19 junho 2021

O soldado que foi para o céu



(Desenho de autor desconhecido)


Ia uma vez um soldado para casa com a baixa; quando ia a passar por uma ponte encontrou um pobre de pedir, que não tinha dinheiro para pagar a passagem e estava ali parado. Ora o soldado nunca tinha feito bem a ninguém; mas naquele instante teve pena do velhinho e carregou com ele às costas e passou a ponte. O soldado não pagou nada, porque os soldados não pagam, e o velho também não pagou nada porque ia às costas do soldado. Logo que chegou ao outro lado, pôs o velho no chão, e ia despedir-se dele, quando o pobre lhe disse:

— Camarada, peça alguma cousa, que o que eu quero é agradecer-lhe.

— Ora o que lhe hei de eu pedir?

— Peça tudo o que quiser.

O soldado pediu: Que todas as vezes que disser «Salta aqui à minha mochilinha!» nenhuma cousa deixe de obedecer à minha ordem. E que onde quer que me eu assente ninguém me possa mandar levantar.

O velho disse-lhe que estava concedido. Foi-se o soldado muito contente para casa e nunca mais trabalhou, e viveu bem, sem lhe faltar nada. Se queria pão, carne, vinho, dinheiro, dizia: «Salta aqui à minha mochilinha», e tinha logo tudo o que lhe era preciso. Veio o tempo e o soldado estava para morrer; os diabos vieram logo para lhe levarem a alma, mas o soldado viu-os e gritou: «Saltem aqui já à minha mochilinha!» Os diabos não tiveram remédio senão obedecer; ele assim que os apanhou dentro da mochila mandou-a a casa do ferreiro para que lhe malhasse em cima até os deixar em estilhas. Por fim o soldado morreu, e como tinha passado sempre na má vida, foi parar ao inferno. Os diabos assim que o lá viram começaram a gritar:

Fecha portas e postigos,
Senão seremos aqui todos batidos.

E aferrolharam as portas, e o soldado não pôde entrar para lá; foi então bater às portas do céu. São Pedro assim que o viu, disse-lhe:

— Vens enganado! Não entras cá. Não te lembras da má vida que levaste?

Responde-lhe o soldado:

— Oh, senhor São Pedro! no inferno não me quiseram. Eu agora para onde hei de ir?

— Arranja-te lá como puderes.

O soldado viu meia porta do céu aberta, e pega no barrete e atira-o lá para dentro, e disse:

— Oh senhor São Pedro, deixe-me ir apanhar o meu barrete.

São Pedro deixou; mas o soldado assim que se viu dentro do portal, sentou-se logo na cadeira dele. São Pedro quis mandá-lo sair mas não pôde e foi dali à pressa queixar-se a Nosso Senhor, que lhe disse:

— Deixa-o entrar, Pedro, não tens outro remédio, porque assim lhe estava prometido.

E o soldado sempre ficou no céu.



Conto popular recolhido no Porto. Contos Tradicionais do Povo Português, por Teófilo Braga (1843–1924)

Comentários: 5

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

BOM DIA, FERNANDO.

CURIOSAMENTE, HÁ MUITO HAVIA PERDIDO MEMÓRIA DESTE CONTO, MAS REENCONTREI-A NA FRASE "SALTA AQUI À MINHA MOCHILINHA"...

ABRAÇO!

19 junho, 2021 11:00  
Blogger Ricardo Santos escreveu...

Contos tradicionais, aquilo que não se lê nas nossas escolas !

20 junho, 2021 23:21  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Cara Maria João,
Eu não tenho memória deste conto. Quando eu era criança, o meu pai contava-me muitos contos (alguns inventados por ele na hora) para me convencer a engolir o óleo de fígado de bacalhau, :-) mas deste conto não me lembro.

Prezado Ricardo,
A coletânea de contos tradicionais portugueses reunidos por Teófilo Braga, da qual extraí este que aqui publiquei, tem dezenas e dezenas de contos populares, mas alguns deles não são recomendáveis nas escolas, à luz dos nossos valores atuais. Por exemplo, existe um punhado de contos que são acentuadamente racistas. Direi mesmo que são insultuosos. Mas há muitos outros que poderiam ser lidos nas escolas, sim.

Eu gostei deste conto porque, nele, quem vai para o céu não é um homem que passou a vida a bater no peito e a fazer jejuns e abstinências. É um espertalhaço que andou na «má vida», mas que no fundo não era má pessoa, pois até fez uma boa ação. É um ser humano com qualidades e defeitos, como toda a gente, e não um rato de sacristia.

21 junho, 2021 01:52  
Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

ESCREVESSE EU SONETOS GAGOS...
*


Escrevesse eu sonetos gagos,

Ou mal falados, ou mudos...

Sonetos machos, barbudos,

Mas tão ternos quanto afagos
*


Que, em tocando, fazem estragos

Nos corações mais sisudos...

Mas não, os meus são veludos

Já pelo tempo esgaçados...
*


Cantasse eu versos que mordem

Como quem com fome beija,

Soubesse eu criar desordem,
*


Drama, ciúmes, inveja...

Acordes meus, não me acordem,

Se nenhum de vós gagueja!
*


Maria João Brito de Sousa - 23.06.2021 - 13.06h
*

Ao Fernando Ribeiro



23 junho, 2021 13:51  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Muitíssimo obrigado, Maria João. Fiquei desvanecido. Não sei como retribuir-lhe. Sou completamente prosaico, incapaz de escrever um só verso, mesmo que seja de pé quebrado, para lhe responder à letra. Sendo assim, se não se importa, só lhe mando um beijo de agradecimento.

25 junho, 2021 02:03  

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