguém a querer reavivá-los.

Marrocos é um país politicamente conservador. É uma monarquia onde a democracia é pouco respeitada. Mais do que isso, Marrocos ocupa ilegalmente um território que não lhe pertence, que é o Sara Ocidental, o qual lhe foi dado de mão beijada pelo ditador fascista espanhol Francisco Franco pouco antes de morrer, sabe-se lá a troco de quê. O Sara Ocidental era uma colónia espanhola e agora é um território ocupado por Marrocos, muito rico em fosfatos e recursos pesqueiros.

Mas uma coisa é o rei de Marrocos e a classe dirigente do país, e outra coisa é o povo marroquino. Este povo é surpreendentemente aberto e tolerante. É tão tolerante, que vivem no seu seio milhares e milhares de judeus. Marrocos é talvez o país árabe com mais judeus do mundo. São judeus sefarditas, tal como a maioria dos judeus portugueses.

Marrocos é um país das mil e uma noites que está aqui ao pé da nossa porta, é verdade que é, mas não é tão árabe como nós o pintamos. Há muito de africano nos genes e na cultura do país. Muito. Esta talvez tenha sido a maior surpresa que eu tive em Marrocos: os marroquinos dizem-se africanos e mostram ter orgulho em sê-lo. Não aceitam que nós digamos que eles são brancos. «Nós não somos brancos», respondem-nos, «somos africanos». «Pois, está bem», dizemos-lhes nós, «vocês são africanos... brancos». «Não, não», insistem com veemência, «nós somos só africanos. Os únicos marroquinos que são brancos são os andaluzes, porque os seus antepassados fugiram do sul de Espanha quando os cristãos espanhóis conquistaram o Reino de Granada. Esses, sim, são brancos, porque são de origem europeia, mas a maioria do povo marroquino é geneticamente berbere, logo é africana. Nós somos africanos».

09 maio, 2021 01:25  

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