25 setembro 2021

Os dois irmãos


Porta da muralha no Jardim dos Colegiais, Évora (Foto de autor desconhecido)

Um velho rico tinha dois filhos, e porque o maior que tinha carrego da administração da fazenda se casou sem licença, o lançou fora de casa, tirando-lhe a posse e mando que nela tinha, e além disto lhe cobrou ódio mortal com desejo de o empecer; e para o poder fazer ao menos na fazenda, imaginava sempre como per sua morte o deixasse deserdado e desse tudo ao outro filho menor. E achou que o faria, deixando de acabar umas casas sumptuosas que tinha começadas no melhor da cidade, as quais estavam já galgadas as paredes para lhe lançar o primeiro sobrado; e isto porque o que havia de gastar nelas ficasse em dinheiro na mão do filho menor quando ele lho quisesse dar. E passados anos, o velho perseverando em sua contumácia, não quis perdoar o filho nem lhe quis mais ver o rosto. E com este rancor morreu e deixou grande fazenda em dinheiro, ouro e prata ao segundo filho, dando-lhe na mão, porque não desse dali parte ao outro, ao qual ele deserdara, de todo se perdera. Coube ao maior tão pouco, que não houve bem para se vestir de dó ele e seus filhos, que, como havia dias que era casado, tinha quatro crianças, e assi ficou pobre e cercado de trabalhos e muita necessidade, que, vendo-se o mais velho em tanta miséria foi ao irmão, e com lágrimas lhe disse:

— Irmão, bem sabes e vês minha necessidade e pobreza; rogo-te que me dês estes princípios de casas que meu pai deixou de acabar, porque alimpadas com meu trabalho e de minha mulher e filhos, as possa cobrir de trouxa e agasalhar-me dentro; que elas a ti não te aproveitam, nem as estimas, e estão em esterqueira do concelho, feitas pardieiro; elas estão galgadas de maneira que sem lhe acrescentar parede, ali as cobrirei do que puder, e nisto me farás grande esmola.

O irmão menor vendo a necessidade de seu irmão, e como dizem, porque o sangue não se roga, entregou-lhe as casas, e fez-lhe delas sua carta de doação livre e desembargada.

Passados anos o irmão menor veio a casar, e porque a quem tem muito lhe dão mais, deram-lhe grande dote com uma mulher tão cobiçosa da fazenda, que o muito que tinha lhe parecia nada, e o pouco alheio cuidava que era muito e o queria e cobiçava para si. E desta maneira, indo um dia a visitar a mulher do cunhado, irmão de seu marido, viu o princípio e entrada da casa e o portal de pedraria que mostrava demandar mais água, que ser logo em cima coberta de trouxa como estava, e cobiçosa de haver aquele assento e fazer nele casas para sua morada custosas e ricas, sem fazer ali muita tardança veio ao marido e disse-lhe — que comprasse aquele assento a seu irmão, dando-lhe por ele com que podesse haver casas pera si em outra parte. E ele lhe respondeu: — que o não faria, porque ele lho dera feito pardieiro, que não era razão pedir-lho agora que o tinha limpo, ainda que fosse por compra.

Quando ela isto ouviu, ali foi a grita, que em toda a vizinhança se ouviu seu brado, dizendo: — que folgava muito de saber que ele lho tinha dado, porque já agora não dizia ela por dinheiro, mas sem ele lho havia de dar, e se não fosse em paz e por bem, seria por justiça. E dava logo esta razão:

— Se vós lho destes solteiro éreis menor; e se lho destes em casado, a dada não vale, que eu não consinto.

E isto dizia tão menencória e pelejando, que o marido não tinha mesa nem cama sem arruído. E assi fez tanto, que por ter paz o marido citou a seu irmão, pedindo-lhe as casas que lhe dera; e processado o feito, que correndo seus termos ordinários saiu por sentença a doação por boa. E assi foi a propriedade julgada ao pobre; porém, a mulher do rico mal contente, fez agravar da sentença e seguir o feito até mor alçada, e assi foi à Suplicação, que então estava na cidade de Évora. E partindo de Lisboa, o rico ia a cavalo e com grande cevadeira, e o pobre a pé com dous pães e quatro cebolas no capelo; e assi caminharam pera haver final sentença. Indo assi caminhando pera Évora, foram pousar uma noite na Landeira em casa de um vendeiro, que havia dezoito anos que era casado e nunca tivera filho nem filha; e estava rico e contente, porque a este tempo tinha a mulher prenhe, quase em dias de parir. E por ser muito conhecido do rico o agasalhou e pôs grande mesa, dando-lhe de cear o melhor que ele pôde e tinha; assi se puseram a cear com grande festa, fazendo assentar à mesa a mulher do vendeiro pera que como prenhe tomasse de cada cousa um bocado. E o pobre homem, sem dizer que era irmão do rico, se assentou derredor do lume, e pôs no borralho a assar uma cebola para sua ceia, que assada a ceou com seu pão e água. Esta mulher prenhe ainda que estava à mesa com o marido e hóspede, onde tinham bem que cear, e recebiam gosto de lhe dar o que ela pedia por que não perigasse, não lhe pareceu bem nada do que ali havia, nem lhe prestava coisa que comesse, cheirando-lhe a cebola, que se assava, que morria por ir comer dela, e com vergonha do hóspede não se erguia da mesa, tomou-lhe tal desmaio que caiu no chão, e como a criança era já grande a boa mulher com grande trabalho moveu aquela noite antes de muitas horas com muito pesar e dor do marido, o qual, inquirindo da mulher se desejara alguma cousa, tanto que ela lhe disse que da cebola assada que aquele homem ceara, se foi a ele com grande ira, que o queria matar a punhadas, e sem falta o fizera, se o irmão o não escusara, dizendo:

— Eu vou com ele em demanda à corte; se vos parece que vos tem culpa e é caso de o matar, como queres, hi comigo e acusai-o, e lá vos farão justiça.

Tanto que veio a manhã, determinou o vendeiro ir acusá-lo à corte. E assi como o rico se pôs a cavalo, partiram ambos para a cidade de Évora donde o vendeiro pretendia fazer enforcar aquele pobre homem. E assi caminharam os dous a cavalo, e o pobre a pé; chovia, e havia chovido toda a noite passada, de maneira que o caminho tinha a lugares lamas e atoleiros, porque era tempo de inverno. A esta conjuncção achou no próprio caminho um homem, que com uma azémela estava metido no olho de um grande lamarão de barro, tão pesado que não podia sair, nem valer-se a si, nem à azémela, e ainda que bradou pelos que passavam a cavalo, nenhum quis acudir. Até que chegou este pobre homem que caminhava a pé, e com muito mais trabalho que todos e de feito o ajudou com vontade a livrar daquela afronta; e fez de maneira com que, tirando o homem da pressa de sua pessoa, buscaram ambos mata que lançar aderredor da azémela para poder chegar a ela sem atolar. Trabalhou tanto o pobre homem nisto, tirando a vezes pelos pés e mãos, e outras pelo cabresto e rabo, com a força que ele pôs lhe ficaram nas mãos tantas sedas do rabo da azémela, que lhe davam grande fealdade. O dono, tanto que viu o defeito da azémela veio a grandes brados com o pobre, dizendo que acinte lhe arrancara o rabo, e que lhe havia de pagar por justiça o defeito, e que sobre isso iria à corte; e assi indo alcançou os outros que iam diante na primeira venda donde estavam pousados e lhe fez queixume do pobre que vinha a pé, muito triste de se ver com tantos desastres como lhe aconteciam sem ele ter culpa; e porque não acontecessem mais, não quis pousar naquela venda, mas só se pôs ao caminho e chegou a Évora a tempo que já lá estavam. E considerando o pobre como havia de parecer com três demandas diante do Regedor, assentou que era melhor matar-se ele mesmo a si, que ver-se em poder de seus inimigos, e logo o pôs por obra desta maneira. Subindo pela escada do muro da cidade, foi acima até chegar às ameias da torre que está sobre a porta, e deixando-se cair da torre abaixo para a banda de fora. Ora, aquela manhã, depois de tanta chuva, tinha amanhecido o dia bom e muito fermoso; um velho que estava entrevado doente e morava ali perto, por gozar o sol deste dia se fez levar ao soalheiro ao pé do muro, por ali aquecer e ter refrigério de ver e falar com alguns conhecentes que passavam; e assi pouco depois dele assentado em uma cadeira, vêdes, vem de cima do muro pelos ares aquele homem, que desesperado por se ver com tanta demanda se lançou desejoso de receber a morte, o qual veio direitamente dar sobre o desditoso velho, morreu, e o pobre homem que desejava morrer não recebeu nenhum dano da queda, que foi toda em cheio sobre o velho. Ao qual logo acudiram dois filhos que tinha, e achando-o morto lançaram mão do matador e preso o levaram ante o Regedor. Porém atravessando com ele pela praça, foi visto do irmão e dos outros dois contrários, que o estavam aguardando; tomou o irmão a dianteira, e o vendeiro também queria dizer seu queixume e o da azémela o mesmo, de maneira que cada um se atravessava por falar, não deixando dizer ao outro. Tanta briga tiveram entre si, que o Regedor olhou nisso e logo naquele instante propôs em si, que se achasse da parte do pobre alguma coisa com que por direito o pudesse favorecer, que o faria de boa vontade. E disse:

— Que as pessoas que tinham que dizer contra aquele homem dissessem um a um, começando primeiro quem primeiro teve a diferença; e assi cada um per sua ordem.

Pelo qual o irmão foi o primeiro, que lhe pediu as casas fundando-se nas razões já ditas; ao qual respondeu o pobre com a verdade do caso como passava. O Regedor disse:

— Eu mando que este fique com as casas como estão julgadas, e que vós que sabeis que lhas pedis mal e com malícia insistis nisso, lhe pagueis a ele duzentos mil réis.

E logo foi por eles preso, e não foi solto até pagar. Concluído este veio o vendeiro, dizendo que lhe fizera mover a mulher; ao qual respondeu o pobre com a verdade, contando como passara. E o Regedor visto o caso julgou ao pobre por sem culpa, e que o vendeiro pela afronta em que o pusera e em emenda do dano que lhe fez em sua casa dando nele, lhe pagasse cinquenta cruzados. E logo veio o da azémela, pedindo que maliciosamente pegara no rabo daquela alimária e lho arrancara; o qual era muito defeito e grande fealdade, que lhe mandasse pagar o que fosse avaliado. Ao que foi respondido pelo pobre, dizendo que o ajudara a sair do atoleiro; ouvido pelo Regedor e vista a ingratidão foi julgado por ele que a azémela ficasse em poder do pobre tanto tempo até que lhe nascesse o rabo, e se servisse dela, e se o dono apelasse disso pagasse cinquenta cruzados. Isto concluído, os filhos do velho que estava morto, alcançaram as vozes pedindo justiça.

— Este matou; o matador morra por isso que assi é justo.

O Regedor quis saber o caso miudamente, e ouviu ao pobre como e porque se lançara do muro abaixo. O que tudo visto mandou que aquele homem acusado fosse assentado na cadeira em que estava o velho quando morreu, e o acusador se subisse ao muro e se lançasse dele abaixo como o outro fez e assi caísse sobre ele e o matasse, que desta maneira o matador pagaria como pecou; e se não quisessem aceitar isto, que pagassem ao pobre pela afronta em que o puseram cinquenta cruzados.

Os filhos do velho, visto que podia ser deitando-se do muro errar o golpe e não lhe fazer dano, e o que se lançasse corria muito risco de perigar, davam brados, e foram logo retidos e houveram por bem de pagar os cinquenta cruzados, antes que aventurar a vida. E assi o homem acusado ficou livre e com muito dinheiro com que se tornou para Lisboa na azémela, que lhe julgaram.


Gonçalo Fernandes Trancoso (c.1520–1596), Contos e Histórias de Proveito e Exemplo

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